segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Zila Mamede

 Encontros Impossíveis

Catalogando a Pedra e o Sal

Em uma conversa sobre a pedra do sertão e o sal do mar, a poeta potiguar nascida na Paraíba reflete sobre o rigor da biblioteca, a bênção de Manuel Bandeira e o destino trágico que a uniu à sua própria poesia

“Morro um pouco cada dia, e renasço no que amei.” – Zila Mamede

  

O encontro não se dá numa praia, tampouco numa biblioteca convencional. É um lugar intermediário, com a arquitetura rigorosa e o silêncio que Zila Mamede impunha à Biblioteca Central da UFRN, mas as paredes não são de alvenaria. São estantes infinitas que se dissolvem na névoa de uma maresia densa. O cheiro não é de mofo, mas de sal e papel antigo. O som é o de uma onda longa, quebrando ao longe, e o virar de uma página. Ela está sentada a uma mesa de catalogação, não de madeira, mas de pedra-sabão, lisa como as pedras de Currais Novos. Veste-se com a elegância discreta e funcional dos anos 60. Seus olhos, por trás dos óculos, não são sonhadores; são analíticos. Ela nos olha com a calma de quem passou a vida a classificar o mundo. E, agora, nos classifica.

Nesta conversa, Zila Mamede fala sobre sua infância no Seridó, a descoberta do mar em Natal e a "bênção" de Manuel Bandeira. Ela detalha a tensão entre a bibliotecária rigorosa e a poeta metafísica, o silêncio de 20 anos que antecedeu sua obra-prima, Navegos, e a transformação da sua Natal. No clímax do encontro, ela toma conhecimento do samba-enredo em sua homenagem que a Imperatriz Alecrinense levou à avenida no carnaval potiguar de 1991. Zila também reflete sobre o seu destino final: a poeta da "Canção do Afogado" que foi, tragicamente, chamada de volta pelo oceano.

 

 

SuperPauta: Você, que dedicou parte da vida a organizar o saber humano em fichas e prateleiras, como se sente neste encontro, onde o tempo parece não ter mais catalogação?

Zila Mamede: (Ela ajeita os óculos, com um leve e sereno sorriso). É uma sensação... familiar. A catalogação não é uma luta contra o tempo; é uma tentativa de diálogo com ele. A ficha catalográfica era a minha forma de dizer ao caos: "Espere. Deixe-me entendê-lo antes que você se vá". Eu buscava a permanência. O que fazíamos na biblioteca não era organizar livros; era organizar o rastro do pensamento humano. Aqui, o pensamento não deixa rastro. (Ela faz uma pausa, olhando para a névoa salina). Não há mais fichas, há apenas... o fluxo. Para a bibliotecária, é desconcertante. Para a poeta, é a matéria-prima.

 

SuperPauta: Li que você usou, por um tempo, o pseudônimo de "Maiana" na Tribuna do Norte. Quem era Maiana que Zila Mamede não podia (ou não queria) ser?

Zila Mamede: (Pensativa) Maiana era um exercício, talvez uma necessidade. Zila Mamede já era a estudante, a funcionária, depois a bibliotecária. Havia um rigor esperado de mim. Eu estava construindo uma carreira técnica. Maiana... (ela sorri) ...Maiana era a permissão. Era a moça que podia escrever de um jeito talvez mais frouxo, mais sentimental, sem o peso da assinatura, sem o medo do julgamento dos meus pares ou dos meus mestres. Era um biombo. Mas durou pouco.

 

SuperPauta: Você nasceu na Paraíba (Nova Palmeira), sua "terra-mãe", mas seu espírito é potiguar. Onde, Zila, no seu coração, a Paraíba termina e o Seridó começa?

Zila Mamede: O coração não entende de geografia política. A divisa... essa linha que os homens traçam no mapa... é uma convenção. Minha terra-mãe, como você diz, é o lugar do meu sangue, da minha ascendência, do meu Arado. Mas Currais Novos, para onde fui tão cedo, é a terra da minha memória. A Paraíba é a raiz funda; o Rio Grande do Norte é o tronco e a folha. O Seridó não é um lugar que começa ou termina, é um estado de espírito. É uma dureza e uma luz que carrego em mim. Não há fronteira ali.

 

SuperPauta: Fale-me das memórias de Currais Novos. Que cheiros da infância no sertão ficaram impregnados na sua alma?

Zila Mamede: (Ela fecha os olhos por um instante) O cheiro... O cheiro é o da poeira quente ao meio-dia. Não é a poeira de Natal, que é salgada. É a poeira seca, mineral, quase vermelha. O cheiro de mofumbo depois de uma chuva rara, que é uma coisa que o litoral nunca vai entender. O cheiro do couro cru na sela do cavalo. E, acima de tudo, o silêncio. O silêncio do calor, um silêncio tão denso que zumbia no ouvido. O sertão foi onde aprendi que o silêncio tem peso, cor e cheiro.

 

SuperPauta: Você quase se tornou freira. O que a jovem Zila buscava no convento? O que a impediu? Foi a mesma força que a puxou para a biblioteca?

Zila Mamede: Exatamente a mesma. (Ela fala com convicção). A força era a busca pela ordem. Eu tinha uma inquietação, uma necessidade de encontrar um sistema que explicasse o caos do mundo, o caos dos sentimentos. Eu achava que encontraria essa ordem em Deus, no silêncio do claustro, na rotina da reza. Mas meu pai me impediu. E agradeço a ele. Porque a ordem que eu buscava não era divina; era humana. Eu não a encontrei na religião; eu a encontrei no verbo. E, depois, na organização do verbo. A biblioteca foi o meu convento. Um convento onde, em vez de rezar, nós catalogávamos. É a mesma busca por transcendência, apenas com um método diferente.

 

SuperPauta: O Rio Grande do Norte é esse estado de contrastes imensos: o sertão e o litoral. Sua obra inteira parece dialogar com isso. Foi uma tensão dolorosa ou uma síntese?

Zila Mamede: Foi a minha própria estrutura. Não há tensão. É uma síntese. O sertão, a pedra, é a minha formação. É o rigor, a memória, a dureza, a disciplina. O Arado é o meu alicerce. Mas o litoral, o sal... (ela respira fundo) ...o mar foi a minha libertação. Foi a descoberta do horizontal depois de uma vida inteira de serras verticais. O mar é o infinito, o metafísico, o caos que a biblioteca tenta organizar. Minha poesia é isso: a pedra do sertão banhada pelo sal do mar.

 

SuperPauta: Rosa de Pedra (1953) foi sua estreia. O que precisava ser dito ali?

Zila Mamede: A própria pedra. Eu precisava... (ela procura a palavra exata) ...eu precisava nomear o peso que eu trazia. O peso do Seridó, o peso da minha infância, o peso daquela formação rigorosa. O poeta, no seu primeiro livro, muitas vezes está apenas apresentando seu inventário. Rosa de Pedra foi o meu inventário do mundo mineral. Eu precisava escrever aquilo para, depois, poder escrever o mar.

 

SuperPauta: Manuel Bandeira elogiou Rosa de Pedra, disse que a obra “merece ficar nas estantes do lado dos melhores livros de versos brasileiros”. E ele foi além: “você é poeta até debaixo da água do Capiberibe”. O que você sentiu quando recebeu aquela carta?

Zila Mamede: (Um calor visível toma conta de sua expressão. Ela fala com uma reverência de filha). Eu senti... permissão. Eu senti que não estava sonhando sozinha. Veja bem, eu era uma moça de Natal, escrevendo versos. Quando o Mestre Bandeira, o homem que era a própria poesia moderna, me escreveu aquilo... ele me deu o passaporte. Ele me disse: "Você não está brincando. Continue." E a generosidade dele... "Poeta até debaixo da água"... (ela sorri para si mesma). Era a bênção que a bibliotecária rigorosa dentro de mim precisava para deixar a poeta trabalhar.

 

SuperPauta: Bandeira foi seu padrinho literário. Como era essa relação? Você disse que ele era um "pai" que a "obrigou a estudar".

Zila Mamede: E foi. Um pai, no sentido mais nobre. Ele não me dava afagos fáceis. Ele me mandava estudar latim! Ele me dizia: "Quer ser poeta? Então vá ler os clássicos. Vá entender a estrutura, o ritmo." Ele me corrigia, puxava minha orelha por carta. Ele não tolerava o verso fácil, o sentimentalismo barato. Ele exigia de mim o mesmo rigor que eu, por instinto, já buscava na biblioteca. Ele uniu as minhas duas metades. Devo a ele o ofício.

 

SuperPauta: Tem alguma história, uma "bronca" poética, uma carta de Bandeira que a fez mudar um verso e que você guardava com carinho?

Zila Mamede: (Ela ri baixo). Muitas. Eu mandava os poemas para ele, ansiosa. Uma vez, mandei um poema que eu achava... (ela balança a cabeça) ...achava lírico. E ele me respondeu com uma carta seca. Não lembro as palavras exatas, mas o sentido era: "Zila, está sobrando adjetivo. Poesia não é enfeite. Poesia é osso. Vá limpar isso." Ele me ensinou a desbastar, a encontrar o "osso" do poema. Foi a melhor lição que recebi. Aprendi com ele que um poema termina não quando não há mais nada a acrescentar, mas quando não há mais nada que se possa tirar.

 

SuperPauta: Pouco depois, veio Salinas (1958). A pedra se transformou em sal. Foi a influência de Natal, da Ribeira, do mar?

Zila Mamede: Foi. A pedra é sólida, estática. O sal... o sal se dissolve, é movimento, é o mar. Foi a descoberta de Natal. Foi a descoberta daquele cheiro de peixe e maresia da Ribeira, da luz horizontal do fim de tarde na Praia do Meio. Salinas foi o meu primeiro mergulho. Eu saí do mineral e entrei no líquido.

 

SuperPauta: O seu poema "Canção do Afogado", de Salinas, parece uma premonição. Por que o mar, para você, era um lugar de morte e de poesia ao mesmo tempo?

Zila Mamede: (A voz dela fica mais grave, mas não triste. Fica serena). Porque o mar é isso. O mar é o grande símbolo da vida e da morte. É o berço e o túmulo. Não há premonição em observar o óbvio. O poeta é um observador. O mar nos dá o alimento, a beleza, a meditação... e nos toma de volta. Ele é a força que não controlamos, nós que passamos a vida tentando controlar tudo. A "Canção do Afogado" é apenas o reconhecimento da poeta de que, diante do oceano, a nossa ordem, a nossa biblioteca, é muito, muito frágil.

 

SuperPauta: Sua poesia é tátil. O vento, o sal, a pedra. Você "via" o poema antes de escrevê-lo?

Zila Mamede: Eu via a coisa. Eu via a geometria dela. Me interesso menos pela emoção e mais pela forma como a emoção se materializa. A pedra, o sal... Mais tarde, o que me interessou em João Cabral, e o que talvez tenha interessado Drummond em mim, foi isso. A poesia como uma engenharia, uma arquitetura. O poema não é um suspiro; é um edifício.

 

SuperPauta: Por que a biblioteca? O que uma poeta busca em catalogar o mundo?

Zila Mamede: (Com firmeza). A salvação. O que a poeta busca no caos do oceano, a bibliotecária busca na ordem da prateleira. É a mesma busca. A biblioteca é a fé humana colocada em prática. É a crença de que o conhecimento importa, de que podemos organizar a experiência humana e passá-la adiante. É a luta contra o esquecimento. A poeta registra o sentimento; a bibliotecária impede que ele se perca.

 

SuperPauta: Você foi estudar nos Estados Unidos, em Syracuse. O que a biblioteconomia americana, tão pragmática, ensinou à poeta potiguar? Em quais circunstâncias de se deu a viagem?

Zila Mamede: A viagem foi uma necessidade técnica. Fui com bolsa de estudos, pelo Ponto IV, um programa americano de assistência. Nós estávamos fundando a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Não se funda uma universidade sem uma grande biblioteca. E não se funda uma grande biblioteca com amadorismo. O que eu buscava em Syracuse era o método. O pragmatismo americano me deu as ferramentas. Eles me ensinaram sobre sistemas, eficiência, sobre como construir um acervo do zero. Eu fui a poeta para a América, mas voltei a engenheira de bibliotecas. E era dessa engenheira que a UFRN precisava.

 

SuperPauta: O próprio Câmara Cascudo prefaciou O Arado (1959). O que significou ter a bênção do "Mestre de Natal" neste livro que parece ser a sua volta ao sertão?

Zila Mamede: Significou que a ponte entre o erudito e o popular estava sendo construída. Cascudo era... (ela procura o termo) ...ele era o dono do chão de Natal. Ele conhecia cada mito, cada história, cada sabor. Ele era o saber vivido. Eu era o saber lido, o saber catalogado. Quando ele prefaciou meu livro sobre o sertão, ele estava, com sua generosidade imensa, dizendo que a minha poesia, embora erudita na forma, tinha a verdade daquela terra. Foi a bênção do mestre-de-casa para a minha volta.

 

SuperPauta: Depois de um silêncio de quase 20 anos sem publicar poesia, veio Navegos (1978). O que aconteceu nesse intervalo, Zila? Foi a bibliotecária que tomou conta? Foi um período de maceração? Ou a poesia simplesmente se calou? O que Navegos queria dizer que os livros anteriores ainda não tinham dito?

Zila Mamede: (Ela assente, lentamente). A bibliotecária tomou conta. E foi preciso. Eu estava construindo a Biblioteca Central. Foi o meu poema de concreto e fichas. Ocupou meus dias e minhas noites. Não foi um silêncio, foi uma gestação. A poesia não se calou; ela estava sendo vivida na prática da biblioteca. Quando Navegos veio, não era mais a voz da menina da Rosa de Pedra ou da moça de Salinas. Era a voz da mulher madura, que havia construído sua obra, que entendia o tempo, que havia lido e catalogado milhares de livros. Navegos é o meu livro mais denso porque é o livro da bibliotecária-poeta. Ele queria dizer que o mar, no fim, é o grande catálogo.

 

SuperPauta: Como era seu processo criativo? Era de lapidação, como uma bibliotecária que revisa uma ficha até a exaustão?

Zila Mamede: Exatamente. A inspiração, o insight, pode vir do mar, de uma caminhada em Areia Preta. Mas o poema... o poema é feito na escrivaninha. É um trabalho de desbaste, como o de Bandeira. É cortar, limpar, verificar cada palavra, cada ritmo. Eu catalogava meus próprios poemas. Uma ficha de biblioteca e um poema exigem a mesma coisa: precisão absoluta. Nenhuma palavra pode estar ali por acaso.

 

SuperPauta: Você se sentia parte de uma geração? O Modernismo... Você se encaixava nessas gavetas que os críticos criavam?

Zila Mamede: Não. Eu era uma leitora do Modernismo. Eu devia tudo a Bandeira, a Drummond. Mas eu não me sentia parte. Minha geografia era outra. Minha profissão era outra. Eu era a bibliotecária de Natal. Isso me dava uma perspectiva única. Eu estava... (ela sorri) ...na minha própria ficha catalográfica.

 

SuperPauta: E Carlos Drummond de Andrade? O que o poeta mineiro, tão reservado, via na poeta potiguar? Há registros de que vocês trocaram impressões sobre O Arado. Aquele Drummond telúrico de "Sentimento do Mundo" entendeu o seu sertão?

Zila Mamede: Ele entendeu a pedra. Drummond, o poeta do ferro de Itabira, entendia perfeitamente a poeta da pedra de Currais Novos. Nós tínhamos em comum a matéria mineral de nossas origens. Ele reconheceu em O Arado não o folclore, mas o peso da terra, a dureza do homem que é feito daquele chão. Nossas cartas eram de um respeito mútuo, de dois poetas que sabiam que a poesia, antes de ser sentimento, é matéria.

 

SuperPauta: E a relação com Câmara Cascudo, aqui em Natal? Como era o diálogo entre o folclore exuberante dele e a sua poesia contida, metafísica? Vocês trocavam ideias?

Zila Mamede: Nosso diálogo era o da construção da UFRN. (Ela pondera). Éramos colegas, nos corredores da universidade. O respeito era imenso. Mas, como você disse, ele era a exuberância; eu era a contenção. Ele era o mestre do conto, da história, do caso. Eu era a mestre da ficha, do sistema, do silêncio. Natal precisava dos dois. Ele era o nosso passado vivo; eu tentei ser a organizadora do nosso futuro intelectual.

 

SuperPauta: Como foi ser uma mulher intelectual, poeta, diretora de biblioteca, em uma Natal dos anos 50, 60 e 70? Você sentiu o peso do machismo?

Zila Mamede: (Ela se torna muito séria). O peso não era de um grito; era de um silêncio. Não era de uma porta fechada na cara; era de uma porta que nem se cogitava abrir. Ser mulher e intelectual era ser... uma anomalia. Você precisava trabalhar o triplo, ser três vezes mais rigorosa, três vezes mais competente, para ser levada a sério. Qualquer traço de "feminilidade" — o que eles chamavam de sentimentalismo — era usado para desmerecer seu trabalho. Meu rigor de bibliotecária não foi uma escolha; foi uma armadura.

 

SuperPauta: Por que você insistia em ser chamada de "poeta" e não "poetisa"? Era uma forma de exigir igualdade de tratamento?

Zila Mamede: (Com ênfase). Era. "Poetisa" era uma gaveta de segunda classe. Era onde nos colocavam quando nossos versos falavam de amor, de flores, quando eram "delicados". "Poetisa" era Cecília, mas "poeta" era Bandeira. "Poetisa" era um hobby; "poeta" é um ofício. Eu tinha um ofício. Eu exigia ser tratada pela dignidade do meu trabalho, não pelo diminutivo do meu gênero.

 

SuperPauta: Você viu Natal mudar radicalmente. A cidade provinciana que recebeu os americanos, a "capital espacial", a explosão do turismo... O que daquela Natal que você poetizou em Salinas, a Natal da Ribeira, dos cheiros do porto, ainda existe?

Zila Mamede: (Com melancolia). O cheiro se foi. Aquele cheiro de sal, peixe seco e corda de navio da Ribeira... O progresso, como o chamam, desodoriza as coisas. A Natal de Salinas era uma cidade de arestas, de cheiros fortes. A nova Natal... ela me parecia mais... genérica.

 

SuperPauta: Você escreveu sobre a destruição das dunas... Se você caminhasse hoje pela orla de Ponta Negra, com o Morro do Careca cercado e os prédios avançando, o que seu coração de poeta diria? Você se sentiria uma estrangeira na sua própria cidade?

Zila Mamede: (Ela nega com a cabeça, olhando o horizonte de névoa). O que o coração diria... O coração se calaria de tristeza. A destruição das dunas... eu vi começar. Era a perda da nossa geometria original. O que fizeram com Ponta Negra... O Morro do Careca era uma entidade viva. Cercá-lo? Construir aqueles paredões? (Ela suspira). Não é a cidade que eu ajudei a catalogar. Sim. Uma completa estrangeira.

 

SuperPauta: O que você acha que o Rio Grande do Norte fez com o seu legado? Nós, potiguares, soubemos lê-la como deveríamos?

Zila Mamede: (Ela é gentil). Vocês me deram a maior honra. Puseram meu nome na casa que eu construí, a Biblioteca. Um bibliotecário não pode sonhar com homenagem maior. Mas... (ela hesita) ...ter o nome na porta não é o mesmo que ter a obra na mão. Meu desejo é que me leiam. Que leiam Navegos. Que leiam O Arado. Que a minha poesia seja mais frequentada que o prédio da biblioteca.

 

SuperPauta: Você é frequentemente chamada de "a maior poeta potiguar". Esses títulos lhe pesavam ou lhe davam força?

Zila Mamede: (Ela descarta com a mão). Isso é jornalismo. É a necessidade de criar listas, hierarquias. É uma catalogação pobre. O que importa? "Maior", "menor"... A poesia não é uma competição. O que importa é se o verso é verdadeiro. Se ele permanece. O resto é vaidade.

 

SuperPauta: Sua poesia era sobre o tempo lento, a maturação. Hoje vivemos a era rolar as postagens, do imediato, dos "poemas de Instagram". A poesia sobrevive a essa velocidade?

Zila Mamede: Sobrevive. Mas sobrevive mal. (Ela franze o cenho). A poesia exige lentidão. Exige que o leitor pare. Rolar de um vídeo ou imagem para outra é o oposto da poesia; é o movimento perpétuo. O poema de Instagram é um consumo; o poema do livro é uma meditação. Minha preocupação não é com a poesia, que é eterna, mas com o leitor, que está sendo treinado para nunca mais ficar em silêncio.

 

SuperPauta: Falamos tanto de "empoderamento feminino" hoje. O que você diria às mulheres potiguares de hoje que tentam encontrar sua voz?

Zila Mamede: Não procurem apenas a voz. Procurem o estudo. A voz sem o rigor, sem o trabalho, é só barulho. Leiam. Leiam os clássicos. Leiam os homens, leiam as mulheres. Leiam filosofia, leiam ciência. Não queiram ser "poetisas". Queiram ser poetas. Conquistem o espaço pelo rigor do trabalho. A competência é a arma mais silenciosa e mais letal.

 

SuperPauta: Professora Zila, sua partida foi abrupta, aos 57 anos, em março de 1985. Um silêncio que se impôs. Havia mais poemas a serem escritos? Havia algum livro que ficou no arado?

Zila Mamede: (Ela assente, gravemente). Sempre há. Um poeta não morre de obra completa. Eu estava trabalhando na bibliografia de João Cabral... um trabalho de rigor que me consumia e me ensinava. Eu estava começando a entender novas formas de Navegos. Aos 57... sim. O arado ainda estava na terra.

 

SuperPauta: Alguns anos após sua partida, em 1991, a sua poesia, que sempre foi do silêncio e da página, foi para a avenida. A Imperatriz Alecrinense cantou um samba-enredo sobre você. A letra, Zila, que tive a honra de escrever, dizia que você havia aceitado um convite do Atlântico e assumido o comando de uma escola de cultura para os seres marinhos. “O Atlântico chamou pra fazer arte, e ensinar a sua parte / Na escola de cultura dos habitantes do mar / Desde esse dia, peixes e siris / Cavalos marinhos, arraias e sereias / Espalham poesia por suas bolhas de ar /Zila, a saudade que doeu por sua ausência / Gerou um pranto derramado com cadência / Zila, entrou pro time “Poetas de Netuno” / Fez do tubarão um seu aluno / Aprendiz do verso popular / Foi sem avisar, morar no oceano / Entre arraias e lagostas, nos recifes de coral / Foi compor palavra submersa, que acalente o mar trazendo paz / É bom abrir alas que a Imperatriz já chegou / Contando a história que Zila Mamede criou”. O que a Doutora Zila, a bibliotecária rigorosa de Syracuse, acha dessa licença poética do carnaval? O que a "poeta" sente ao saber que seu nome foi cantado por uma bateria inteira, com essa minha letra e música de Babal Galvão?

Zila Mamede: (Pela primeira vez, a compostura da bibliotecária se quebra. Ela fica em silêncio por um longo tempo, ouvindo. Um sorriso lento, incrédulo, se forma.) Meu Deus... (Ela diz baixo, quase para si mesma). Eu... no carnaval? A Doutora Zila... no meio da bateria do Alecrim? (Ela olha, com uma nova intensidade.) Que... que generosidade. A bibliotecária de Syracuse está chocada com a imprecisão factual. (Ela ri, um som límpido). Mas a poeta... a poeta está profundamente comovida. "Fez do tubarão um seu aluno"... (Ela repete, saboreando). Que imagem linda. Que ousadia poética. Vocês me tiraram da prateleira empoeirada e me deram... música. Me deram ritmo. Vocês entenderam o que os críticos talvez não tenham visto. Que a minha poesia, embora contida, era uma paixão. Vocês pegaram o meu silêncio e transformaram em batuque. Eu... eu acho que é a maior honra que já recebi. Obrigada.

 

SuperPauta: Zila... a inspiração da letra, "Foi sem avisar / Morar no oceano", veio da forma trágica e literal como sua vida terminou. A poeta de Navegos e da "Canção do Afogado" sendo, de fato, levada pelo mar que tanto amou. Na época, seus amigos escreveram sobre isso. Sanderson Negreiros disse que você se "encantou-se nas águas fundas do mar". José Jácome Barreto falou da "morte nos verdes caminhos oceânicos". Naquele dia, em Areia Preta... o que aconteceu? O mar a chamou?

Zila Mamede: (O sorriso desaparece, mas a serenidade permanece. Ela olha para o horizonte de névoa salina). O mar sempre chama, meu caro. Ele me chamava todos os dias, a cada hora, a cada ficha que eu catalogava de costas para a janela. (Ela faz uma pausa longa, organizando o pensamento). Você me pergunta o que aconteceu. Você me pede um fato, o rigor de uma catalogação para aquele momento. Mas há momentos que, simplesmente, escapam da ficha. A "Canção do Afogado" não era uma premonição; era um entendimento. Era o reconhecimento de que, entre o poeta e o mar, há uma linha muito, muito tênue. A vida inteira, eu tentei impor a ordem da biblioteca ao caos do oceano. Naquele dia, em Areia Preta... (ela suspira, um som leve como a maresia) ...a bibliotecária parou de catalogar. E a poeta, que era feita de sal, simplesmente... se dissolveu. O que Sanderson chamou de 'encantamento'... é isso. É o momento em que a palavra se cala. O mar não dá explicações. O mar apenas completa o que sempre foi dele.

 

SuperPauta: Se você pudesse escolher um único verso seu para definir quem foi Zila Mamede, qual seria?

Zila Mamede: (Ela pensa, longamente). Talvez... "E o homem que sou, dividido / entre a pedra e a água."

 

SuperPauta: Para terminar, Zila... Você que navegou tanto entre a pedra, o sal e a terra, e que terminou no oceano... O que você encontrou depois da última página? E que mensagem final você deixa ao povo potiguar e brasileiro?

Zila Mamede: (Ela se levanta e caminha até a névoa, que agora parece uma onda suspensa no tempo). O que eu encontrei? (Ela sorri). O que a bibliotecária sempre soube que encontraria: mais mar. Mais palavras. (Ela se vira). Ao povo potiguar, ao Brasil... não parem de construir bibliotecas. Não parem de ler. Não tenham medo do silêncio, não tenham medo da lentidão. Não deixem que a velocidade destrua a profundidade. Leiam a pedra, leiam o sal. E, por favor... (ela olha na direção do Alecrim) ...nunca deixem de cantar.



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