QUANDO
A FOTO VIRA MANCHETE
Foto: Moreira Mariz |
O ano de
2008 mal tinha começado quando o amigo Moreira Mariz sugeriu que eu
entrevistasse o lendário Gervásio Baptista - repórter fotográfico que trás no
seu portfólio cliques famosos como os últimos registros de Tancredo Neves vivo
e Juscelino Kubitschek fazendo uma mesura com sua cartola, na inauguração de
Brasília. Marcamos a conversa para uma sexta-feira (1º/02/2008), no antigo
Hotel Esplanada, na Vila Planalto, em Brasília. Um resumo da entrevista foi
publicado na edição impressa e no blog do jornal Zona Sul, de Natal. O texto pode ser lido no link postado ao final deste parágrafo. Porém, partes interessantes do
que Gervásio contou tiveram que ser suprimidas para o texto final se adequar ao
espaço do impresso. Consciente de que um mestre como Gervásio não pode ter sua
fala subtraída, resolvi resgatar a antiga gravação e divulgá-la, na íntegra,
aqui no Superpauta.
Naquela
ocasião, o texto de abertura foi o seguinte:
“Há uma
polêmica sobre o início da carreira do repórter fotográfico Gervásio Baptista.
Segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tal fato se deu ainda nos
tempos de Dom Pedro I. Já o ex-senador Antônio Carlos Magalhães garantia que o
entrevistado do mês do Zona Sul tinha
fotografado a Santa Ceia. Quando FHC defendeu sua teoria - na presença do
ex-ministro Pratini de Moraes - Gervásio elogiou a “memória prodigiosa” do
então presidente da República. Por sua vez, ACM também não ficou sem resposta
quando - com a intenção de alardear a longevidade do fotógrafo - tentou o ligar
à última refeição de Cristo: “e o senhor era o meu repórter”, rebateu de pronto
Gervásio, lembrando a Antônio Carlos que, além de baianos, os dois eram
contemporâneos.
A conversa
com Gervásio Carlos Baptista, travada no Hotel Esplanada, em Brasília, durou
quase duas horas. Pouquíssimo tempo para ele contar tanta coisa. Para quem não
sabe, foram captadas pelas lentes deste baiano de Salvador - entre tantos
outros registros históricos - as últimas fotos de Tancredo Neves vivo, no
Hospital de Base, e a famosa fotografia de Juscelino Kubitschek levantando sua
cartola durante a inauguração de Brasília. Ele também cobriu a guerra do
Vietnã, foi fotógrafo oficial dos antigos concursos de miss, foi preso mais de
40 vezes... Bom, melhor é parar com esse blá-blá-blá e deixar o homem falar...
Fala, Gervásio!!!”.
Como o
texto publicado no Zona Sul não
trouxe tudo o que Gervásio falou, agora sim ele pode contar a sua história.
FALA, GERVÁSIO!!!
ZONA SUL – Como é o seu nome completo?
GERVÁSIO – Meu nome de guerra, na imprensa,
é Gervásio Baptista. Para receber herança, é Gervásio Carlos Baptista.
ZONA SUL – A herança é grande? Quem foram
seus pais? O que eles faziam?
Foto: Moreira Mariz |
GERVÁSIO – Eram simples. Meu pai,
afortunadamente, foi motorista de automóvel, em uma repartição pública. Ele acompanhava
os mata-mosquitos, naquela época. Depois, passou a trabalhar como autônomo,
dirigindo um táxi. Aristides Baptista era o seu nome. Minha mãe, Alexandrina
Baptista, era dona-de-casa. Tinha que aturar a mim e ao meu pai. Sempre fui
filho único. Depois é que meu pai caiu na gandaia e me fez arranjar mais alguns
irmãos, que eu e minha mãe ajudamos a criar.
ZONA SUL – Onde você nasceu?
GERVÁSIO – Onde nasceu o Brasil, na Bahia.
Sou soteropolitano: nasci em Salvador. Orgulhosamente, hoje em dia me tratam como
cidadão do mundo.
ZONA SUL – Faz muito tempo que você nasceu?
GERVÁSIO – Deixe de ser curioso! Mas, na
verdade, faz muito tempo...
ZONA SUL – Você nem deve lembrar mais...
GERVÁSIO – Eu lembro, mas é que eu não vou
dar satisfação à sua curiosidade de querer saber a minha idade. Fotógrafo não
tem idade. Esse aqui ao meu lado sabe disso. (Referindo-se ao repórter
fotográfico Moreira Mariz, já entrevistado pelo Zona Sul).
ZONA SUL – Ah, mas Moreira é mais velho do
que você...
GERVÁSIO – Mais velho do que eu não
existe... Não venha com suas insinuações. Você está querendo me enganar pelos
atalhos! (risos)
ZONA SUL – O trato que fizemos antes de
começar a entrevista foi que você responderia à sua maneira e eu perguntaria da
forma que eu quisesse...
GERVÁSIO – Então, vamos em frente. Mas não
insista que eu não direi minha idade!
ZONA SUL – Tudo bem, mudemos de assunto. A
fotografia apareceu cedo na sua vida?
GERVÁSIO – Muito cedo. Há muito tempo, lá na
boa terra, na Bahia, existiam fósforos de cera. Não sei se ainda se encontra
isso. A caixa de fósforos de cera vinha estufada. Contavam meus pais que eu abria
a caixa, tirava os fósforos de cera, desenhava uma figura em uma tampa e
brincava de tirar retratos. Era o meu brinquedo. Quando comecei a crescer,
lembro perfeitamente do dia em que o meu pai disse: “meu filho, um homem que
não tem profissão não merece viver, porque ele vai passar fome”. Eu tinha uns
nove anos de idade. Ele completou: "você tem que escolher uma profissão, mas
eu já escolhi". Perguntei qual era. Ele sondou se eu queria trabalhar com
fotografia, já que eu vivia brincando com a caixa de fósforos. Respondi: “o
senhor é quem sabe”. Ele me botou para trabalhar em um foto, o Foto Jonas, em
Salvador. Encarei com alegria. Desde aquele tempo labuto com a fotografia.
ZONA SUL – O que você fazia nesse
laboratório?
GERVÁSIO – Aprendi a fazer contato, tirar
contato nas fotografias, a virar cópia em sépia, a fixar e lavar cópia... Naquele
tempo, tinha essa história de lavar fotografia. Em menos de um mês, eu já estava
apto a fazer qualquer tipo de banho. Aprendi rapidamente o nome das químicas para
fazer revelador. Lembro até hoje: metol, sulfito, por aí afora... Misturava um
litro de água com as gramas das drogas. O dono do foto ficou impressionado e resolveu
me dar um salário decente. Eu ganhava, na época, 30 mil réis por mês. Pedi que
me pagasse diariamente, para eu ajudar meu pai e minha mãe. Passei a receber,
por dia, 10 tostões, como nós chamávamos.
ZONA SUL – Você teria como comparar quanto,
mais ou menos, seria esse valor em real?
GERVÁSIO – Meio salário mínimo. Só que naquela
época a gente comia 100 gramas de
carne seca por alguns centavos. Talvez nem chegasse
a tanto.
Foto: Moreira Mariz |
ZONA SUL – Como foi a transição do
laboratório para a atuação em fotojornalismo?
GERVÁSIO – No laboratório eu trabalhava com
calça curta. Um dia apareceu um médico e político que tinha sido senador da
República, o Rui Santos. Ele precisava tirar uma fotografia urgente. Foi lá no
foto onde eu trabalhava. A secretária disse que não tinha retratista. Ele
reclamou, alegou que estava com pressa e perguntou se eu sabia fazer. “Se o
senhor confiar em mim, eu faço”, foi o que respondi. Ele topou. Posicionei o
senador no lugar correto, puxei uma cadeira e subi nela.
ZONA SUL – Você subiu na cadeira porque sua
altura era pequena?
GERVÁSIO – Sim. Botei uma chapa nove por
doze - que era o tamanho da época – subi, foquei e bati o retrato. Quando
terminei, disse que esperasse um pouquinho, que eu já levava a foto. Ele se
surpreendeu: “como?”. Desci para o laboratório, revelei a foto – que tinha
saído como eu esperava - copiei, sequei e entreguei a ele os 3X4. Demorou uns 30
minutos.
ZONA SUL – Você deve ter sido o precursor
desse negócio de fotos 3X4 em meia hora...
GERVÁSIO – Não venha com estas insinuações!
Naquela época, marcavam uma semana para a pessoa vir buscar a sua foto 3X4. Em
uma chapa 9X12 se fazia fotos de vários clientes, uns três ou quatro. Como o
político precisava urgente, só fiz uma foto. Quando a entreguei, ele olhou pra minha
cara e disse que eu era um danado. Perguntou se eu queria trabalhar em outro
lugar. Respondi que se me chamassem e tivessem confiança em mim, eu iria. Ele
disse que eu iria trabalhar em um jornal e mandou procurá-lo. Depois de algum
tempo, fui. Eu achava que ganharia mais do que os 30 mil réis que já recebia no
foto. O diretor do jornal, que era amigo do senador, perguntou quanto eu
gostaria de ganhar. “Eu quero ganhar o que o senhor vai me pagar”, respondi.
Ele disse que me daria 30 mil réis. “Mas 30 mil réis eu já ganho”. Ofereceu 40,
eu topei na hora, mas pedi que me pagassem por semana. Esse diretor era o pernambucano
Odorico Tavares. Fui trabalhar no jornal O
Estado da Bahia, dos Diários
Associados. Fui feliz que nem pinto em bosta. Dei conta do recado.
ZONA SUL – Você começou como fotógrafo ou
laboratorista?
GERVÁSIO – O fotógrafo principal era o
Mestre Brito: que Deus tenha sua alma em um patamar elevado, pois ele era uma
grande figura. Mestre Brito foi quem começou a me ensinar os meandros da
fotografia e do jornalismo. Com sua ajuda, fui me desenvolvendo. Comecei
fazendo esporte, no Campo da Graça, que era o estádio de futebol da Bahia. Depois
de algum tempo, certo dia apareceu na Bahia o dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. Também vou pedir que Deus
ponha sua alma em um patamar elevado. Mestre Brito era o chefe da fotografia.
Eu revelava, copiava e ampliava as fotos que ele fazia. Doutor Assis foi receber
a comenda de vaqueiro do Nordeste, na cidade de Feira de Santana. No dia,
Mestre Brito adoeceu. Então, doutor Odorico Tavares me chamou e disse: “Gervásio,
estou precisando que você acompanhe o doutor Assis Chateaubriand à Feira de Santana,
porque Brito está doente. Você garante fazer pelo menos duas fotos?” Eu disse: “claro
que garanto!”.
ZONA SUL – Qual sua idade, naquela época?
GERVÁSIO – Deixe de ser curioso! Eu já
estava com 12 anos, usava ainda calças curtas.
ZONA SUL – Eu sou ruim em matemática, não se
preocupe. Não vou calcular nada...
GERVÁSIO – Eu também sou. (risos). Mas,
voltando à história, fui para Feira de Santana.
Cheguei com uma máquina maior do
que eu e com um tripé. Fui ao hotel onde o doutor Assis estava hospedado. Lá, perguntei
pela equipe que estava fazendo a segurança dele. O cara do hotel me apontou
quatro cidadãos. Eles estavam em pé, um deles segurando um cavalo selado. Apresentei-me
como fotógrafo do jornal O Estado da
Bahia, dos Diários Associados.
Expliquei que minha missão era acompanhar o doutor Assis Chateaubriand. Me
perguntaram se eu sabia mexer com aquele equipamento fotográfico. Respondi: “eu
não sou o cão, mas vou imitar”. Eu parecia o cão chupando manga, ao meio-dia na
porta da igreja. Doutor Assis ia receber a comenda do vaqueiro. Quando ele
chegou, os quatro seguranças pegaram o doutor Assis e levaram ele no colo montar
no cavalo. Fiz três fotos daquilo. Doutor Assis me olhou e disse: "ô
menino, onde é que você vai com essa fotografia?". Eu disse que era
ajudante de fotógrafo do jornal dele. "Me dê essas fotografias, você quer
me desmoralizar?". Eu perguntei: “desmoralizar como?”. "Eu venho
receber uma comenda de vaqueiro e você fotografa quatro sujeitos me carregando
para montar num cavalo".
Assis Chateubriand |
ZONA SUL – Você entregou o negativo com as
fotos a ele?
GERVÁSIO – Não. Eu disse que ele podia pegar
com o diretor do jornal. No dia seguinte, doutor Assis foi ao jornal. Eu tinha conseguido
salvar três fotos. Uma tinha ficado tremida, talvez pela emoção que eu
estava... Lá no jornal, doutor Assis olhou pra mim e disse: “você tem valor”.
Agradeci. Ele perguntou se eu queria seguir na profissão. “Quero, pois estou
aprendendo a tirar retrato e não sei fazer outra coisa”. Doutor Assis chamou o
diretor do jornal. "Odorico, você precisa dar uma ajuda a esse menino para
ele tirar essas calças curtas e botar calças compridas, pra gente acreditar
mais nele". Ele perguntou se eu queria ir para o Rio de Janeiro. Respondi:
"o senhor é quem sabe". Achei que aquele convite era salamaleque. Depois
de três anos, doutor Odorico me chamou e disse que esteve no Rio e o doutor Assis
tinha falado que ia mandar me buscar. Pouco tempo depois, o secretário do
doutor Assis, o doutor Irani, foi até Salvador com a missão de me levar para
trabalhar em O Cruzeiro. Mas, antes
desse encontro, o Odorico me deu as calças compridas. Quando vesti pela
primeira vez, caí: pois a calça tinha uma boca deste tamanho. (risos)
ZONA SUL – Na época devia ser moda a calça
boca de sino...
GERVÁSIO – É, tropecei e caí. Disse ao
doutor Odorico que não queria usar aquele tipo de calça. Mas ele respondeu que
eu tinha que usar, sim. Fui para o Rio, e lá fui jogado no meio de um Butantã. Só
tinha cobra.
ZONA SUL – Quais foram os repórteres
fotográficos mais expressivos que você encontrou n'O Cruzeiro?
Jean Manzon |
GERVÁSIO – O principal era um alemão, o Ed
Keffel. Tinha também o piauiense Zé Medeiros, que virou diretor de cinema. Outro
que depois foi para o cinema foi o Luis Carlos Barreto. Ele também era fotógrafo.
Fui recebido com certo entusiasmo. Fiquei lá alguns meses. Eles estavam me
preparando e preparando alguém para ser meu parceiro. Naquela época, tinha
duplas. Jean Manzon era o único que escolhia o repórter que queria. Eu saía com
os cobras, para ver a maneira como eles trabalhavam. Me espelhava bem em Jean
Manzon. Admirava muito o trabalho de Zé Medeiros. Ele tinha as mesmas
características
do meu
principal ídolo da fotografia, que era e continua a ser, Cartier-Bresson. Esse,
pra mim, foi o papa do fotojornalismo.
ZONA SUL – Você chegou a conhecê-lo?
GERVÁSIO – O conheci em Paris. Estive com
ele duas vezes, em Paris. Eu fiquei n’O
Cruzeiro até ser convidado para almoçar por um colega, que me chamou para trabalhar
em uma empresa que estava para lançar uma revista chamada Manchete. Topei.
ZONA SUL – Vamos voltar só um pouquinho no
tempo. No período em que você trabalhou n'O
Cruzeiro, qual foi sua cobertura jornalística mais expressiva?
GERVÁSIO – N'O Cruzeiro eu não fiz cobertura nenhuma expressiva. Eu estava
aprendendo, ou seja, seguindo os verdadeiros cobras da fotografia, para ver
como eles procediam no seu serviço. Foi muito rápido. Naquele almoço com meu
colega conheci um dos maiores jornalistas do país, o dono da Tribuna de Imprensa, Hélio Fernandes –
irmão do Millôr. Ele olhou pra minha cara e perguntou se eu era fotógrafo? “Estou
tentando” E se eu queria trabalhar com ele. “Depende de quanto você me pagar”.
Eu ganhava, n’O Cruzeiro, 25
cruzeiros por semana. Era dinheiro que vou te contar! Hoje seriam uns 400 ou
500 reais por semana. Eu estava feliz que nem pinto em bosta! Perguntei ao
Hélio Fernandes quanto ele me pagaria. Ele devolveu a pergunta: “quanto você quer
receber?”. Eu disse que ganhava 25, mas estava no "come e dorme"...
Estava havendo uma greve, talvez de médicos. Ele me mandou fotografar.
"Quando você voltar com as fotos, eu digo quanto pago". Fui, fiz as
fotos e voltei. Entreguei as fotos para revelar a um laboratorista chamado
Aymoré Marela. Ele era mais gaiato do que eu. Me chamou de pau-de-arara. Eu
respondi: “o pau ta aqui, a arara está na sua gaiola”. Depois que as fotos
foram
reveladas,
Hélio Fernandes viu e disse: “bacana, vou lhe pagar, por semana, 40 cruzeiros”.
Topei na hora! Eu era um mercenariozinho atrás de dinheiro. Passei a ganhar 40
e com a vantagem de já aparecer nas colunas. Larguei O Cruzeiro.
ZONA SUL – Antes de passarmos à sua fase na Manchete, conte qual a impressão que
você tem de Assis Chateaubriand, que foi um dos mais controversos jornalistas
da história do país.
GERVÁSIO – Doutor Assis era um sonhador, um
visionário, um capitão de indústria. O jornalismo brasileiro lhe deve muito até
hoje. Ele e mais alguns abriram um horizonte espetacular para o jornalismo
brasileiro. Samuel Wainer foi outro precursor, com o jornal A Última Hora. Fiquei na Manchete até o que considero os dias de
ontem, quando implodiram a empresa. Jamais imaginei que fossem acabar com a
empresa Bloch, com a potência que tinha. Entrei na Manchete antes de a revista ter circulado.
ZONA SUL – Quer dizer que você conhece a
história da Manchete desde o número 1 até o último número que circulou.
GERVÁSIO – Conheço os meandros totais da
empresa. No primeiro número, o Hélio
Fernandes perguntou onde eu tinha nascido.
Disse que era natural da Bahia, como o Brasil. Ele me mandou fazer uma reportagem
na Bahia, para ilustrar o primeiro número da revista. Perguntei quem pagava as
passagens. “Somos nós”, ele disse. Pagaram, e eu fui para Salvador. Lá,
conversando com alguns conhecidos, me contaram que no dia seguinte teria uma
puxada de rede de xaréu. Dei sorte: era uma manhã de verão maravilhosa. Fiz as
fotos dos pescadores puxando a rede. Voltei para o Rio de Janeiro, revelei o
material, mandei ampliar e entreguei ao Hélio. Foi quando saiu a primeira
reportagem minha: “Pesca do Xaréu”. O Hélio Fernandes ficou feliz, gostou. A
partir daí, deslanchei.
Foto: Moreira Mariz |
ZONA SUL – Você não é baiano só de comer
xaréu, joga capoeira também. Dizem que você é bastante valente!
GERVÁSIO - Na Bahia aprendi alguma coisa de
defesa, saltando capoeira, com os mestres Bimba e Gato, além de outros. Desenvolvi
a capoeira de tal maneira que, há mais ou menos um ano, pude me defender quando
tentaram me assaltar na quadra 106 Norte, aqui em Brasília. Um sujeito olhou
pra mim e perguntou: “tem cigarro aí, companheiro?”. “Não fumo”. Ele insistiu:
“tem dinheiro?”. “Tenho pouco”. “Tem cheque?”. “Ando duro”. “Cartão?”. “Não sei
o que é isso”. Nessa conversa com o malandro, fiquei olhando nos olhos dele,
pra ver onde ele ia se coçar. Eu ia dar uma cabeçada no plexo dele. Nisso, um
cara veio por trás e me deu uma cacetada com um porrete. Caí com a cara no
chão, sacudi a cabeça, passei a mão, e quando senti o sangue, pensei: “é agora
ou nunca”. Um dos caras deu a volta e tentou meter a mão em meu bolso. Segurei seu
pulso. Minha sorte é que sou canhoto, e ele veio exatamente na direção do meu braço
esquerdo. Depois meti os dedos nos olhos dele. Quando o cara gritou – “me cegou”
- já veio outro com um porrete, pela frente. Nessa hora a tonteira já tinha
passado. Comecei a jogar as pernas pra um lado e pro outro. No meio daquela
luta, um cidadão acompanhado de uma jovem parou o carro e desceu com um tranca
direção na mão, para me ajudar. Um Fiat 147 também parou. O motorista: “Gervásio!”.
Quando juntamos três contra três, os malandros abriram o gás. Um dos caras que
me ajudaram me levou para o pronto-socorro, já que eu estava sangrando no
ouvido, por causa da paulada. Pedi ao diretor do hospital, doutor Cabeçudo, que
evitasse a publicação de qualquer matéria. Ele disse um repórter já tinha
recolhido as informações do caso. No outro dia um jornal publicou que eu tinha
escapado de um assalto graças a minha capoeira. Fiquei meses aperreado com as
brincadeiras que tiraram comigo, por causa desse negócio de capoeira.
ZONA SUL – Mas não foi este o episódio que fez
nascer sua fama de valente...
GERVÁSIO - Tive um atrito com um dos mais
fogosos comissários que conheci na vida, o Deraldo Padilha, no Rio de Janeiro.
Ele tinha acabado com o trottoir, no
Rio. O bicho era manhoso mesmo. Fui fazer umas fotos de duas mulheres que
estavam sendo acusadas de ter participado do crime do castiçal. Era um negócio que
envolvia pederastia.
ZONA SUL – Segundo o site http://www.cyberpolicia.com.br, no final da década de 60, o
renomado decorador Gerardwin Brandão foi estrangulado. Os assassinos utilizaram
um cordão de cortina e depois partiram o crânio da vítima com um castiçal. O
corpo foi escondido debaixo de uma cama de casal.
Foto: Moreira Mariz |
GERVÁSIO – Fui pedir ao chefe da
investigação, o delegado Baunilha, autorização para fotografar as moças. Ele
falou que geralmente não permitia, mas como eu tive a delicadeza de pedir
permissão, ele facilitaria. Elas estavam prestando depoimento, quando
terminassem, que fossem descer, ele me avisaria. A delegacia era antiga, na Rua
Bambina, em Botafogo. Tinha dois andares. Eu estava em pé, com a minha
Rolleyflex. Baunilha avisou que estavam descendo. Agradeci e fiquei esperando.
Uma das mulheres conhecia o comissário Padilha. Ele era um pornográfico. Com a
mulher ao lado, olhou pra mim e xingou: “seu filho disso, filho daquilo”. O
comissário perguntou se eu o conhecia. Respondi que pessoalmente não. “Você não
vai fotografar nem entrevistar essa mulher, seu filho disso, assim, assim...”. Respondi:
“preliminarmente, esses palavrões aí servem para o senhor e a sua raça. E se
sair aqui com essa mulher, eu fotografo”. Ele olhou e disse: ”metido a machão...”.
“Metido não, eu sou macho!”. Padilha saiu com a mulher, parou na escada do
prédio e provocou: “fotografa, se é homem”. Mal ele fechou a boca, eu fiz duas
fotos. Naquela época, ainda tinha que rodar o filme. Quando fiz as fotos, ele me
chamou de filho da puta, empurrou a mulher pra o lado e partiu pra cima de mim.
Quando abriu o casaco e meteu a mão no berro, dei um salto e uma cabeçada nos
peitos dele, que o derrubou sentado. Em seguida, pulei, joguei os pés pra trás
e dei um coice. Caiu mais um para trás. Veio um terceiro, eu pensei, “é agora”.
Comecei a jogar as pernas, foi um pega pra capar. Fugi quando disseram “prendam
ele”. Peguei minha máquina e entrei no primeiro táxi que passou. Mandei ir para
a redação da revista. Otto Lara Rezende era o meu diretor. O rapaz que trabalhava
comigo chamava-se Darwin Brandão. Ele perguntou o que tinha havido. Expliquei
que um tal de Deraldo tinha xingado minha mãe, eu tinha devolvido o xingamento
e dado uma cabeçada nele, além de ter jogado dois polícias no chão, antes que o
comissário puxasse o trinta e oitão dele. Acharam que era exagero meu.
ZONA SUL – Qual foi a reação das pessoas que
ouviram essa sua história?
GERVÁSIO – A princípio acharam que era
exagero meu. Um redator meu amigo começou a chorar. Perguntei por que. Ele disse
que o comissário tinha dado uma carreira nele, na praia. Agora se sentia vingado
porque eu tinha dado umas porradas nele. Fui pra redação e revelaram o filme.
Pedi uma grana pra pegar o trem e ir embora. Eu sabia que em pouco tempo a cana
viria atrás de mim, tinha que me mandar. Quando estava naquele diálogo, a
telefonista ligou para a redação e disse que estavam me procurando. Achei que
era a polícia. A redação desceu em peso, em solidariedade a mim. Mas não era a
cana, era a imprensa do Rio de Janeiro querendo saber quem era Gervásio
Baptista que bateu no fogoso comissário Padilha. O mínimo que deram no outro
dia foi esse título que eu nunca esqueci: “Fotógrafo da revista Manchete acaba
com cartaz do fogoso comissário Padilha”.
Dei a entrevista que queriam e fui
embora pra casa. Eu morava em Cascadura. Peguei meu trem e fui embora. No outro
dia de manhã, eu vinha no trem cheio, naquele desespero. Tinha um cara na minha
frente, sentado no banco, olhando pra minha cara e rindo. Como eu era invocado
mesmo, perguntei: “ô, malandragem, eu tou de batom?”. Ele disse que não e
mostrou o meu retrato no jornal ilustrando um texto que falava que eu tinha
batido no Padilha. Na saída da Central do Brasil, o povo vinha comigo, pedindo autógrafo.
Quando cheguei na Manchete, que era
perto da Central do Brasil, Adolpho Bloch gritou: “lá vem o Gervásio e o povo está
atrás dele, arreia as portas”. Ele ficou com medo que quebrassem a Manchete. Mas as pessoas só queriam o
meu autógrafo. Por conta de episódios como esse, passei a ser considerado
dentro da revista como o machão. Fiz as viagens mais importantes daquele época.
Uma delas foi a queda de Perón. Ele era o terror da Argentina. Qualquer viagem
que tinha briga, mandavam eu ir.
Foto: Moreira Mariz |
ZONA SUL – A primeira dessas viagens
internacionais foi pra onde?
GERVÁSIO – Foi para Nova York, cobrir a inauguração
da linha da Varig. Fui com um jornalista que é considerado uma enciclopédia, o Armando
Nogueira.
ZONA SUL – E nessas viagens de conflito,
qual foi a primeira?
GERVÁSIO – Foi para Buenos Aires. Tentaram
derrubar Perón, mas ele comeu todo mundo pela proa. Mas eu era persona non grata. Eles pensavam que eu
era da revista O Cruzeiro, mas eu era
da Manchete. Um dia levei umas
porradas. Eu soube que em uma tentativa de derrubar Perón, mataram muita gente.
E que muitas vítimas seriam enterradas em um valão, no Cemitério de la
Chacarita. Fui lá. Foi comigo, a pedido de um colega, um fotógrafo de O Cruzeiro que tinha vindo da guerra. O
cara tinha o braço todo marcado, havia sido prisioneiro. Ele não podia ver
metralhadora ou pistola que entrava em crise. Quando chegou ao cemitério, fui
entrando e mandei ele me seguir. Fui procurar onde era o valão. Lá pelas tantas,
encontrei um coveiro, todo vestido de preto. Em castelhano, perguntei onde
estavam os corpos que seriam enterrados. Ele falou que não era possível fazer
fotos. Disse que eu era um jornalista especial. Ele ameaçou me prender. Dei um
bofetão que o homem caiu dentro da cova. Chamei o colega que tava comigo e
disse para irmos embora, porque o pau ia comer. O coveiro meteu um apito na
boca e começou a soprar. Quando cheguei na porta do cemitério com meu amigo, tinha
uns caras com metralhadoras. Meu amigo entrou em crise. Pedi para baixarem a
arma, disse que não iríamos reagir. Expliquei que não éramos de briga, mas de
paz. Eu falando isso, mas já marcando o soldado pra dar-lhe uma porrada. Moral
da história: fui parar no 29º Distrito. O embaixador do Brasil, naquela época,
era um sujeito chamado Boulitreau Fragoso. Eu estava indo dentro da caminhonete
da polícia, eu e o outro fotógrafo. Quando passamos em frente ao hotel, gritei:
“embaixador, estou indo em cana”. Ele botou a mão na testa quando olhou e viu
que era eu. O embaixador
seguiu a viatura da polícia e me tirou do xadrez. Mas eu era tão agoniado que arrumei
confusão dentro da delegacia. Um cara tenteou me dar uma bolacha, eu agachei e
ele encheu a mão na parede. Eu ainda zombei: “você se machuca”. Ele partiu pra
cima de mim, pulei daqui, pulei dali, peguei uma
cadeira e
mandei ver. Quando eu estava saindo da cadeia com o embaixador, apareceu o cara
em quem eu tinha dado a cadeirada. Eu disse pra ele: “se lhe encontra na rua eu
lhe mato, viu?”. (risos). Como eu falei em português e o cara não tinha
entendido, ele ficou perguntando o que eu tinha dito.
ZONA SUL – Essa foi a sua primeira prisão?
GERVÁSIO – Não, eu já tinha sido preso várias
outras vezes.
ZONA SUL – No total, você foi preso quantas
vezes?
GERVÁSIO – Olha, somando assim, acredito que
umas 40 ou 50 vezes. Só na Revolução de 1964 eu fui preso onze vezes.
ZONA SUL – Isso durante toda a ditadura?
GERVÁSIO – Não é ditadura, pelo amor de
Deus. Foi no governo militar. Fui preso 11 vezes no Rio. A patrulha me via e
levava para a delegacia.
ZONA SUL – Você também esteve, por exemplo,
na guerra do Vietnã...
GERVÁSIO – Pera aí, eu chego lá. Fiz durante
16 anos concurso de beleza, quando concurso de beleza existia. Tanto que o
doutor Cid Varela, de saudosa memória, que Deus tenha a sua alma também, disse certa
vez: “no dia em que Gervásio se afastar do concurso de beleza, acaba”. Quando
eu desisti de cobrir o concurso, começou a cair e acabou.
ZONA SUL – Você conseguiu fotografar as duas
polegadas a mais que a Martha Rocha tinha nos quadris?
GERVÁSIO – Não foi polegada a mais não, mas
se ela disse que foi, eu aceito. Eu não medi, mas não acredito nessas polegadas
a mais. Naquela eleição da Martha Rocha, a moça que ganhou o miss universo foi
uma americana chamada Miriam Stevenson. E ela não tinha defeito. Eu sabia
enxergar o tipo de beleza que queriam para o concurso. A americana era
completa. A omoplata, os quadris, o comprimento das pernas... Agora, nós
brasileiros, tínhamos que dar um conforto a Martha Rocha, que tirou o segundo
lugar. Levei 16 anos cobrindo concurso de miss, mas eu já estava ficando afeminado...
ZONA SUL – Afeminado?
GERVÁSIO – É, afeminado. Eu já estava
falando meio diferente com as mulheres. Um dia
sentei numa certa roda, cruzei a
perna, e vi aquela perna meio assim. Resolvi deixar pra lá a cobertura dos
concursos de miss. Deixei de fazer o concurso porque já estava me sentando nas
cadeiras cruzando as pernas. Só faltava levantar as pernas. Deixei também porque
o concurso começou a cair. Mas na verdade o que me tirou do concurso foram umas
tais de diárias. Eu fazia tudo. Fotografava, escrevia... É preciso que se
esclareça. Eu escrevia porque a Manchete
tinha os maiores copydesks do Brasil.
Eles consertavam as concordâncias, os verbos... Por isso eu escrevia.
Alda Morais, miss Guanabara 61Foto: Gervársio Baptista |
ZONA SUL – Eles faziam uma cirurgia plástica
no seu texto...
GERVÁSIO – Com certeza. Eu acredito que até
um pouco mais. Aparecia escrito assim. Texto e fotos Gervásio Baptista. Me
davam dez ou doze páginas numa revista, paginas inteiras.
ZONA SUL – Posso fazer uma pergunta
indiscreta e íntima?
GERVÁSIO – Pode fazer que eu respondo.
ZONA SUL – Depois de trocar os xaréus da
pescaria baiana pelas misses internacionais pintou muita sereia na sua rede?
GERVÁSIO – Olha, eu não me lembro. (risos).
Eu era um jovem. E como jovem, às vezes dava uma olhada pras pernas e pros
gestos delas. Aquelas maneiras me aguçavam o desejo de avançar, mas eu me
detinha.
ZONA SUL – Você era casado na época?
GERVÁSIO – Ainda não.
ZONA SUL – Então posso colocar essa parte na
entrevista, não é?
GERVÁSIO – Se quiser... Eu não tenho nada
contra o seu jornal, nem contra você. Você é quem sabe o que vai escrever.
ZONA SUL – Eu só não quero lhe trazer
problemas...
GERVÁSIO – Não tem problema nenhum, minha
mulher sabe que eu sempre fui um velho descarado. (risos)
ZONA SUL – Você sempre foi um velho?
GERVÁSIO – Sempre não. Só agora eu sou um
velho. Eu sempre fui descarado. Veja que estou sendo acessível e você está querendo
me sacanear...
ZONA SUL – Eu estou é lhe ajudando...
GERVÁSIO – Ajudando uma ova! Está me
provocando. Não vem que não tem. Vamos embora, continue a entrevista...
ZONA SUL – Vamos mudar de assunto, as misses
já estão todas vestidas, no camarim...
GERVÁSIO – Não estão vestidas, estão de
maiô...
ZONA SUL – Maiô Catalina...
GERVÁSIO – Você tem uma memória prodigiosa!
ZONA SUL – Memória e idade.
GERVÁSIO – Diga-se de passagem.
ZONA SUL – Esse negócio de idade é
interessante. Beto Carrero morreu hoje, aos 70 anos. Eu achava que ele tinha
pouco mais de 50. (A entrevista foi realizada no dia 1º de fevereiro de 2008).
GERVÁSIO – Beto Carrero morreu? Eu não
sabia. Ele tinha 70 anos mesmo, mas era bem cuidado.
ZONA SUL – Se Beto Carrero tinha 70, Silvio
Santos deve ter uns 115...
GERVÁSIO – Não, 115 não, mas ele está com
quase 90.
ZONA SUL – E está novinho.
GERVÁSIO – É, mas ele parece uma estátua. Conheci
uma moça no Rio, vou omitir seu nome. Ela frequentava uma escola de samba. Fez
tanta operação plástica que na hora que começava a rir, a perna levantava. (risos)
ZONA SUL – É bom omitir o nome mesmo.
GERVÁSIO – Sim, por respeito à ausência
dela. Mas, como eu estava dizendo, trabalhando na revista Manchete conheci as figuras mais curiosas dessa República e do
mundo. Na égide da minha câmara, passaram, por exemplo, Perón, o presidente
americano Eisenhower, a Rainha Elizabeth e Craveiro Lopes - presidente
português deposto na Revolução dos Cravos – e eu também estava lá. Também fui
indicado para fotografar a guerra do Vietnã. Na época se cogitou de o Brasil enviar
tropas. Afortunadamente, não deu certo.
ZONA SUL – Você esteve no campo de batalha?
ZONA SUL – Você correu riscos? Chegou a se
embrenhar no mato?
GERVÁSIO – Vou explicar. Sofri uma depressão
muito grande lá. Eu não sabia que a humanidade tinha a capacidade de fazer as
atrocidades que estavam cometendo dentro de Saigon. Nem as crianças nem os
civis escaparam. Olhava para trás e via uma nação que tinha se formado para
defender o torrão deles. Antes dos americanos posarem lá, os franceses
estiveram guerreando. Quando os franceses saíram, os americanos entraram e
levaram fumo. Essa é a verdade. Foi essa tristeza que me deu no Vietnã, quando
estive por lá na companhia de vários jornalistas brasileiros. Fomos cinco ou
seis. Naquela ocasião o José Hamilton, que hoje trabalha no Globo Rural, perdeu
uma perna ao pisar numa mina terrestre. Outro dos repórteres que me
acompanharam foi Murilo Melo Filho.
ZONA SUL – Que é potiguar.
GERVÁSIO – É preciso que se reverencie esse
nome. Murilo Melo Filho era uma alavanca dentro da empresa Bloch e continua
sendo a criatura simples, mas dotada de uma inteligência espetacular. Ele é da
Academia Brasileira de Letras.
ZONA SUL – O que você recorda de mais
impactante em Saigon?
GERVÁSIO – Lembro que uma noite saí para dar
um bordejozinho em uma boate. Eu era amigo do ministro da imprensa que
coordenava as entrevistas. Ele disse pra mim: “saia, mas tome cuidado, porque os
vietcongs estão matando americanos com estilete de bambu”. O vietcong enfiava o
estilete nas costas, no pulmão do cara, e botava o bicho de cabeça pra baixo no
tonel de lixo. Eu não tinha cara de americano, mas podiam me confundir.
ZONA SUL – Tem alguma cena que lhe chocou,
que lhe causou maior impacto?
GERVÁSIO - Sim, como lhe disse, o que mais
me entristeceu foi ver a juventude, as crianças, os rapazinhos e as mulheres
presos na cadeia americana. Não vi mortes. Fui para o campo de batalha, mas
eles bombardeavam um dia sim e um dia não. Vi o que tinha lá de armas. Tenho
fotografia eu fardado de soldado, com os canhões na frente. Naquela época tinha
muito homem de cor, negro, como eu. Lembro que uma tarde eu estava conversando
com dois americanos, com meu inglês de beira de cais. Eu perguntei se ele
estava no Vietnã para brigar pelo seu país. “Não, não vim brigar porra nenhuma.
Mandaram a gente para o Havaí, fazer treinamento. De lá viemos direto para cá”.
Na guerra tinha também uns caras de chapéu grande, eram os mercenários
canadenses, que recebiam muito dólar para lutar. Essas coisas foram me deixando
revoltado. Uma manhã, em uma entrevista coletiva do general comandante das
forças americanas, pedi ao ministro da imprensa que fizesse uma pergunta, já
que meu inglês não era lá essas coisas todas. A meu pedido, ele indagou ao
general porque tinha muito mais negros do que brancos nas forças armadas dos
Estados Unidos. O ministro falou: “mister Batista, do Brasil, pergunta por que
tem tanto homem de cor”. O general, com uma varinha na mão, falou, de pé: “quem
é Batista”. “Eu estou aqui, senhor”. “Saia!”. O general me botou pra fora. Quando
eu estava saindo, passei por perto da mesa, onde tinha um cacho de uvas. Peguei
uma delas e saí comendo. O general ficou esbravejando que não admitia que eu viesse
do Brasil provocar o país dele. Considerou aquela pergunta uma ofensa. Falou que
ninguém tinha nada contra os homens de cor.
ZONA SUL – Você pegou pesado...
GERVÁSIO – Quando voltei do Vietnã, passei
pelo Havaí. Lá a imprensa me procurou,
querendo saber o que eu achava daquela
guerra. Eles já sabiam do que tinha havido na coletiva do comandante americano.
Outra vez eu perguntei porque tinha tantos negros e canadenses no campo de
batalha. E disse também que os vietcongs estavam a ponto de botar os americanos
pra fora do país, a tapa. Continuei minha viagem. Quando cheguei a Los Angeles,
tinha um representante da Manchete me
esperando. Seu Adolpho Bloch tinha mandado a ordem para eu não falar mais nada
sobre os Estados Unidos e regressar ao Brasil. Retornei e contei tudo para seu
Adolpho, que era um visionário como Assis Chateaubriand. Ele me mandou tirar
férias. Enquanto eu estava descansando, os vietcongs entraram em Saigon, deram
porrada em tudo que era americano, pintaram o diabo. Seu Adolpho Bloch, quando
soube, mandou publicar tudo o que eu tinha contado e fotografado. Essa é a vida
de um lambe-lambe - como se chama no Brasil.
Adolpho Bloch |
ZONA SUL – Você também esteve em Cuba,
durante a revolução cubana.
GERVÁSIO – Naquela época Fidel era jovem,
hoje é um senhor. Lembro que ele me deu um chá de cadeira. Ele começou a fazer
um discurso às 11 da manhã. Às seis da tarde ele continuava falando. Eu de saco
cheio e ele falando. A experiência de Cuba foi muito válida. Fui lá quando a
revolução comemorou seu primeiro ano. Foi quando vi Fidel falar durante sete
horas.
ZONA SUL – Ele empolgava a massa mesmo...
GERVÁSIO – Empolgava não, ainda empolga. A
presença dele ilumina a raça. É um ser humano diferenciado, é carismático.
Dialoguei com o que morreu, Che Guevara.
ZONA SUL – É outra figura controversa.
Enquanto uns idolatram, outros o classificam como sanguinário. Deu para você
formar alguma opinião?
GERVÁSIO – Não. Lembro que perguntei a ele o
que ele estava fazendo em Cuba, já que não era cubano, mas argentino. Ele
parou, olhou pra mim e disse: “você é repórter? Qual seu órgão?”. Eu disse que
era uma revista semanal brasileira. “O que você faz aqui, tirando suas fotos, é
a mesma coisa que faço eu. Só que eu defendo o povo”. Foi essa a resposta que
ele me deu. Eu me embaracei e pedi perdão. Ele disse que jornalista é igual em
todo o mundo. Fotografei Che com um charuto maior que o rosto dele.
ZONA SUL – E a Revolução dos Cravos, como
foi?
GERVÁSIO – Acompanhei o povo. Cheguei lá
logo que o governo caiu. Acompanhei uma passeata, as pessoas com os cravos. Foi
lindo, lírico. As mulheres dando flores aos heróis que livraram Portugal
daquela situação.
ZONA SUL – Como era fazer uma cobertura
desse tipo para um país como o Brasil, que vivia sob o regime militar?
GERVÁSIO – Sempre tinha alguém espiando o
que fazíamos. Eu aproveitava para fotografar as belezas de Portugal. Não queria
saber de política, mas fui obrigado a registrar as coisas líricas que eu vi, as
entregas dos cravos pelas pessoas nas ruas e o povo vibrando com a vitória da Revolução
dos Cravos.
ZONA SUL – Você foi muito censurado no seu
trabalho?
GERVÁSIO – Eu nunca sofri censura no meu
trabalho. Eu procurava reprimir a minha
revolta. Afinal eu era pago para mostrar
as coisas, erradas ou não. Se eles não querem isso aqui, eu vou mostrar através
disso daqui. Eu fazia fotografia para as pessoas fazerem as interpretações.
Foto: Moreira Mariz |
ZONA SUL – Você também foi preso por razões
políticas ou apenas por causa de episódios violentos?
GERVÁSIO – Fui preso por razões políticas,
sem ser político. Quando eclodiu o problema militar, eu era amigo do presidente
João Goulart. Eu tinha acesso razoável a ele, desde quando Jango ainda não era presidente.
Éramos amigos. Quando ele foi ministro, o fotografei muito. Quando chegou à
Presidência, continuei com a mesma liberdade de aproximação. Certo dia ele me
perguntou se eu trabalhava apenas na Manchete.
Respondi: “e olhe lá! Eu agradeço eles me aguentarem”. Ele me deu um emprego no
Instituto Brasileiro do Café. Eu disse que não entendia de café, só de beber.
Ele me deu uma passagem para Nova York e me mandou tomar posse. Disse que
depois me requisitaria para trabalhar no Rio. A agência do IBC em Nova York era
na 5ª Avenida. Já na chegada, pensei: “tou bem na foto”. Me hospedei em um
hotel perto. Depois de uma semana, voltei para o Brasil.
ZONA SUL – Sentiu saudades do feijão preto?
GERVÁSIO – Não do preto, porque não sou
racista. Senti saudades do feijão. Então, voltei para o Brasil e me apresentei
ao presidente. Disse que não tinha me adaptado bem ao trabalho e que ele que
podia cancelar a minha admissão. Mas Jango telefonou para o ministro da
Educação - não lembro o nome – e mandou arranjar outro emprego para mim. Fui
contratado como conservador de museu. Meu trabalho era examinar as obras de
arte. Fiquei apenas alguns meses. Quando a crise eclodiu, comecei a ser
perseguido. O glorioso Exército instituiu o regime militar. Os caras me viam em
pé no ponto de ônibus e já paravam. “Entra”. Eu entrava na caminhonete e ia
para o quartel.
ZONA SUL – Nessa época devem ter ocorrido as
onze prisões...
GERVÁSIO – Começou aí, por causa da minha
ligação com Jango Goulart. Passados uns três meses, tiraram o emprego que eu
tinha no museu, que era dirigido por um grande artista, o Clovis Bornay. Ele era
o meu chefe. Em síntese, esta foi a minha passagem pelo regime militar.
ZONA SUL – Você acredita na tese de que
Jango foi assassinado?
GERVÁSIO – Não creio que tenha sido
assassinado, não aceito. O Jango era um homem muito equilibrado, sobretudo no
que tange à profissão dele, de político. Ele sabia que era um cara muito
visado. Diziam sempre que ele era comunista, mas o Jango não era comunista. Era
um homem do povo, é diferente. Lembro que certa vez fui com ele à sua fazenda,
em São Borja. Em determinado momento fui com ele escolher uma ovelha para a
gente comer. Debruçado na cerca, perto de uma porção de tora de madeira,
olhando para aqueles animais no pasto, Jango comentou: “pois é, Gervásio,
imagine a fortuna que tem aí e os caras ainda dizem que eu sou comunista...”.
Perguntei por que ele tinha comentado aquilo. “Porque dizem que eu sou
comunista, mas eu não sou comunista!”. Eu o chamava de pirata, porque ele tinha
a perna dura. Um dia ele me interpelou sobre o motivo do apelido. Expliquei que
era por causa da música, “Pirata da perna-de-pau”. Ele respondeu que vindo de
mim, aceitava. Perguntei por que ele não operava. “E o que vou dizer às mulheres?”.
Ele gostava muito de mulher, fui testemunha.
ZONA SUL – Circula um boato que você chegou
a emprestar seu carro para Jango farrear...
GERVÁSIO – É verdade, e não foi uma vez só.
Ele usava meu carro para dar umas voltas e ver como estava a cidade.
ZONA SUL – E você sabe o nome dessa “cidade”
que ele costumava ver?
GERVÁSIO - Sei, Angelita Marti... Ôoo
(risos)
ZONA SUL – Quase que eu lhe pego!
GERVÁSIO – Carlos Machado tinha as maiores
coristas. Entre elas tinha essa moça, Angelita Martinez. A criatura tinha um
paiol pra homem nenhum botar defeito!
ZONA SUL – O patrimônio era grande...
GERVÁSIO – Não sei se era patrimônio, mas
era o ganha-pão dela... Eu emprestava meu Opel alemão. Era um carro conversível,
já usado.
ZONA SUL – Antes dessa fase com Jango, você
viveu um momento marcante no funeral de Getúlio Vargas...
GERVÁSIO – Quando Getúlio faleceu, eu estava
na Manchete. Adolpho Bloch me mandou
cobrir o sepultamento do corpo, em São Borja. De Porto Alegre pra lá, deu umas
quatro horas. Era mês de agosto, um frio terrível. Pensei que não aguentaria muito
tempo naquele frio. Mas fui fazer meu trabalho. Fotografei Tancredo chorando, o
chanceler Oswaldo Aranha falando emocionado... Estavam lá o Jango, Tancredo,
Alzirinha... Foi aí que começou meu relacionamento com Tancredo. Quando acabei
de fazer a cobertura, alguém sugeriu que eu tentasse arrumar uma carona em um
dos dois aviões da Presidência. Eles tinham ido levar autoridades para o funeral.
Tomei um ônibus para o aeroporto. Lá, tinham dois aviões: um deles era um C-46.
Tinha um soldado em pé. Eu estava enrolado em uma capa. Ele perguntou se eu era
passageiro do avião. “Sou, sim senhor. Estou esperando o general Caiado Castro”.
Era o homem forte de Getúlio. “Ah, então o senhor pode entrar, para aguentar
esse frio”. Entrei e me sentei. Disse que era fotógrafo da comitiva. Em pouco
tempo começaram a entrar as autoridades. Quando percebi que vinha o grosso dos
passageiros, me escondi no banheiro do avião. Fiquei sentado feito um fela da
puta, naquele frio desgraçado. O avião decolou, e eu tiritando de frio. Depois
de 40 minutos de viagem, abriram a porta do banheiro. Quando me viu, o general pediu
desculpas e fechou imediatamente. Mas, em seguida, abriu de novo. “O que você
está fazendo aí?”. “Estou viajando”. “Você está preso”. Eu respondi: “sim
senhor, eu sou o lastro, o avião não tem carga”. Me sentaram em um banco perto
do banheiro. Samuel Weiner estava no avião: “Gervásio, me dê seus filmes que eu
quebro seu galho, você não vai ficar preso”. “Xadrez não foi feito pra maluco
nem doido, foi feito pra homem”. Ele insistiu, mas eu disse que só daria o
filme com autorização do Adolpho. Eu estava sentado perto do banheiro e da
porta traseira do avião. Quando chegamos ao Rio, o avião começou a taxiar no
Santos Dumont. Estava naquele passinho meio de ganso, quando o cara abriu a
porta do avião, pra despressurizar. Botei o olho e vi que dava pra pular. “Eu
me arrebento, mas vou.” Eu estava preso mesmo... Poderia ir para o pronto
socorro, mas iria com os filmes. Tinha uns seis filmes, cada qual com 12 poses.
Quando o avião começou a fazer a curva, dei um salto, caí na grama e sai
abraçado com a bolsa de fotografia correndo. O cara que tava servindo
Oswaldo Aranha e Jango no enterro de Getúlio
Foto: Gervásio Baptista
|
Manchete Extra: funeral de Vargas |
de garçom
gritou: “pega”. Respondi: “pega a sua mãe!”. Entrei pelo aeroporto adentro,
peguei um táxi e fui pra Manchete.
Fui recebido com um esporro. Seu Adolpho Bloch, quando me viu no corredor, disse:
“eu não lhe mandei cobrir o enterro do Getúlio?. O que você está fazendo aqui?”.
“Vim entregar os filmes que fiz”. “Como?”. “A cana vem aí me pegar porque entrei
no avião escondido e tou aqui”. Ele mandou parar tudo e fazer uma edição
especial. A Manchete fez a primeira
edição especial com o sepultamento do Getúlio. Adolpho Bloch ainda comentou: “muito
bonito, não vão lhe prender não!”.
ZONA SUL – Você tinha as costas largas...
GERVÁSIO – Não. Costas largas porra nenhuma.
Eu tinha a proteção divina. Depois, a do Adolpho. Costa larga uma ova. Não sou
agulha, pra andar na linha.
ZONA SUL – Depois da cassação de Jango, o
que você foi fazer?
GERVÁSIO – Perdi o emprego no museu, mas
continuei na Manchete. Agora, advirto a você que hoje bato palmas aos militares.
Eles não foram tão ruins assim. Não sou a lei pra julgar ninguém. A revolução
foi feita por eles, conduziram aquele regime militar. Depois que passou, veio o
regime democrático.
ZONA SUL – O Brasil experimentou alguns
avanços durante o regime militar, mas, por outro lado, houve a face negra da
ditadura... É verdade que você chegou a ser preso com Miguel Arraes?
GERVÁSIO – Não fui preso com ele. Quando me
prenderam em Recife, me botaram em uma cadeia onde ele também estava. Fui fazer
uma matéria pra mostrar que o regime militar tinha sido conquistado com
méritos. Essa era a matéria que íamos fazer. Chegamos às sete da noite. Minha
repórter tinha muito prestígio no seio político, mas não lembro o seu nome. Fui
à casa do general pedir para que facilitasse meu acesso para fotografar os
presos. Entre eles tinha dois que eu queria fotografar: um era Julião, o outro
era o jornalista Nilton Coelho da Graça. Fui com um cabo do Exército pedir para
falar com o general Justino Alves Bastos. O rapaz deu o recado, veio uma senhora
nos atender. Ela tinha acabado de mastigar, veio chupando os dentes. Perguntei
para o cabo, “quem é o palito hidráulico”?. Ele contou à mulher que eu a havia
chamado de palito hidráulico. Eu não sabia quem era ela, só ouvi o general
dizer: “recolha ele”. Entrei no xadrez com minha bolsa de fotografia. Lá dentro
estava Miguel Arraes, que perguntou o que eu tinha feito. Eu disse que não
sabia. Contei a ele a história do “palito hidráulico”. Um sargento me viu com a
máquina fotográfica e mandou me transferir para o hospital. Quando entrei no
hospital, a
primeira figura que vi, sentada, foi o Francisco Julião. Ele virou a cara.
Respondi: “tenha medo não que tou preso também”. Depois fui encontrar Nilton
Coelho da Graça.
ZONA SUL – Enfim, qual a identidade do
palito hidráulico?
GERVÁSIO – Eu não sei até hoje. Só sei que
ela era um palito hidráulico. Agora, de 1953 pra cá, fotografei e registrei todos
os presidentes, nem todos com exclusividade, mas em solenidades, todos eles.
ZONA SUL – Entraram para a história as
fotografias que você tirou do presidente eleito, Tancredo Neves, internado.
Houve até uma polêmica. Chegaram a dizer que aquela fotografia foi armada e que
havia uma enfermeira agachada por trás do sofá, segurando tubos de soro.
GERVÁSIO – O sofá estava encostado na
parede. Essa fotografia vai aparecer agora em
uma exposição. A foto que falam
era ele e dona Risoleta. A outra foto inclui os cinco médicos que estavam
cuidando de Tancredo. Lembro que o principal médico dele estava abraçado, doutor
Batista. Pedi ao doutor pra tirar a mão das costas do presidente para não dizerem
que ele estava sendo amparado.
Foto: Gervásio Baptista |
ZONA SUL – Não houve armação nenhuma?
GERVÁSIO – Não.
ZONA SUL – Qual o bastidor daquela foto? O
que ninguém ficou sabendo?
GERVÁSIO – Eu tinha amizade com o presidente
Tancredo desde o enterro de Getúlio. Ele foi eleito e eu acompanhei a luta dele
em Brasília. Primeiro pelas diretas, depois pela votação no colégio eleitoral.
Tenho uma foto ele abraçando o vice, Sarney, no dia em que deram a notícia da
vitória. Eu disse ao jornalista Mauro Sales que tinha conseguido a foto do
presidente abraçando o vice, mas achava que a foto da capa deveria ser dona
Risoleta e Tancredo. Foi daí que nasceu a ideia de me colocarem como fotógrafo
oficial. Eu não queria sair do Rio, mas Tancredo gostava de mim, disse que era
meu chapa e que iríamos trabalhar juntos. Vim para Brasília, mas ele faleceu.
Em seu enterro, quando fui me despedir de Sarney, sucessor de Tancredo disse
que eu continuaria com ele. Minha nomeação como fotógrafo oficial já estava
pronta, continuei com Sarney. Foi uma fase espetacular na minha vida como
profissional. Com Sarney aprendi a ver as coisas politicamente.
ZONA SUL – Qual foi o presidente mais
difícil de fotografar e qual o mais fácil?
GERVÁSIO – O mais difícil pra fotografar foi
Jânio Quadros. Fui fotografá-lo, no Rio, mas ele tinha um olho torto. Mesmo
dentro de um estúdio, levei mais de duas horas e meia para fotografar Jânio Quadros.
Em determinado momento, seu Adolpho perguntou: “como estão as coisas aí?”. Jânio
respondeu: “senhor Adolpho, este seu fotógrafo é um ditador, ele não para de me
dar ordens há mais de duas horas”. Adolpho me perguntou o que estava havendo. “Quem
manda ele ter o olho torto?”, a resposta que dei foi essa. Mas Jânio emendou na
hora: “Viu? Ainda é atrevido”. No final consegui nivelar os olhos dele um no
outro. Se tivesse photoshop na época
teria sido mais simples. Mas sou inimigo do photoshop,
pois ele quer desmoralizar o fotógrafo.
ZONA SUL – E o mais fácil de fotografar?
GERVÁSIO – O Collor foi um sujeito
espetacular. Respeite a resposta que eu vou dar. Ele era um cara bonito. Era
não, é. Mas, sem segundas intenções. O senador sabe que sou um cavalheiro.
Estou dizendo que ele era bonito e era realmente um cara simpático, jovem e fotogênico.
ZONA SUL – Qual a foto que você fez que
considera a melhor? Qual a que teve mais repercussão?
GERVÁSIO – Repercussão, tem duas. Uma foi a
de Tancredo Neves. A outra foi a do JK com a cartola na mão. Têm outras aí, mas
já passou. A melhor foto ainda vou fazer.
ZONA SUL – Qual o bastidor dessa foto que
você tirou de JK com a cartola na mão?
GERVÁSIO – Eu vivia viajando sempre com o
doutor Juscelino. Ele ia fazer inspeção nas
obras, lá ia eu. Eu tinha acesso a
ele. No dia da inauguração de Brasília, viemos uma equipe do Rio para cobrir a
festa. Lembro como se fosse hoje. Quando eu estava de saída do Rio para
Brasília, o diretor Otto Lara Resende disse: “Gervásio, tente fazer uma foto
pra ganhar um prêmio de 50 mil réis”. Parti pra Brasília caladinho que nem coco
na Bahia. Na hora em que JK subiu a rampa, eu falei para ele: “presidente,
preciso fazer a capa da Manchete”. Ele disse, “e daí?”. “Dá uma parada que vou fazer a foto”. Pedi ao
Jango, que estava ao lado de JK para dar uma saída de lado. Mirei o Congresso,
botei JK em pé e pedi para ele tirar a cartola. “Tire a cartola que vou fazer duas
fotos e depois coloque de novo, vai ser rápido”. Ele concordou. Só eu fiz, foi
a capa da revista. Quando cheguei no Rio, disse Otto que a capa estava comigo.
Pingou cinquentinha na mão do velho...
Manchete com a foto de Gervásio |
ZONA SUL – Contam que no governo FHC você
foi fotografá-lo com o presidente do Congresso, Antonio Carlos Magalhães...
GERVÁSIO – Não foi com ACM. Estavam com
Fernando Henrique alguns ministros. Pratini de Morais (miniostro da
Agricultura) me viu e perguntou: “continua na luta?” “Estou buscando o pão de
cada dia”. O presidente FHC virou e disse: “esse fotógrafo aí vem desde o tempo
de Dom Pedro II”. Eu não tinha papas na língua: “vossa excelência me deixa
feliz porque mostra que tem uma memória prodigiosa”.
ZONA SUL – Você fotografou Câmara Cascudo?
GERVÁSIO – Sim e lhe dei um beijo na testa.
Era e foi uma sumidade. Uma das
inteligências
que eu conheci de deixar de boca aberta. Sabia tudo. Se tornou cidadão do mundo
sem sair do Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – Além de Cascudo você lembra outro
potiguar que fotografou? você esteve em Natal?
GERVÁSIO – Gostaria de voltar a fotografar
Natal. Faz anos que estive lá. Sou aficcionado pelas cidades praianas. Gostei
muito das comidas, das peixadas e do povo potiguar, que sabe receber a gente
com aquela riqueza de humildade e respeito pelo homem. O povo do Rio Grande do
Norte é hospitaleiro como o baiano.
ZONA SUL – Fale sobre sua família.
GERVÁSIO – Tenho dois filhos, o Júlio
Baptista e a Selma Baptista. Minha mulher chama-se Ivonete Baptista,
companheira de guerra que me tolera há 40 anos. Vivemos
harmoniosamente dando
força aos netos, que são dois: Juan é filho do meu filho e Pedro, filho da
minha filha. Minha filha é pedagoga, leciona em um colégio da Asa Sul. Meu
filho mexe com fotografia, mas agora está fora da profissão. É universitário de
marketing.
Foto: Moreira Mariz |
ZONA SUL – Que conselho você daria pra quem
hoje brinca com caixa de fósforos sonhando que aquilo é uma máquina
fotográfica?
GERVÁSIO – A situação hoje não permite mais
a ninguém sonhar. Só quem sonha são os bacanas, os milionários.
ZONA SUL – Que orientação você daria para
quem quer entrar na carreira de fotojornalismo?
GERVÁSIO – Primeiro, tem que respeitar o
equipamento, a máquina. Ela passará a ser sua companheira eterna. Além do
respeito, você tem que ser honesto e estar disposto a olhar sempre de frente
para o horizonte. Você chega lá.
ZONA SUL – Como você encarou a falta de
sensibilidade de sua demissão da Radiobras?
GERVÁSIO – Não sei. O que sei é que recebi
um convite dizendo que eu estava demitido e meus colegas de profissão e meus
amigos acharam que era uma grosseria. Depois da pressão que foi feita, disseram
que foi um equívoco e fui readmitido na mesma semana. Agradeço, sobretudo, aos meus
colegas que me deram apoio e a um cidadão que reputo ser um dos maiores
políticos da atualidade. Ele sabe tudo sobre política, é um poeta, um grande
pai de família, cidadão jornalista e um cara que tem um coração do tamanho do
Brasil. Seu nome é José Sarney. É um político que eu respeito e o país tem o
dever de reverenciar, porque governou o país num período de transição saindo do
regime militar para o civil. Ele enfrentou momentos difíceis e saiu bem, graças
a
Deus.
ZONA SUL – Li no Correio Braziliense entrevista sobre fantasmas que estariam aparecendo
no Supremo, local onde você hoje trabalha...
GERVÁSIO – Respondi à repórter que eu não
acreditava. Alguém tinha me contado que teria visto ministros que já tinham
morrido. Fantasma nunca existiu. Acredito em uma vida espiritual depois da
morte. Sempre procuro ver o lado bom das coisas. Que o lado bom esteja com você
e com o povo da sua terra.
Fotos: Moreira Mariz |
O Zona Sul circulou no mês em que o Supremo Tribunal Federal realizou exposição sobre os 50 anos de fotografia de Gervásio Baptista
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