Encontros Impossíveis
Catalogando a Pedra e o Sal
Em uma conversa sobre a
pedra do sertão e o sal do mar, a poeta potiguar nascida na Paraíba reflete
sobre o rigor da biblioteca, a bênção de Manuel Bandeira e o destino trágico que
a uniu à sua própria poesia
“Morro um pouco cada dia, e renasço no que amei.” – Zila Mamede
O encontro não se dá numa praia, tampouco numa
biblioteca convencional. É um lugar intermediário, com a arquitetura rigorosa e
o silêncio que Zila Mamede impunha à Biblioteca Central da UFRN, mas as paredes
não são de alvenaria. São estantes infinitas que se dissolvem na névoa de uma
maresia densa. O cheiro não é de mofo, mas de sal e papel antigo. O som é o de
uma onda longa, quebrando ao longe, e o virar de uma página. Ela está sentada a
uma mesa de catalogação, não de madeira, mas de pedra-sabão, lisa como as
pedras de Currais Novos. Veste-se com a elegância discreta e funcional dos anos
60. Seus olhos, por trás dos óculos, não são sonhadores; são analíticos. Ela
nos olha com a calma de quem passou a vida a classificar o mundo. E, agora, nos
classifica.
Nesta conversa, Zila Mamede fala sobre sua infância
no Seridó, a descoberta do mar em Natal e a "bênção" de Manuel
Bandeira. Ela detalha a tensão entre a bibliotecária rigorosa e a poeta
metafísica, o silêncio de 20 anos que antecedeu sua obra-prima, Navegos,
e a transformação da sua Natal. No clímax do encontro, ela toma conhecimento do
samba-enredo em sua homenagem que a Imperatriz Alecrinense levou à avenida no
carnaval potiguar de 1991. Zila também reflete sobre o seu destino final: a
poeta da "Canção do Afogado" que foi, tragicamente, chamada de volta
pelo oceano.
SuperPauta: Você, que
dedicou parte da vida a organizar o saber humano em fichas e prateleiras, como
se sente neste encontro, onde o tempo parece não ter mais catalogação?
Zila Mamede: (Ela ajeita
os óculos, com um leve e sereno sorriso). É uma sensação... familiar. A
catalogação não é uma luta contra o tempo; é uma tentativa de diálogo com ele.
A ficha catalográfica era a minha forma de dizer ao caos: "Espere.
Deixe-me entendê-lo antes que você se vá". Eu buscava a permanência. O que
fazíamos na biblioteca não era organizar livros; era organizar o rastro
do pensamento humano. Aqui, o pensamento não deixa rastro. (Ela faz uma pausa,
olhando para a névoa salina). Não há mais fichas, há apenas... o fluxo. Para a
bibliotecária, é desconcertante. Para a poeta, é a matéria-prima.
SuperPauta: Li que você
usou, por um tempo, o pseudônimo de "Maiana" na Tribuna do Norte.
Quem era Maiana que Zila Mamede não podia (ou não queria) ser?
Zila Mamede: (Pensativa)
Maiana era um exercício, talvez uma necessidade. Zila Mamede já era a
estudante, a funcionária, depois a bibliotecária. Havia um rigor esperado de
mim. Eu estava construindo uma carreira técnica. Maiana... (ela sorri)
...Maiana era a permissão. Era a moça que podia escrever de um jeito talvez
mais frouxo, mais sentimental, sem o peso da assinatura, sem o medo do
julgamento dos meus pares ou dos meus mestres. Era um biombo. Mas durou pouco.
SuperPauta: Você nasceu
na Paraíba (Nova Palmeira), sua "terra-mãe", mas seu espírito é
potiguar. Onde, Zila, no seu coração, a Paraíba termina e o Seridó começa?
Zila Mamede: O coração
não entende de geografia política. A divisa... essa linha que os homens traçam no
mapa... é uma convenção. Minha terra-mãe, como você diz, é o lugar do meu sangue,
da minha ascendência, do meu Arado. Mas Currais Novos, para onde fui tão
cedo, é a terra da minha memória. A Paraíba é a raiz funda; o Rio Grande
do Norte é o tronco e a folha. O Seridó não é um lugar que começa ou termina, é
um estado de espírito. É uma dureza e uma luz que carrego em mim. Não há
fronteira ali.
SuperPauta: Fale-me das memórias de Currais Novos. Que cheiros da infância no sertão ficaram impregnados na sua alma?
Zila Mamede: (Ela fecha
os olhos por um instante) O cheiro... O cheiro é o da poeira quente ao
meio-dia. Não é a poeira de Natal, que é salgada. É a poeira seca, mineral,
quase vermelha. O cheiro de mofumbo depois de uma chuva rara, que é uma coisa
que o litoral nunca vai entender. O cheiro do couro cru na sela do cavalo. E,
acima de tudo, o silêncio. O silêncio do calor, um silêncio tão denso que
zumbia no ouvido. O sertão foi onde aprendi que o silêncio tem peso, cor e
cheiro.
SuperPauta: Você quase
se tornou freira. O que a jovem Zila buscava no convento? O que a impediu? Foi
a mesma força que a puxou para a biblioteca?
Zila Mamede: Exatamente
a mesma. (Ela fala com convicção). A força era a busca pela ordem. Eu
tinha uma inquietação, uma necessidade de encontrar um sistema que explicasse o
caos do mundo, o caos dos sentimentos. Eu achava que encontraria essa ordem em
Deus, no silêncio do claustro, na rotina da reza. Mas meu pai me impediu. E
agradeço a ele. Porque a ordem que eu buscava não era divina; era humana. Eu
não a encontrei na religião; eu a encontrei no verbo. E, depois, na organização
do verbo. A biblioteca foi o meu convento. Um convento onde, em vez de rezar,
nós catalogávamos. É a mesma busca por transcendência, apenas com um método
diferente.
SuperPauta: O Rio
Grande do Norte é esse estado de contrastes imensos: o sertão e o litoral. Sua
obra inteira parece dialogar com isso. Foi uma tensão dolorosa ou uma síntese?
Zila Mamede: Foi a minha
própria estrutura. Não há tensão. É uma síntese. O sertão, a pedra, é a
minha formação. É o rigor, a memória, a dureza, a disciplina. O Arado é
o meu alicerce. Mas o litoral, o sal... (ela respira fundo) ...o mar foi
a minha libertação. Foi a descoberta do horizontal depois de uma vida inteira
de serras verticais. O mar é o infinito, o metafísico, o caos que a biblioteca
tenta organizar. Minha poesia é isso: a pedra do sertão banhada pelo sal do
mar.
SuperPauta: Rosa de
Pedra (1953) foi sua estreia. O que precisava ser dito ali?
Zila Mamede: A própria
pedra. Eu precisava... (ela procura a palavra exata) ...eu precisava nomear
o peso que eu trazia. O peso do Seridó, o peso da minha infância, o peso
daquela formação rigorosa. O poeta, no seu primeiro livro, muitas vezes está
apenas apresentando seu inventário. Rosa de Pedra foi o meu inventário
do mundo mineral. Eu precisava escrever aquilo para, depois, poder escrever o
mar.
SuperPauta: Manuel
Bandeira elogiou Rosa de Pedra, disse que a obra “merece ficar nas
estantes do lado dos melhores livros de versos brasileiros”. E ele foi além:
“você é poeta até debaixo da água do Capiberibe”. O que você sentiu quando
recebeu aquela carta?
Zila Mamede: (Um calor
visível toma conta de sua expressão. Ela fala com uma reverência de filha). Eu
senti... permissão. Eu senti que não estava sonhando sozinha. Veja bem, eu era
uma moça de Natal, escrevendo versos. Quando o Mestre Bandeira, o homem que era
a própria poesia moderna, me escreveu aquilo... ele me deu o passaporte. Ele me
disse: "Você não está brincando. Continue." E a generosidade dele...
"Poeta até debaixo da água"... (ela sorri para si mesma). Era a
bênção que a bibliotecária rigorosa dentro de mim precisava para deixar a poeta
trabalhar.
SuperPauta: Bandeira
foi seu padrinho literário. Como era essa relação? Você disse que ele era um
"pai" que a "obrigou a estudar".
Zila Mamede: E foi. Um
pai, no sentido mais nobre. Ele não me dava afagos fáceis. Ele me mandava
estudar latim! Ele me dizia: "Quer ser poeta? Então vá ler os clássicos.
Vá entender a estrutura, o ritmo." Ele me corrigia, puxava minha orelha
por carta. Ele não tolerava o verso fácil, o sentimentalismo barato. Ele exigia
de mim o mesmo rigor que eu, por instinto, já buscava na biblioteca. Ele uniu
as minhas duas metades. Devo a ele o ofício.
SuperPauta: Tem alguma
história, uma "bronca" poética, uma carta de Bandeira que a fez mudar
um verso e que você guardava com carinho?
Zila Mamede: (Ela ri
baixo). Muitas. Eu mandava os poemas para ele, ansiosa. Uma vez, mandei um
poema que eu achava... (ela balança a cabeça) ...achava lírico. E ele me
respondeu com uma carta seca. Não lembro as palavras exatas, mas o sentido era:
"Zila, está sobrando adjetivo. Poesia não é enfeite. Poesia é osso. Vá
limpar isso." Ele me ensinou a desbastar, a encontrar o "osso"
do poema. Foi a melhor lição que recebi. Aprendi com ele que um poema termina
não quando não há mais nada a acrescentar, mas quando não há mais nada que se
possa tirar.
SuperPauta: Pouco
depois, veio Salinas (1958). A pedra se transformou em sal. Foi a
influência de Natal, da Ribeira, do mar?
Zila Mamede: Foi. A
pedra é sólida, estática. O sal... o sal se dissolve, é movimento, é o mar. Foi
a descoberta de Natal. Foi a descoberta daquele cheiro de peixe e maresia da
Ribeira, da luz horizontal do fim de tarde na Praia do Meio. Salinas foi
o meu primeiro mergulho. Eu saí do mineral e entrei no líquido.
SuperPauta: O seu poema
"Canção do Afogado", de Salinas, parece uma premonição. Por
que o mar, para você, era um lugar de morte e de poesia ao mesmo tempo?
Zila Mamede: (A voz dela
fica mais grave, mas não triste. Fica serena). Porque o mar é isso. O
mar é o grande símbolo da vida e da morte. É o berço e o túmulo. Não há
premonição em observar o óbvio. O poeta é um observador. O mar nos dá o
alimento, a beleza, a meditação... e nos toma de volta. Ele é a força que não
controlamos, nós que passamos a vida tentando controlar tudo. A "Canção do
Afogado" é apenas o reconhecimento da poeta de que, diante do oceano, a
nossa ordem, a nossa biblioteca, é muito, muito frágil.
SuperPauta: Sua poesia é tátil. O vento, o sal, a pedra. Você "via" o poema antes de escrevê-lo?
Zila Mamede: Eu via a coisa.
Eu via a geometria dela. Me interesso menos pela emoção e mais pela forma
como a emoção se materializa. A pedra, o sal... Mais tarde, o que me interessou
em João Cabral, e o que talvez tenha interessado Drummond em mim, foi isso. A
poesia como uma engenharia, uma arquitetura. O poema não é um suspiro; é um
edifício.
SuperPauta: Por que a
biblioteca? O que uma poeta busca em catalogar o mundo?
Zila Mamede: (Com
firmeza). A salvação. O que a poeta busca no caos do oceano, a bibliotecária
busca na ordem da prateleira. É a mesma busca. A biblioteca é a fé humana
colocada em prática. É a crença de que o conhecimento importa, de que podemos
organizar a experiência humana e passá-la adiante. É a luta contra o
esquecimento. A poeta registra o sentimento; a bibliotecária impede que ele se
perca.
SuperPauta: Você foi
estudar nos Estados Unidos, em Syracuse. O que a biblioteconomia americana, tão
pragmática, ensinou à poeta potiguar? Em quais circunstâncias de se deu a
viagem?
Zila Mamede: A viagem
foi uma necessidade técnica. Fui com bolsa de estudos, pelo Ponto IV, um
programa americano de assistência. Nós estávamos fundando a Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Não se funda uma universidade sem uma grande
biblioteca. E não se funda uma grande biblioteca com amadorismo. O que eu
buscava em Syracuse era o método. O pragmatismo americano me deu as
ferramentas. Eles me ensinaram sobre sistemas, eficiência, sobre como construir
um acervo do zero. Eu fui a poeta para a América, mas voltei a engenheira de
bibliotecas. E era dessa engenheira que a UFRN precisava.
SuperPauta: O próprio
Câmara Cascudo prefaciou O Arado (1959). O que significou ter a bênção
do "Mestre de Natal" neste livro que parece ser a sua volta ao
sertão?
Zila Mamede: Significou
que a ponte entre o erudito e o popular estava sendo construída. Cascudo era...
(ela procura o termo) ...ele era o dono do chão de Natal. Ele conhecia
cada mito, cada história, cada sabor. Ele era o saber vivido. Eu era o
saber lido, o saber catalogado. Quando ele prefaciou meu livro
sobre o sertão, ele estava, com sua generosidade imensa, dizendo que a minha
poesia, embora erudita na forma, tinha a verdade daquela terra. Foi a bênção do
mestre-de-casa para a minha volta.
SuperPauta: Depois de
um silêncio de quase 20 anos sem publicar poesia, veio Navegos (1978). O
que aconteceu nesse intervalo, Zila? Foi a bibliotecária que tomou conta? Foi
um período de maceração? Ou a poesia simplesmente se calou? O que Navegos
queria dizer que os livros anteriores ainda não tinham dito?
Zila Mamede: (Ela
assente, lentamente). A bibliotecária tomou conta. E foi preciso. Eu estava
construindo a Biblioteca Central. Foi o meu poema de concreto e fichas. Ocupou
meus dias e minhas noites. Não foi um silêncio, foi uma gestação. A
poesia não se calou; ela estava sendo vivida na prática da biblioteca.
Quando Navegos veio, não era mais a voz da menina da Rosa de Pedra
ou da moça de Salinas. Era a voz da mulher madura, que havia construído
sua obra, que entendia o tempo, que havia lido e catalogado milhares de livros.
Navegos é o meu livro mais denso porque é o livro da
bibliotecária-poeta. Ele queria dizer que o mar, no fim, é o grande catálogo.
SuperPauta: Como era
seu processo criativo? Era de lapidação, como uma bibliotecária que revisa uma
ficha até a exaustão?
Zila Mamede: Exatamente.
A inspiração, o insight, pode vir do mar, de uma caminhada em Areia
Preta. Mas o poema... o poema é feito na escrivaninha. É um trabalho de
desbaste, como o de Bandeira. É cortar, limpar, verificar cada palavra, cada
ritmo. Eu catalogava meus próprios poemas. Uma ficha de biblioteca e um poema
exigem a mesma coisa: precisão absoluta. Nenhuma palavra pode estar ali por
acaso.
SuperPauta: Você se
sentia parte de uma geração? O Modernismo... Você se encaixava nessas gavetas
que os críticos criavam?
Zila Mamede: Não. Eu era
uma leitora do Modernismo. Eu devia tudo a Bandeira, a Drummond. Mas eu não me
sentia parte. Minha geografia era outra. Minha profissão era outra. Eu era a
bibliotecária de Natal. Isso me dava uma perspectiva única. Eu estava... (ela
sorri) ...na minha própria ficha catalográfica.
SuperPauta: E Carlos
Drummond de Andrade? O que o poeta mineiro, tão reservado, via na poeta potiguar?
Há registros de que vocês trocaram impressões sobre O Arado. Aquele
Drummond telúrico de "Sentimento do Mundo" entendeu o seu sertão?
Zila Mamede: Ele
entendeu a pedra. Drummond, o poeta do ferro de Itabira, entendia
perfeitamente a poeta da pedra de Currais Novos. Nós tínhamos em comum a
matéria mineral de nossas origens. Ele reconheceu em O Arado não o
folclore, mas o peso da terra, a dureza do homem que é feito daquele
chão. Nossas cartas eram de um respeito mútuo, de dois poetas que sabiam que a
poesia, antes de ser sentimento, é matéria.
SuperPauta: E a relação
com Câmara Cascudo, aqui em Natal? Como era o diálogo entre o folclore
exuberante dele e a sua poesia contida, metafísica? Vocês trocavam ideias?
Zila Mamede: Nosso
diálogo era o da construção da UFRN. (Ela pondera). Éramos colegas, nos
corredores da universidade. O respeito era imenso. Mas, como você disse, ele
era a exuberância; eu era a contenção. Ele era o mestre do conto, da história,
do caso. Eu era a mestre da ficha, do sistema, do silêncio.
Natal precisava dos dois. Ele era o nosso passado vivo; eu tentei ser a
organizadora do nosso futuro intelectual.
SuperPauta: Como foi
ser uma mulher intelectual, poeta, diretora de biblioteca, em uma Natal dos
anos 50, 60 e 70? Você sentiu o peso do machismo?
Zila Mamede: (Ela se
torna muito séria). O peso não era de um grito; era de um silêncio. Não era de
uma porta fechada na cara; era de uma porta que nem se cogitava abrir.
Ser mulher e intelectual era ser... uma anomalia. Você precisava trabalhar o
triplo, ser três vezes mais rigorosa, três vezes mais competente, para ser
levada a sério. Qualquer traço de "feminilidade" — o que eles
chamavam de sentimentalismo — era usado para desmerecer seu trabalho. Meu rigor
de bibliotecária não foi uma escolha; foi uma armadura.
SuperPauta: Por que
você insistia em ser chamada de "poeta" e não "poetisa"?
Era uma forma de exigir igualdade de tratamento?
Zila Mamede: (Com
ênfase). Era. "Poetisa" era uma gaveta de segunda classe. Era onde
nos colocavam quando nossos versos falavam de amor, de flores, quando eram
"delicados". "Poetisa" era Cecília, mas "poeta"
era Bandeira. "Poetisa" era um hobby; "poeta" é um ofício.
Eu tinha um ofício. Eu exigia ser tratada pela dignidade do meu trabalho, não
pelo diminutivo do meu gênero.
SuperPauta: Você viu Natal mudar radicalmente. A cidade provinciana que recebeu os americanos, a "capital espacial", a explosão do turismo... O que daquela Natal que você poetizou em Salinas, a Natal da Ribeira, dos cheiros do porto, ainda existe?
Zila Mamede: (Com
melancolia). O cheiro se foi. Aquele cheiro de sal, peixe seco e corda de navio
da Ribeira... O progresso, como o chamam, desodoriza as coisas. A Natal de Salinas
era uma cidade de arestas, de cheiros fortes. A nova Natal... ela me parecia
mais... genérica.
SuperPauta: Você
escreveu sobre a destruição das dunas... Se você caminhasse hoje pela orla de
Ponta Negra, com o Morro do Careca cercado e os prédios avançando, o que seu
coração de poeta diria? Você se sentiria uma estrangeira na sua própria cidade?
Zila Mamede: (Ela nega
com a cabeça, olhando o horizonte de névoa). O que o coração diria... O coração
se calaria de tristeza. A destruição das dunas... eu vi começar. Era a perda da
nossa geometria original. O que fizeram com Ponta Negra... O Morro do Careca
era uma entidade viva. Cercá-lo? Construir aqueles paredões? (Ela suspira). Não
é a cidade que eu ajudei a catalogar. Sim. Uma completa estrangeira.
SuperPauta: O que você
acha que o Rio Grande do Norte fez com o seu legado? Nós, potiguares, soubemos
lê-la como deveríamos?
Zila Mamede: (Ela é
gentil). Vocês me deram a maior honra. Puseram meu nome na casa que eu
construí, a Biblioteca. Um bibliotecário não pode sonhar com homenagem maior.
Mas... (ela hesita) ...ter o nome na porta não é o mesmo que ter a obra na mão.
Meu desejo é que me leiam. Que leiam Navegos. Que leiam O
Arado. Que a minha poesia seja mais frequentada que o prédio da biblioteca.
SuperPauta: Você é
frequentemente chamada de "a maior poeta potiguar". Esses títulos lhe
pesavam ou lhe davam força?
Zila Mamede: (Ela
descarta com a mão). Isso é jornalismo. É a necessidade de criar listas,
hierarquias. É uma catalogação pobre. O que importa? "Maior",
"menor"... A poesia não é uma competição. O que importa é se o verso
é verdadeiro. Se ele permanece. O resto é vaidade.
SuperPauta: Sua poesia
era sobre o tempo lento, a maturação. Hoje vivemos a era rolar as postagens, do
imediato, dos "poemas de Instagram". A poesia sobrevive a essa
velocidade?
Zila Mamede: Sobrevive.
Mas sobrevive mal. (Ela franze o cenho). A poesia exige lentidão. Exige que o
leitor pare. Rolar de um vídeo ou imagem para outra é o oposto da poesia; é o
movimento perpétuo. O poema de Instagram é um consumo; o poema do livro é uma
meditação. Minha preocupação não é com a poesia, que é eterna, mas com o leitor,
que está sendo treinado para nunca mais ficar em silêncio.
SuperPauta: Falamos
tanto de "empoderamento feminino" hoje. O que você diria às mulheres
potiguares de hoje que tentam encontrar sua voz?
Zila Mamede: Não
procurem apenas a voz. Procurem o estudo. A voz sem o rigor, sem o
trabalho, é só barulho. Leiam. Leiam os clássicos. Leiam os homens, leiam as
mulheres. Leiam filosofia, leiam ciência. Não queiram ser "poetisas".
Queiram ser poetas. Conquistem o espaço pelo rigor do trabalho. A
competência é a arma mais silenciosa e mais letal.
SuperPauta: Professora
Zila, sua partida foi abrupta, aos 57 anos, em março de 1985. Um silêncio que
se impôs. Havia mais poemas a serem escritos? Havia algum livro que ficou no
arado?
Zila Mamede: (Ela
assente, gravemente). Sempre há. Um poeta não morre de obra completa. Eu estava
trabalhando na bibliografia de João Cabral... um trabalho de rigor que me
consumia e me ensinava. Eu estava começando a entender novas formas de Navegos.
Aos 57... sim. O arado ainda estava na terra.
SuperPauta: Alguns anos após sua partida, em 1991, a sua poesia, que sempre foi do silêncio e da página, foi para a avenida. A Imperatriz Alecrinense cantou um samba-enredo sobre você. A letra, Zila, que tive a honra de escrever, dizia que você havia aceitado um convite do Atlântico e assumido o comando de uma escola de cultura para os seres marinhos. “O Atlântico chamou pra fazer arte, e ensinar a sua parte / Na escola de cultura dos habitantes do mar / Desde esse dia, peixes e siris / Cavalos marinhos, arraias e sereias / Espalham poesia por suas bolhas de ar /Zila, a saudade que doeu por sua ausência / Gerou um pranto derramado com cadência / Zila, entrou pro time “Poetas de Netuno” / Fez do tubarão um seu aluno / Aprendiz do verso popular / Foi sem avisar, morar no oceano / Entre arraias e lagostas, nos recifes de coral / Foi compor palavra submersa, que acalente o mar trazendo paz / É bom abrir alas que a Imperatriz já chegou / Contando a história que Zila Mamede criou”. O que a Doutora Zila, a bibliotecária rigorosa de Syracuse, acha dessa licença poética do carnaval? O que a "poeta" sente ao saber que seu nome foi cantado por uma bateria inteira, com essa minha letra e música de Babal Galvão?
Zila Mamede: (Pela
primeira vez, a compostura da bibliotecária se quebra. Ela fica em silêncio por
um longo tempo, ouvindo. Um sorriso lento, incrédulo, se forma.) Meu Deus...
(Ela diz baixo, quase para si mesma). Eu... no carnaval? A Doutora Zila... no
meio da bateria do Alecrim? (Ela olha, com uma nova intensidade.) Que... que
generosidade. A bibliotecária de Syracuse está chocada com a imprecisão
factual. (Ela ri, um som límpido). Mas a poeta... a poeta está profundamente
comovida. "Fez do tubarão um seu aluno"... (Ela repete, saboreando).
Que imagem linda. Que ousadia poética. Vocês me tiraram da prateleira
empoeirada e me deram... música. Me deram ritmo. Vocês entenderam o que os
críticos talvez não tenham visto. Que a minha poesia, embora contida, era uma paixão.
Vocês pegaram o meu silêncio e transformaram em batuque. Eu... eu acho que é a
maior honra que já recebi. Obrigada.
SuperPauta: Zila... a
inspiração da letra, "Foi sem avisar / Morar no oceano", veio da
forma trágica e literal como sua vida terminou. A poeta de Navegos e da
"Canção do Afogado" sendo, de fato, levada pelo mar que tanto amou.
Na época, seus amigos escreveram sobre isso. Sanderson Negreiros disse que você
se "encantou-se nas águas fundas do mar". José Jácome Barreto falou
da "morte nos verdes caminhos oceânicos". Naquele dia, em Areia
Preta... o que aconteceu? O mar a chamou?
Zila Mamede: (O sorriso
desaparece, mas a serenidade permanece. Ela olha para o horizonte de névoa
salina). O mar sempre chama, meu caro. Ele me chamava todos os dias, a cada
hora, a cada ficha que eu catalogava de costas para a janela. (Ela faz uma
pausa longa, organizando o pensamento). Você me pergunta o que aconteceu. Você
me pede um fato, o rigor de uma catalogação para aquele momento. Mas há
momentos que, simplesmente, escapam da ficha. A "Canção do Afogado"
não era uma premonição; era um entendimento. Era o reconhecimento de que, entre
o poeta e o mar, há uma linha muito, muito tênue. A vida inteira, eu tentei
impor a ordem da biblioteca ao caos do oceano. Naquele dia, em Areia Preta...
(ela suspira, um som leve como a maresia) ...a bibliotecária parou de
catalogar. E a poeta, que era feita de sal, simplesmente... se dissolveu. O que
Sanderson chamou de 'encantamento'... é isso. É o momento em que a palavra se
cala. O mar não dá explicações. O mar apenas completa o que sempre foi dele.
SuperPauta: Se você
pudesse escolher um único verso seu para definir quem foi Zila Mamede, qual
seria?
Zila Mamede: (Ela pensa,
longamente). Talvez... "E o homem que sou, dividido / entre a pedra e a
água."
SuperPauta: Para
terminar, Zila... Você que navegou tanto entre a pedra, o sal e a terra, e que
terminou no oceano... O que você encontrou depois da última página? E que
mensagem final você deixa ao povo potiguar e brasileiro?
Zila Mamede: (Ela se levanta e caminha até a névoa, que agora parece uma onda suspensa no tempo). O que eu encontrei? (Ela sorri). O que a bibliotecária sempre soube que encontraria: mais mar. Mais palavras. (Ela se vira). Ao povo potiguar, ao Brasil... não parem de construir bibliotecas. Não parem de ler. Não tenham medo do silêncio, não tenham medo da lentidão. Não deixem que a velocidade destrua a profundidade. Leiam a pedra, leiam o sal. E, por favor... (ela olha na direção do Alecrim) ...nunca deixem de cantar.
Ouça comentários sobre esta entrevista no podcast da série Encontros Impossíveis
.png)




Nenhum comentário:
Postar um comentário