ARTISTA: O LIVRO QUE FALA, CANTA E INTERPRETA
Em
setembro de 2008, o jornal Zona Sul publicou entrevista que fiz, em Mossoró,
com o ícone do teatro potiguar, Júnio Santos. Naquela época, ele morava em
Icapuí, no território cearense. Nômade, esse potiguar hoje mora em Carnaúba dos
Dantas. Amanhã, quem saberá seu paradeiro? Por motivos de espaço no jornal
impresso, tive que subtrair metade da conversa que esse fundador do grupo de
teatro de rua Alegria Alegria manteve conosco. Agora, corrigindo a história,
vamos publicar na íntegra o papo travado em dois botecos da terra mossoroense.
Na
edição do Zona Sul, o texto de apresentação da entrevista foi este abaixo:
“Desde
que Júnio Santos trocou o RN pelo Ceará, só o vi duas vezes. Ambas em Mossoró.
Na primeira delas, quase não nos reconhecemos. Mesmo assim, a alegria foi
imensa. Nessa última, durante a Feira do Livro da cidade, não perdi a chance de
entrevistá-lo. E foi ótimo perceber que ele continua em ótima forma. Durante a
conversa, quando ele classificou o artista como “livro que anda”, fui obrigado
a concordar de imediato, depois de ouvi-lo contar tantos fatos de sua vida.
Júnio é mesmo um livro que anda, fala, conta, canta, interpreta, mostra e
prende a atenção de qualquer um. Experimente, caro leitor, navegar pelas
alegrias e também pelos caminhos tenebrosos do grande ator potiguar Júnio
Santos”
ZONA SUL – Qual o seu nome completo?
JÚNIO – Pouco tenho usado o meu nome
completo. Desde menino que eu não uso muito. Tem até uma história interessante:
certa vez perdi um voo porque me chamaram e eu não lembrava mais que o meu nome
era aquele. Meu nome completo é o nome do meu pai, um nome comum: João Batista
dos Santos Júnio. Mas, desde menino começaram a me chamar de Júnio Santos.
Então, sempre que minha mãe me chamava, usava o Júnio Santos. Meus irmãos também.
Nesse tempo todinho da minha vida, só tinha uma pessoa que me chamava de João
Batista. Era o professor Carlinhos, que me ensinou na Universidade. Ele
costumava me chamar de Professor João Batista. Era o único! Então, nunca me
acostumei. Sou Júnio Santos, nome adquirido por meio de um batismo informal.
ZONA SUL – Onde você nasceu?
JÚNIO
– Sou natalense,
sou potiguar: nasci em
Natal. Sei inclusive a rua. Nasci na Avenida 7, na Vila
Naval. Meu pai era militar, sargento da Marinha, além de pastor protestante.
Nasci com a velha Mãe Toinha, que era a grande parteira da região.
ZONA SUL – Você teve formação evangélica?
JÚNIO – Sim. Minha infância foi toda
dentro de igrejas, inclusive fui presidente de mocidade. Eu preguei em igreja.
Até tive um programa na antiga Rádio Trairi, que se chamava “Vencendo vem Jesus”.
Era transmitido todos os sábados, às seis horas da manhã. Eu tinha 13 anos, na
época. Fazia culto na igreja. Eu tocava violão e a minha mãe tocava acordeom. O
meu pai cantava, meu avô tocava violão e os meus irmãos todos são músicos.
Tenho um irmão regente de coral em Natal, o Isaque. Minha formação foi daquelas
de passar Carnaval em retiro, por exemplo. Porém, um dia - quase por um acaso -
peguei um livro que me deu a curiosidade de saber o que era filosofia. Nesse período
a filosofia tinha saído de dentro da escola. Seu ensino era proibido. Mas eu
peguei um livro muito simples. Era quase uma história em quadrinhos, mas nele
vinham todos aqueles questionamentos: de onde você vem, pra onde você vai, o
que lhe rege, o que é a natureza... E eu passei a ter uma compreensão maior do
que o senso comum minimizado que o Evangelho prega. A Bíblia aponta somente para
uma salvação, e ela não é nem terrena. É uma salvação que você não consegue
vislumbrar como vai ser. A partir dali comecei a perceber. Percebendo, entrei
no PCB, o Partido Comunista Brasileiro.
ZONA SUL – Isto foi em qual ano?
JÚNIO – No início dos anos 1970. Como sou
de 1955, em 1970 eu tinha 15 anos. O PCB estava totalmente na ilegalidade, mas
tinha o “Instituto Luís Maranhão” que funcionava por trás do hoje “Memorial
Câmara Cascudo”. Lá havia todo um trabalho de formação. Faziam parte do partido
pessoas como Serginho Dieb, Hermano, Carlos Furtado... Nesse ambiente formamos nossa
primeira base de artistas. Sempre que há esse tipo de redemoinho de mudança,
aparece, na vida, a arte.
ZONA SUL
– A arte surgiu na
sua vida pela primeira vez na forma de música?
JÚNIO – Sim. Na verdade, era para eu ser
um grande músico, mas a forma de educar tinha muita obrigatoriedade. Tinha que
levantar cedo e ir para o piano, assistir às aulas. Depois meu pai viajou e conheceu
a tal da pianola, que era mais simples que o piano e vinha nas teclas o nome
das notas. Passei a exercitar ali. Mas eu era fujão, escapava para bater bola.
Eu queria jogar futebol, e não tocar. Mas posso dizer que tocar mesmo, poder
dizer “estou tocando minhas primeiras músicas”, isso aprendi sozinho, e já
depois dos 15 anos de idade. Hoje me arrependo um pouco de não ter tido o
afinco que meus irmãos tiveram, porque a música é uma coisa maravilhosa e acho
que rege todas as outras artes. Ela nasce com o ser humano. As outras artes
surgiram depois, mas a música nasceu com o mundo, o mundo nasceu musicalmente.
ZONA SUL – Como seu pai - evangélico e
militar - encarou esse afastamento da Bíblia e a aproximação com o PCB? Isso
causou um distanciamento da família?
JÚNIO – Houve uma ruptura, uma quebra nos
valores familiares. Lá em casa somos seis homens e duas mulheres. Por ser o
filho mais velho dos homens e carregar o nome do meu pai, havia uma expectativa
de que eu seria pastor para substituí-lo. Em todas as famílias há aquele no
qual se aposta dará continuidade às atividades do pai. E eu aprendi a ler na
Bíblia. A Igreja obrigava a decorar determinado número de versículos pras
disputas nas escolas dominicais. Até hoje, quando boto a cabeça pra funcionar,
ainda tenho alguns na memória. A Bíblia é um livro lindo, talvez um dos mais
bem escritos do mundo. Por outro lado, havia também a figura do meu avô, Luiz
Pereira Lucena, conhecido como Bizá. Ele era motorista do Correio Aéreo
Nacional, o CAN, e um teólogo sem nunca ter frequentado faculdade de Teologia.
Apesar disso, ele tinha um conhecimento bíblico fantástico. Costumava me dizer que
quando eu lesse um versículo procurasse no dia seguinte ler de novo, porque a
cada vez eu ia entender diferente, já que eu não era mais a mesma pessoa. Isso
começou a se juntar com as questões filosóficas. Depois que rompi com meus
pais, fui morar com esse meu avô.
ZONA SUL – Você rompeu com seus pais logo
que se filiou ao PCB?
JÚNIO – Minha primeira saída de casa foi
muito cedo. Quando eu tinha 14 anos, fui embora para o Piauí. Minha família não
sabia, só o meu avô. Foi ele quem me botou em um avião dos Correios que desceria
em Parnaíba. Não tinha poltrona, as fileiras eram uma de frente para a outra,
tipo avião de paraquedista. Lá conheci uma senhora, fomos conversando. Ela me
levou para sua casa.
ZONA SUL – O que você foi fazer no Piauí?
JÚNIO – Na época em que meu pai era
pastor em Recife, tinha um programa na Rádio Relógio. Começava às seis e vinte.
Antes, passava a Hora do Ângelus, da igreja católica. Um padre se apaixonou por
minha irmã e ela por ele. Fugiram, casaram e foram morar em Teresina. Como eu
sentia necessidade de sair de casa, devido as relações familiares não estarem boas,
resolvi ir para Teresina. O voo era só até Parnaíba. Lá fui para a casa da
senhora que conheci no avião. Foi muito maluco, porque ela não me conhecia. O
aeroporto era longe, tinha um fusquinha esperando ela, com o filho. Convidou-me
para ir para sua casa, porque só tinha ônibus para Teresina três dias depois.
Fui e quase fiquei por lá mesmo. Mas, com três dias, fui embora para Teresina.
Eu estava naquele período de muita aventura. Minha geração fugia de várias
coisas internamente e também externamente, quando necessitávamos mudar de lugar.
Vivíamos fugindo.
ZONA SUL – Foi lá que você começou a mexer
com teatro?
JÚNIO – Brinquei pela primeira vez com
teatro na escola. Participei de alguns esquetes. Eu já tinha feito na igreja,
mas o teatro religioso não era no ritmo que eu queria. Eu adorava a questão da
comicidade, das comédias picantes e tal. Mas fiz teatro em Teresina apenas por
um ano. Foi um pouco trágico, porque voltei a Natal para passar as festas de
final de ano em casa e fui proibido de retornar a Teresina. Foi pior porque lá
eu tinha experimentado o meu primeiro amor: eu tinha 15 anos e ela tinha 35.
Minha irmã ligava dizendo que a mulher estava jogando bilhetes perfumados por
baixo da porta, essas coisas todas. Fiquei em Natal, mas não morando na casa do
meu pai. Fui para a Casa do Estudante. Como eu não podia ocupar um quarto, por
não ser do interior, fui para um quartinho que tinha sido dos Escoteiros do
Mar, ali no Paço da Pátria, junto com mais outras pessoas que não tinham
conseguido vaga na casa. Pra compensar a estadia, eu lavava louça no sábado ou
domingo.
ZONA SUL – E você estudava onde?
JÚNIO – No Instituto Padre Miguelinho. Lá
tinha um grupo de teatro. Eu sempre ia, ficava lá atrás, assistindo aos
ensaios. Tinha uma professora maravilhosa, daquelas inesquecíveis, chamada Terezinha
Peixoto. Professora de literatura e promotora em Ceará Mirim.
Terezinha me encantou pra leitura e para o teatro. Nosso primeiro desafio foi
um desafio tremendo. Montamos uma peça chamada O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Foi a minha estreia. Foi na
época em que tinha havido uma enchente muito grande em Jucurutu. O povo estava
desabrigado e o espetáculo era uma forma de arrecadar recursos e alimentos para
os desabrigados. Ela era promotora em Jucurutu nesse período e nós fomos pra
lá, onde fiz minha grande estréia.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – Por volta de 1971. Estreia mesmo
no teatro, de forma profissional, foi em 1973, quando eu já era do Teatro
Jesiel Figueiredo e passei a trabalhar no teatro infantil. As coisas foram
muito rápidas e boas pra mim. Natal naquela época basicamente tinha três
grupos. Todos eles, de uma forma ou outra, estavam ligados a alguma
instituição. O Tônus (Teatro Novo Universitário), com direção de Carlos Furtado,
era ligado à Universidade. O Teatro Jesiel Figueiredo, mesmo sendo
independente, tinha uma ligação com o SESI. Lá o Jesiel tinha a sua fábrica de
atores. Ali que aparecem Ismael Mendes e outras figuras. O Racine Santos, com o
Tablado Nordestino, tinha o apoio da Fundação José Augusto. Depois foram
surgindo outros grupos, como o Grupo Expressão, da TVU. Fui convidado para o
Jesiel Figueiredo ainda no Padre Miguelinho, pelo Ismael Mendes. Fiz um teste e
entrei para o espetáculo infantil. Em 1973 surgiu na TV Universitária de Natal
o projeto Sitern (Sistema de Tele-Educação do Rio Grande do Norte).
ZONA SUL – Qual foi a peça da sua estréia
profissional?
JÚNIO – Estreei profissionalmente fazendo
teatro infantil. O Teatro Jesiel tinha cachê em todos os espetáculos. Jesiel
marcou a história do teatro no Rio Grande do Norte, ninguém pode negar. Foi
talvez historicamente uma das figuras mais importantes do teatro do estado. Através
dele o teatro potiguar rompeu as fronteiras do RN. Depois aproveitamos essa
porta aberta para levar uma outra proposta teatral pra fora. Mas ele já tinha a
marca. E Jesiel tem uma marca profunda porque ele é de um período onde havia
uma discriminação muito grande. E, da mesma forma, o pai de Jesiel, Josué,
também era protestante da mesma igreja do meu pai. E ele tinha um irmão,
chamado Jessé, que era casado com uma tia minha. Então estávamos dentro da
mesma família. Considero minha entrada profissional com o teatro infantil. Acho
que ali tinha uma ação profissional: a gente tinha horário de trabalho, tinha
que ser pontual. Os espetáculos começavam cinco da tarde e todos tínhamos que
chegar às duas. De manhã a gente tinha que ir ao cabeleireiro, fazer todo esse
processo que um ator faz. O tratamento do teatro infantil tinha uma idéia de
qualidade, de cuidado com os atores. A primeira peça que fiz foi O pequeno polegar. Meu tamanho já me
credenciava a ser o ator principal. Depois fiz uma série de peças, como O pequeno príncipe... Sempre com nome de
pequeno. O príncipe valente... Fiz
uma média de três ou quatro espetáculos infantis nesse período de um ano. Foi
muito importante para a minha manutenção como ser humano. Aqueles recursos me
alimentavam, pagavam minha roupa. Comecei a ter uma independência com 15 anos
de idade, através da arte, do teatro. Depois surgiu o Sistema de Tele-educação
do Rio Grande do Norte, Sitern, que funcionava na TV-Universitária, que era lá
no Inpe, perto do Campus. Houve um concurso, me inscrevi nele. No dia da prova,
estava lá toda a nata do teatro do Rio Grande do Norte. Fiquei pensando que não
passava, era muito jovem, mas passei. Estava com 18 anos. Passei, e minha
carteira - como a dos 20 atores que trabalharam lá - foi assinada em 1973 e a
lei de criação da profissão é de 1978. Mas lá a gente já tinha assinado a
carteira, já reconhecido pelo DRT, antes da lei ser criada. Só que o nome não
era ator ou diretor. O ator era intérprete, porque dentro da lei existia uma
brecha. Nas outras entrou intérprete, de interpretar. Algumas pessoas
confundiam se a gente era intérprete de alguma língua. Mas fiquei na TV-U e lá
fiz minha estréia em um espetáculo para adulto, espetáculo dirigido pelo Carlos
Furtado, que não foi uma marca muito boa no trabalho, não teve um resultado
interessante. O nome era A derradeira
Ceia, de um dramaturgo pernambucano chamado Luiz Marinho.
ZONA SUL – Que papel você fazia?
JÚNIO – O de um filho de um coiteiro de
Lampião, mas não considero esse como o espetáculo que eu queria começar no
teatro pra adultos. Depois veio a criação do Grupo Expressão de Teatro da TVU.
Montamos O assalto, que era um texto
de suma importância para o teatro brasileiro naquela época. Escrito por um
mineiro chamado José Vicente. O diretor João Batista Campanholi. Ele estava
chegando a Natal como professor da Universidade e diretor da TVU junto com o
Arnon e com o José de Castro. A direção foi do Carlinhos Meireles. O assalto foi e é, sem dúvida, o
espetáculo mais importante desses meus 36 anos de brincadeira. Com essa peça
ganhei meu primeiro prêmio como ator coadjuvante no Festival de Ponta Grossa,
em 1978. Foi muito marcante. Foi um trabalho completamente diferenciado dos
outros que eu tinha participado. Nos outros eu fazia muita ponta, em O Assalto eu era coadjuvante. Só havia
dois personagens em cena. Tem uma cena em que eu fumava e tirava a roupa. Só
que o censor proibiu a tirada da roupa e fui obrigado a usar uma cueca branca.
Só que quando eu entrava de cueca branca, Carlinhos Meireles – que também
cuidava da iluminação - aumentava a força da luz. Era o mesmo que eu estar nu. Tinha
também uma cena de beijo com outro homem, o Maurício Pandolphi. Imagina que meu
pai foi me assistir pela primeira vez, eu o tinha convidado. Nessa hora, ele
não saiu do teatro porque minha mãe segurou. Ela, como a maioria das mães, era
minha tiete de primeira grandeza. Já era ela quem me incentivava, fazia das
minhas fotografias quadros para colocar no quarto dela. O lado artístico da
minha mãe, nessa hora falava mais alto que seu lado evangélico. Ela segurou a
barra, dizendo “isso é arte, é teatro, não sei o que”. Mas o artista levava
aquela marca de quem fazia teatro ou dança naquele período: ou era homossexual
(na época não se chamava nem homossexual, era um tratamento pejorativo mesmo) ou
então era drogado, vivia no mundo das drogas, fumando ou cheirando. Isso nos
acompanhou por muito tempo. Se era chamado para fazer uma aula de dança, por
exemplo, participar do Balé Municipal, tinha que entrar escondido na galeria,
porque se o povo visse, o cara ficava marcado. Quando alguém dizia que fazia
teatro, o povo olhava pra você com uma cara assustada. Hoje fico feliz quando vejo
essa ruma de menino fazendo teatro e dizendo com o maior prazer que é ator. As
pessoas entendem como uma profissão importante, como todas as outras. Sem o
artista, a vida ficaria sem graça.
ZONA SUL – Como foi seu período na TVU?
JÚNIO - Foi naquele período do velho
canal 5, uma grande escola pra quem teve a oportunidade de participar. Fizemos
cursos de rádio e de televisão. Convivemos com jovens profissionais, mas com
uma vontade enorme. Dácio Galvão, hoje na Capitania das Artes, era um câmera e
também um dos diretores de corte da TV. A produção tinha Bosco Teixeira, um
cara que pensava muito a questão do cinema e da arte. Tinha Carlos Furtado...
Era uma equipe muito profunda. Os nossos eram programas infantis, para serem
usados nas aulas. Iam zona rural. Acho que foi dos primeiros processos de
educação à distância que apareceram no Brasil. Existia no RN e em São José dos Campos. Depois
passou a ter também no Ceará. Meu personagem era chamado Palhaço Bolão, que
virou, em pouco tempo, a sensação da meninada. A gente gravava todos os dias.
Em um ano fizemos 160 programas. Comecei com Português, depois entrei na
Matemática. Tinha uma resposta muito positiva por causa da força da televisão.
Chegavam cartas da meninada. Montamos uma caravana em cima de um caminhão pra
percorrer os sítios da área que a TV abrangia. O Enoch Domingos preparou as
músicas do espetáculo. Foi um momento em que me senti muito reconhecido como
ator. Só que tivemos problemas de ordem política, dentro da TVU. Na campanha
salarial de 1979, fizemos uma greve. Nessa época houve uma mudança na TV. A
equipe antiga saiu: Zé de Castro, Arnon, João Batista Campanholi. Entrou o
Carlos Lima. Fomos para uma luta salarial e, no final de toda essa peleja - dessa
greve que fizemos de não gravar programas - duas pessoas saíram da TV
Universitária. Fomos demitidos eu e a atriz Quinha Costa, que hoje está na
Holanda. Saímos já em 1980, e no mesmo ano fui convidado por Racine pra
integrar a equipe do Tablado Nordestino
e passei a fazer teatro com ele. Fiquei até 1982.
ZONA SUL – O que representa a arte na sua
vida?
JÚNIO – É a minha loucura, a minha busca
em saber. Arte todos fazem: um vai fazer melhor que o outro porque vai procurar
se aperfeiçoar mais. Mas todos fazem. A arte é livre, democrática e todos têm
que fazer mesmo. Não é necessária nenhuma regra ou escola pra interpretar. As
pessoas têm que aprender. Quem quiser ir pra escola vai, mas isso não é uma
coisa que impossibilite que as pessoas interpretem. Acho que é uma atividade super-democrática.
Quem consegue dizer “estou fazendo teatro”, “estou fazendo música”, “estou
fazendo dança” vai ser muito mais feliz do que os que não estão tendo acesso a
isso. A arte é a busca da felicidade pro seu corpo e a sua mente. Mas, depois
de Racine, entrei no grupo, um movimento de Petrópolis chamado MIJO (Movimento
de Integração Jovem). Era ligado à igreja católica. Lá conheci figuras que
marcaram minha vida. Eu tinha já um nome na cidade e eles estavam começando.
Conheci Jorge Romano Neto, que hoje é arquiteto, e um dos maiores autores e
diretores de teatro que conheci dentro do Rio Grande do Norte. Ele me convidou
pra gente montar um espetáculo chamado O
troco, de um autor chamado Domingos Pelegrini Júnior. Interessante é que
quando eu encontrava com as figuras que tinham trabalhado comigo na TVU, ou no
Tônus, ou no Tablado, ou no Grupo Expressão, elas achavam que eu era quem
dirigia a peça, e não o Jorge. Havia uma descrença nas pessoas do meio, no
potencial de quem estava começando. Como eu já estava, já vinha da TVU e vários
outros espetáculos, para eles eu interferia. Diziam que eu tinha feito aquela
montagem e colocado outro como diretor. Na verdade, eu desde aquele tempo já tinha
uma coisa comigo, que era o respeito e a disciplina com o outro. Se você vai me
dirigir, eu não me importo com o seu currículo. A minha função é de ator. Você
é diretor. Se me mandar voltar 500 vezes, volto sem fazer cara feia. Se disser “vá
praquele lado”, vou. Aprendi muito isso dentro da TVU. Fiz O troco, foi um espetáculo que rodamos bastante. Fomos a Recife,
Aracaju... Nessa época tinha um projeto da Federação de Teatro da Paraíba
chamado Vamos comer teatro. Circulava
pelo Nordeste todo. Os grupos eram escolhidos e circulavam pelo região toda. Circulamos
sempre juntando o fazer da arte com a possibilidade de conhecer outras pessoas
e participar da boêmia. Terminar um espetáculo e não sentar num canto pra tomar
alguma coisa e conversar sobre ele, não tinha a menor graça. Ninguém ia pra
dentro de um quarto dormir depois que terminava a peça.
ZONA SUL – O cara nem consegue
JÚNIO – Nem consegue. Tem que dar
continuidade ao espetáculo que é conversar sobre ele. Debater onde acertamos,
onde erramos, quais as possibilidades que vai ter para o próximo, o que pode
fazer. Tem que ter a festa. Mas, depois de todas as experiências que falei,
descobri que eu precisava ter um grupo. Até aquele momento, eu vinha passando
por grupo dos outros, participando de montagem dos outros. Comecei a ver que
havia uma brecha dentro do Rio Grande do Norte, para uma forma de teatro que
não se fazia lá. Coordenei alguns festivais no Teatrinho do Povo, o Teatro
Sandoval Wanderley, e eu sentia que o sonho dos meninos da periferia era um dia
se apresentar no Teatro Alberto Maranhão. Pensei em fazer um teatro que não
precisasse do Teatro Alberto Maranhão. Que não precisasse de palco ou luz, mas
apenas de uma praça, de ter gente ao redor, o povo pra assistir. Comecei a ver,
saí pra assistir um grupo chamado Imbuaça,
em Aracaju, que fazia teatro de rua. Ele esteve em Natal também, veio pra
Mossoró... Aqui houve o primeiro problema policial da história do teatro,
porque era proibido fazer teatro na praça. Fomos até a delegacia, e quando o
grupo terminou o espetáculo, saímos da delegacia. Ninguém proibiu porque a
gente estava discutindo com o delegado sobre a liberdade das praças, repetindo
as velhas frases do Castro Alves: “a praça é do povo como o céu é do condor”. Assim
surgiu a ideia de formar o Alegria
Alegria. A primeira linguagem que pegamos foi a linguagem do palhaço.
ZONA SUL – O grupo de Aracaju fazia teatro
de rua também...
JÚNIO – O Imbuaça fazia só com cordel. E eu não queria ficar copiando. Também
conheci o Amir Haddad, que já trabalhava com o teatro e tinha um processo mais
de inquirir as pessoas sobre determinadas questões. Boal já tinha sua forma de
trabalhar, e a gente tinha que buscar a forma papa-jerimum de fazer teatro. Não
adianta você trazer a prática do Rio ou de Recife pra Natal. Somos diferentes.
Não adianta nem pegar a prática de Natal e levar para o interior, porque não é
a mesma coisa. Temos características completamente diferentes. A cada lugar
dentro da mesma cidade, do tamanho de Natal, Brasília ou qualquer que seja,
você vai encontrar em cada bairro um segmento de cultura diferenciado do outro.
É isso que faz o nosso produto, o fruto da nossa miscigenação. O povo tem sua
forma de expressão cultural que se transforma em arte quando ele dá brilho,
quando ele dá cor, quando ele dá voz, quando ele dá gesto, quando ele dá
movimento. Criamos o Alegria Alegria
em uma casa de Petrópolis, numa conversa com Nélson Rebouças, eu, Lula,
Medeiros, Rino Dantas e o Galvão, que tava chegando também pra fazer algumas
músicas. Depois acrescentamos a eles uns meninos do grupo Ponto de Partida, o Alex e o Jorge Romano, que participavam de
outro grupo, mas integravam também o Alegria
Alegria e partimos pra ocupar a grande brecha que existia no momento, que
era fazer as lutas populares.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – Já 1981. Em 1983, o Alegria Alegria surgiu de fato. Em 1981
promoveu a primeira oficina de palhaço no Teatro Sandoval Wanderley. Fizemos o
primeiro cortejo de palhaços, saindo do Alecrim até o Centro da cidade, em cima
de uma carroça. Em 1983 entramos na campanha das Diretas. Fizemos as bases, as
pontas das ruas até o frustrante momento - todo mundo no Sindicato dos
Professores – quando o pessoal por telefone ia dando a notícia de quem tinha
votado a favor ou contra. A sessão não foi televisionada. Ficamos entretendo as
pessoas, aguardando o final da votação. Dali estabelecemos uma relação com os
sindicatos, passamos a ter uma aproximação muito forte com o Sindicato dos
Bancários, fazendo várias lutas sindicais, a retomada do Sindicato dos
Comerciários, o Sindicato da Limpeza. Depois vieram todos aqueles sindicatos.
Começamos a operar junto do meio sindical, uma brecha que ninguém tinha
utilizado antes. Isso não quer dizer que antes não se fazia teatro de rua, se
fazia. Nas Quintas mesmo, no final dos anos 1970, na Rua Baraúna, tinha um espetáculo
chamado Dona Baraúna vai a prefeitura.
Mas era esporádico, não tinha uma vida de teatro de rua. Depois as pessoas iam
fazer os teatros nos centros sociais, nas comunidades. O Alegria Alegria foi de fato o primeiro grupo a se instalar como
teatro de rua. Pra isso a gente teve que ser radical. Somos teatro de rua e
somos contra aquele outro. Hoje, lógico, somos a favor de todos os teatros. Eu
pelo menos defendo que todos são importantes. Mas, pra gente pegar o número de
pessoas interessadas, entramos na radicalização mesmo. Aproveitamos um texto do
Racine, chamado As aventuras de Pedro
Malasartes pelos caminhos tenebrosos
do sertão. Conversei com ele pra mudar o final, que no original de Racine
era um pastoril. E eu quis mudar pra um Boi de Reis. O Boi Calemba é uma coisa
muito forte. Montamos pro boi, esse espetáculo. A primeira coisa que ele
diferenciava do outro, além de estar na rua, ele não tinha maquiagem. O único
ator que pintava o rosto de preto era o Alex, porque as Caterinas são feitas
por homens que pintam o rosto de preto. Todos os atores não tinham maquiagem,
era cru. E as roupas era a coisa mais simples, então não tínhamos bagagem. Era
a calça e a camisa.
ZONA SUL – E o custo também era reduzido...
JÚNIO – Custo muito reduzido. Saímos sete
num fusca pra fazer uma campanha do Sindicato dos Cortadores de Cana em Ceará
Mirim. A coisa maior que tinha era um boi, que era de espuma, feito por João
Marcelino. Ele fez uma coisa fantástica. Nosso figurino, por mais simples, só
aquelas palas, com as cores que a gente chegava e o boi, já chamava atenção de
todo mundo. Então a gente botava o boi lá na frente do Fusca, na malinha da
frente e iam sete pessoas fazer espetáculo debaixo de poste, dentro do
canavial. Tinha toda uma facilidade, a gente tinha pensado em toda essa
praticidade. É um espetáculo de praticidade.
ZONA SUL – Desde o princípio a recepção do
público foi boa?
JÚNIO – A nossa estreia foi maravilhosa.
Estreamos na Praça Kennedy, que antigamente chamava-se Praça da Cocada. A nossa
estreia já foi uma coisa assustadora. Quando terminamos, o povo tava ali junto,
querendo saber quando ia ter de novo. Na época não tínhamos nem sede,
ocupávamos uma sala em uma casa alugada pela Fundação José Augusto, chamada a
Casa dos Artistas. Os grupos que estavam em ação, cada qual tinha um quarto lá
para guardar seu material. Nos reunimos lá e definimos que toda quarta-feira teria
espetáculo no mesmo canto. Na quarta-feira a gente não vende, é o nosso. Nos
outros dias está livre para fazer o que quiser com ele. Se a gente estiver em
algum canto já, festival, a gente avisa com antecedência que naquela quarta não
vai fazer, mas só no caso de não estar na cidade. Marcamos. Quando construíram
o Calçadão do Grande Ponto, passamos pra lá. E marcamos todas as quartas-feiras,
às cinco da tarde a gente abria a roda ali com o mesmo espetáculo. Chegou um
momento que estávamos comemorando 500 apresentações do Pedro Malasartes. Só lá naquele local a gente tinha feito 200.
Quase a metade.
ZONA SUL – A imprensa desde o princípio
recebeu bem o Alegria Alegria?
JÚNIO – Recebeu. Nunca procuramos. Como a
gente fazia teatro de rua, botamos na cabeça que a imprensa tinha que vir até a
gente. E começou a imprensa a vir. Aparecia sempre um jornalista pra fazer uma
matéria, o Vicente Serejo sempre mandava alguém, a Tribuna do Norte também.
Tínhamos a coluna de Woden, que era superlida, que nos cedia espaço para
divulgarmos o que quiséssemos. Ele sempre colocou nossas mensagens. Ele tinha
um respeito e uma admiração muito grandes pelo nosso trabalho. Isso fez com que
a gente trabalhasse junto e foi uma relação muito boa. Com as nossas
diferenças, muito boa. Tinha alguns segmentos da imprensa, alguns jornalistas
que passavam e nem olhavam. Mas a gente tinha poucos jornalistas discutindo arte.
A gente tinha um Rogério Cadengue, dentro da Universidade, brigando por esses
espaços, para que os jornais dessem espaço. Havia já uma aproximação em torno
daquele grupo que estava surgindo na rua. Estreamos sem material, sem nada. Só
com o boi que a gente tinha feito. Em seguida vendemos 10 espetáculos à antiga
Secretaria de Turismo e Cultura, que era Gileno Guanabara o secretário, em
troca do material. Por três dias a gente já estreou com todo o figurino pronto.
Para botar esse espetáculo, convidamos os atores que não eram do grupo para
passar a integrar o grupo. Grimário, que hoje está com o Alegria Alegria, foi um dos que trabalhava na Setas e eu fui lá
convidá-lo para fazer o Capitão João Redondo. Aí ele chamou o Dimas Marques,
que era ligado a Toinho Silveira. O Toinho Silveira foi uma figura
importantíssima. Sua coluna nos deu prêmio de destaque do ano, naquela famosa
festa que tinha no 1001 Noites. A gente não entrou porque não tinha smoking.
Mas ficamos do lado de fora, comendo...
ZONA SUL – Vocês já eram acostumados com a
rua mesmo...
JÚNIO – ...e entramos só na hora de fazer
a apresentação. O Alegria Alegria
despertou uma comoção no povo de Natal no sentido de que a rua tinha voltado a
ter brincadeira. Isso é muito bonito. As ruas perderam as brincadeiras com o
tempo. Passaram a ser local de perigo, todo mundo segurando sua bolsa embaixo
do braço. Desconfiando de todos. Se eu passar com a camisa furada o cara já
acha que sou bandido. Às vezes nem sabe que geralmente o bandido está bem
arrumado, ao lado dele. Começamos a ter um espaço que grupo nenhum, naquele
momento dentro do estado tinha. Era o teatro que ia a qualquer lugar, que
chegava a qualquer lugar, que tinha uma facilidade enorme.
ZONA SUL – Isso provocou ciúme nos outros
grupos?
JÚNIO – Acho que algumas pessoas deram
uma afastada e passaram a olhar de forma diferente. Mas outras figuras se
aproximaram mais ainda. O Chico Vila, que já faleceu, foi diretor nosso em um
espetáculo. Era uma figura que sempre estava lá conversando com a gente, sempre
assistindo. O João Marcelino era figura que admirava, sempre via ele nas rodas
assistindo nosso espetáculo. E outras figuras chegaram. Mas a gente também não
tinha muito essa preocupação. A gente sabia que não estava fazendo um
espetáculo para a classe, nem para a crítica, mas para o povo. Eu fiquei muito
feliz porque passei a ser um dos caras mais conhecidos daquela região ali. Eu
morava na Princesa Isabel, e as vezes quando eu passava era conhecido pelos
mendigos. Eles não me pediam esmolas, perguntavam quando tinha espetáculo. Eu
chegava em uma sapataria ali na Câmara Cascudo e era atendido com uma rapidez
muito grande. Uma vez fui comprar um sapato e um dos vendedores falou: “rapaz,
eu gosto muito do espetáculo, mas esse horário não é bom pra gente que trabalha
no comércio. Vocês começam às cinco, a gente fecha às cinco e meia e ainda tem
que arrumar as prateleiras todas. Quando a gente chega, só vê o final”. Nós
mudamos o horário pras seis horas, que era para atender nosso público. Dali
aparecia um convite para fazer apresentação na Cidade Nova, nas Quintas, nas
Rocas, tinha tudo isso. Fizemos uma vez uma Rota do Perigo, chamavam a rota do
fumo. Fazer espetáculo onde o pessoal diz que tem boca de fumo, lá nas favelas.
Km6, Favela da Alta Tensão, Favela da Lavadeira. Esse era o público que nunca
tinha visto teatro.
ZONA SUL – Qual teria sido o espetáculo do
qual você participou que mais obteve sucesso?
JÚNIO – O espetáculo que mais marcou foi
o que considero a minha estréia, não diminuindo os outros trabalhos, que é O assalto, que foi o primeiro espetáculo
que fiz com um diretor que não era de Natal. Só que houve um problema. Só
fizemos quatro apresentações. Fizemos três em Natal e uma no Paraná. Ele marca
uma trajetória muito curta, mas ele marca pela existência de um processo de
trabalho, pela minha educação como ator. Agora, o trabalho que mais tempo
ficamos em cena e que mudou de alguma forma uma história, foi As aventuras de Pedro Malasartes pelos
caminhos tenebrosos do sertão. Eu fiz 1462 vezes o mesmo personagem, o
mesmo espetáculo. Eu fazia o papel de Pedro Malasartes, eu fazia o papel
principal. Lógico que o mesmo espetáculo a gente nunca fez, sempre era
diferente. Sou um ator, como o povo diz, caqueiro. Coloco caco demais. Escutei
alguém falando, se acho que dá pra aproveitar, sacudo no meu texto, em vez de
ser uma resposta positiva, e depois ele fica ou não. Se for negativa, eu tiro
mais tarde. E a rua permite isso. No palco não, porque tem o tempo da luz, o
tempo do outro ator, o tempo cenário, o tempo do figurino e o tempo do público.
Tudo isso determina o tempo do espetáculo. Na rua, não. A rua é livre. Espetáculo
certinho na rua tem a tendência de virar um teatro de palco na rua. Pedro
Malasartes foi uma escola de teatro. A partir desse espetáculo, as portas do
interior do Rio Grande do Norte se abriram pra mim, quando comecei a descobrir
outra vida, que não era a vida da capital. Comecei a ver o quão gostoso é o
sertão. Eu não conhecia direito o sertão, tinha passado pelo sertão. Mas viver
no sertão, então começa a abrir. Surgiu um grupo em Lagoa Nova, de filhos
de agricultores, que tinha como bandeira construir uma casa de farinha. Nos
convidou, fomos pra Lagoa Nova trabalhar com esse grupo e trabalhar com as
crianças a linguagem do palhaço e com esse grupo o teatro. Surgiu em Mossoró um
movimento de teatro de rua que já vinha do Grupo
Terra, do Aécio Cândido, que era de palco e já estava saindo pra rua,
surgiu o Arruarte, que mais tarde
virou o Escarcéu. A gente vinha pra
cá participar com eles do trabalho inicial da estréia do espetáculo. Surgiu em Currais Novos o Boca de Rua, que era do Jefferson
Fernandes, então fui dirigir o primeiro espetáculo. Começou a abrir mercado de
trabalho na área. Tanto que saí da Fundação José Augusto sem nenhum trauma, em
seguida. Saí com um mercado de trabalho grande.
ZONA SUL – Como foi sua passagem pela
Fundação José Augusto?
JÚNIO – Ela tem uma história de um viés
democrático que foi tentado logo no início do governo Geraldo Melo, mas também
tem algumas coisas que acho que a gente não tava acostumado com essa primeira
abertura democrática que o país estava experimentando. Algumas coisas sujaram
esse processo. Primeiro foi feita uma eleição pra diretor do Teatro Alberto
Maranhão. Foi feita uma reunião na Academia de Letras e nela fiaram definidos
alguns candidatos. Saímos eu e a Diana Fontes. Depois o Racine lançou o nome
dele também. Eu tinha sido presidente da Federação de Teatro, tinha terminado
minha gestão, tinha passado dois anos como presidente. Quem assumiu foi o
Sérgio Viana, eu estava saindo. E a Federação de Teatro era uma organização que
estava no país todo e que tinha algumas realizações muito fortes no Rio Grande
do Norte como um todo. Fui indicado para ser diretor do Teatro. Fui disputar
com a Diana Fontes. No dia o Racine colocou o nome dele. Mas foi uma verdadeira
máquina eleitoral. Era ônibus, kombi chegando carregando gente. Não tinha um
cadastro de artistas, ninguém tinha uma carteira, um documento dizendo que era
artista. Qualquer pessoa chegava lá e dizia que era artista. Nós perdemos para
Diana Fontes. Se não me engano, uma média de 10 ou 12 votos, por aí. Perdemos
para Diana, tudo bem. Assumiu o teatro com o nosso apoio. O Chico Alves, que
estava na Fundação, uma indicação de Woden Madruga, pegou o cargo de chefe do
Núcleo de Artes Cênicas, que juntava o Circo da Cultura e o teatro, e disse: “o
segundo lugar fica nesse cargo”. Lá encontrei com Babal, que já estava na área
da música, com Hermano Figueiredo, no cinema, e aquela moçada todinha e
passamos a ficar dentro da mesma sala. O nosso processo lá foi do rompimento,
da saída da FJA de uma atuação só metropolitana para uma fora dessa região. Saí
num carro da FJA fazendo convênio em Caicó, Currais Novos. Fizemos a mostra de
teatro popular e de dança, em Caicó a gente fez o Circuito de Teatro e Dança do RN, tanto dançava grupo de balé do Zás Trás, um grupo de Mossoró, o Alegria Alegria. A gente saiu fazendo
convênios com essas estruturas todas. No meio dela tinha uma cidadezinha que
pouca gente conhecia, perdida lá no sertão, chamada Janduís, que estava numa
efervescência cultural tremenda, principalmente na área da poesia. Saiu matéria
em Veja, Globo e tal. Um dia Woden me chamou e disse que ia para o I Congresso Nacional de Secretários de Cultura
do Brasil, que estava sendo criado naquele instante. Ele disse que tava
vendo na programação que tem uma discussão sobre Janduís, e não conhecia nada
de lá. Eu disse que conhecia e lhe passei todas as informações. O Raí Lima
tinha chegado do Rio e estava fazendo um trabalho muito legal. E fui conhecer e
me encantei pelo trabalho, até hoje sou janduiense adotado. Sou cidadão
janduiense. Minha passagem pela Fundação foi criar essa possibilidade de que a
gente se interiorizasse, deixasse de ser um órgão da cultura só da cidade. As
coisas eram muito centralizadas em Natal, em Mossoró. Os grupos de lá quando se
reuniam era para chorar que nada chegava aqui. Chegavam lá os cartazes e no
máximo os grupos da cidade sabiam. Em todas as cidades que tinham dos ministérios,
do Serviço Nacional de Teatro, os editais de auxílio e montagem, geralmente um
grupo do RN, de Mossoró não ganhava porque não tinha como se inscrever. Quem
ganhava era o de Natal. A gente foi nessa perspectiva e era uma idéia também de
governo abrir, se interiorizar.
ZONA SUL – Por que você saiu do Alegria Alegria?
JÚNIO – Junto com a Fundação José Augusto,
com esse conhecimento do interior todo, surgiu, em 1991, o Movimento Popular Escambo Livre de Rua, que integro até hoje. São
17 anos dentro deste movimento. Quando o Escambo
surgiu, eu ainda era da FJA. Fomos a Janduís, fizemos um encontro de três dias
onde cada artista levava o seu próprio alimento e lá socializava com os outros
e as cozinheiras cozinhavam. A gente comia e fazia arte. E fazia produção
artística. Ia na casa das pessoas saber o que elas podiam oferecer a um grupo
local. Levantamos roupas, bengalas, paletó, chapéu... Foi uma coisa muito
bonita. Mas a gente achava que ia ser só aquela vez. Em seguida uma cidade diz
que está passando pelo mesmo problema e nós fomos a essa cidade. Nesse
intervalo de tempo passei a ter uma dedicação muito grande ao Escambo. Então eu pegava minha questão
da Fundação e sempre estava perto de um grupo ligado ao Escambo. Quando José Agripino reassumiu o governo, Iaperi Araújo
substituiu Woden Madruga na presidência da Fundação. Voltaram todos os que estavam
anteriormente. O Rio Grande do Norte brinca muito de ida e volta. Como nunca
fui muito do jogo político, até hoje não tenho essa relação, não quero os
favores, não tenho muita vontade de ter esses favores. Até me afasto um pouco
deles. Teve uma reunião da Fundação que foi colocado que a partir daquele dia
todos tinham que vestir a camisa da Fundação. Coloquei que eu já vestia uma
camisa que era a da arte, antes da FJA. E a Fundação só existe porque existe a
arte lá fora. E ela não faz arte e não deveria fazer de forma nenhuma, ela é a
fomentadora da arte. O papel é diferente. A gente tem que fazer que a produção
aconteça e nós temos que chegar para fomentar essa produção. Mas até hoje a
Fundação continua um pouco amarrada nesse sentido, ela ainda acha que tem que
fazer. E ela ainda é uma dificuldade na articulação com a cultura do estado. Eu
digo muito que o movimento artístico cultural está muito a frente da FJA, que
era já pra ter sido modificada no que diz respeito a estatuto, leis, sua forma
de organização, porque ela é muito antiga, ultrapassada. Tem que se moldar ao
novo. Como continua do mesmo jeito, está se tornando cada vez mais burocrática.
Naquela época a gente rompia um pouco com essa burocracia porque Woden tinha
uma disposição de romper. Quando eu dizia a ele não dá pra gente agüentar ficar
aqui dois meses com um artista aperreando no birô, você vindo com ele na
tesouraria, pra saber onde está o processo dele, por que a gente já não leva o
cheque dele pronto e no pé do palco a gente paga? Faz o empenho com
antecedência. Trabalhei nessa parte burocrática e sabia muito que às vezes você
faz um empenho em uma hora. O empenho não é nada, é só levar pros outros
assinarem. Quer pagar? Paga. Se não quer, amacia. Quando houve a mudança na
Fundação, não me cabia. Eu tinha uma relação de respeito e de trabalho com
Woden que não era a mesma com Iaperi. Eram outras pessoas que ele admirava e
achava que seriam mais importantes naquele momento. Só que foi uma ruptura dura,
porque eles não pagaram os meus direitos. Pelo contrário, fui receber e o Setor
Jurídico falou que eu tinha direito ao Fundo de Garantia e só. Cargo
comissionado não tinha outros direitos. Muito curioso, peguei a Constituição, e
comecei a ler. Vi o 5º artigo e procurei o Sindicato. Depois de bem duas horas
esperando, o advogado do Sindicato também disse que eu não tinha direito.
Procurei outro advogado, Tertuliano Cabral, um menino que estava terminando
Direito. Ele levou pra um professor dele que disse: “se não tem direito, vai
ter a partir de agora. Vamos pra luta”. Ele pegou minha primeira causa. E o
professor disse: vamos descobrir as brechas. Entramos com uma ação. Minha ação
era para receber o que eu tinha direito. Eu tinha férias acumuladas, 13º, os
15% do FGTS, o FGTS e resolvemos pedir uma indenização por perdas e danos,
porque ficaram me cozinhando. Houve um processo difícil durante aqueles quatro
anos. Primeiro porque a Fundação não ia. E quando ia, era uma funcionária que
não entendia da questão jurídica. Ficava calada. Por outro lado, o meu advogado
Tertuliano, um menino novo, lendo pra caramba, terminando a Universidade,
interessado em ganhar a primeira causa. Passou dez anos pra eu receber. Com o
passar do tempo, Garibaldi reassumiu o governo e resolver pegar todas essas
pendências e pagar. Mas pra isso tinha que haver uma negociação. Sai da FJA em
1988, isso já era 1995. Diziam que eu não recebia mais, mas eu sempre
acompanhando o processo. Houve a negociação e com a questão dos juros e tudo, a
indenização já estava ultrapassando os 200 mil. Chegamos a um acordo por 90
mil. Foi uma queda muito grande, mas havia necessidade. Eu estava mudando de
Aracati para Carnaúba dos Dantas. Era minha volta ao Rio Grande do Norte. Minha
companheira estava assumindo a Secretaria de Educação e eu estava assumindo uma
assessoria do prefeito que queria fazer um trabalho diferente da cidade. Ele
era ligado ao grupo político, contei a história, mas o advogado estava por aqui
já furando os bloqueios. Ele aconselhou aceitar o acordo. Recebi ainda
parcelado, mas foi superimportante na estruturação familiar, pois passamos a
ter uma casa, que é uma base fantástica. Eu tinha me casado novamente.
ZONA SUL – Mas, e a saída do Alegria Alegria?
JÚNIO – Saí do Alegria Alegria muitas vezes. Sou um eterno iniciante. Vou morrer
iniciando. Já entrei em cursos, passo um tempo, depois saio pra começar outro.
Com 10 anos de Alegria Alegria entrei
no meu primeiro processo de crise. A crise era essa questão da multiplicação.
Eu vivia mais fora do que na sede. A gente já tinha uma estrutura muito legal.
Quando começamos com o teatro infantil, a gente pagava um salário mínimo por
mês aos atores. E tinha uma sede com geladeira, fogão, comida e lá se guardava
a roupa. Eu estava me separando, praticamente morava lá. Quando o Alegria pegou um nome, a gente vivia de
festivais fora. Quando estávamos nos preparando pro primeiro festival em
Portugal, eu em Janduís fazendo um trabalho, tive um desgaste político muito
forte. Devido às minhas intenções de continuar fazendo um teatro comprometido
com as lutas sociais, já que o movimento era de muita efervescência, a CUT se
organizando e tinha também os interesses que era de profissionalização dos
outros atores. Eu queria dar voos maiores, me firmar como artista, como grupo
na cidade. Eu tava também passando do período da minha prisão. Tinha sido
preso, um incidente que me levou a responder a um processo, em 1993.
ZONA SUL – Que incidente foi esse?
JÚNIO – Fomos fazer um espetáculo do Pedro Malasartes em frente ao Palácio do
Governo para o primeiro grupo de apoio aos aidéticos de Natal. E o hospital que
cuidava disso era o Gizelda Trigueiro. Lá só tinha cinco leitos, o material era
enrolado em jornal quase embaixo de uma pia. Esse era um espetáculo de
solidariedade, a gente não cobrava. Nos chamaram para apresentação em frente ao
Palácio do Governo, para enfocar esses problemas. E eu enfoquei isso dançando
com uma boneca. Quando terminou, ficamos conversando do lado de fora. Batemos
um longo papo ainda e fomos descer para nossa sede, que ficava na Ocidental de
Baixo. Quando fomos saindo, um carro da Polícia nos cerca e nos convida para ir
a Secretaria de Segurança. Eu, brincando ainda, disse que se era convite eu
aceito ou não. O policial falou que se eu não quisesse iria à força. Eu disse
que não iria só. Estávamos três pessoas. Como o João Pinheiro tinha um carro,
um fusquinha, pedi que ele fosse até a sede do PT - era uma terça-feira, o
partido estava em reunião - e comunicasse que eu estava descendo pra Secretaria
de Segurança. O Luis Humberto, que fazia o Xexéu comigo, me acompanhou. Fazia
uma semana que a gente tinha feito espetáculo na greve dos policiais civis. Quando
entramos, o Doutor Maurílio, sentado na cadeira, disse: “como é que pode com
tanta tristeza se prender o Alegria
Alegria?”. Ele aconselhou: “Júnio, faca o seguinte, evite fazer espetáculo
no Palácio, tem algumas pessoas que não gostam disso, procure outra praça”.
Nessa hora entra Manoel de Brito, secretário de Segurança, que estava em uma
vaquejada em Macaíba.
Ligaram do Palácio pra ele. Ele entrou, não conversou conosco
e só foi dizer cinco artigos pra nos enquadrar. Prenda, enquadra no artigo x,
y, h... Era atentado ao pudor, formação de quadrilha, perturbação da ordem
pública, desacato à autoridade... O Maurílio chega se assustou, ainda tentou
conversar com ele, mas não teve jeito. Leva para a Delegacia de Candelária.
Nessa hora já tinha chegado ao prédio algumas pessoas do PT, inclusive Júnior
Vigilante, que na época era presidente do Sindicato dos Rodoviários. Chegou num
Gol velho, encostou lá. Fomos colocados num carro da polícia às seis e meia da
noite, horário do trânsito forte dentro de Natal. Saímos da Ribeira até
Candelária pela Prudente de Morais, com a sirene ligada, rompendo todos os
sinais como se a gente fosse bandido, ladrão de banco, assaltante importante. E
vinha aquele carro seguindo, Júnior, no Gol dele, colado no carro da policia.
Quando chegamos, ele desce do carro, que tava fumaçando, e pede aos policiais
pra gente entrar pelo lado. Tinha na época o programa Aqui e Agora. Era muito alarmante. O delegado era Buenos Aires, já
faleceu. Ele, uma figura fantástica. Disse que não ia lavrar o auto porque
aquela prisão era inconstitucional, a censura tinha acabado, estávamos no
período da livre expressão. “Vocês vão ficar aí, mas não estão presos”. O
escrivão sentou-se comigo e perguntou meu nome todo. Respondi. Ele acrescentou:
“e a alcunha?”. Eu disse que artista não tinha alcunha, tinha nome artístico.
Ele escreveu. Começou a chegar gente, o movimento da Cidade da Esperança, de
outros bairros. Ficaram do lado de fora com cerveja, churrasquinho, foi uma
verdadeira festa do lado de fora e a gente preso. O delegado disse que a gente
podia dar entrevista, se quisesse. Eu quis. Demos entrevista, alegaram que
tínhamos chamado o governador de Galega do Alecrim, eu disse que sou artista de
rua, não vivia nos palácios e, portanto, não tinha como saber o apelido do
governador. Se vocês sabem é porque vivem lá dentro. Galega do Alecrim era a
boneca com a qual eu dançava. Se ele chamava o outro de Galega eu não sabia,
não conhecia esse viés. Ficamos lá, era um dia muito legal, tinha jogo Brasil e
Polônia, tivemos permissão de assistir a goleada do Brasil. Perguntei até se
podia tomar uma cerveja, não deixaram, mas permitiram uma Coca-Cola. Dormimos
nessa cela eu e o Beto. Ele armou a rede dele, eu botei um colchão no chão. Apesar
de ser de 1955, na época da repressão eu não tinha passado por aquilo, eu tinha
lido quando tava no PCB e depois quando entrei no PT. Tinha lido a literatura
vasta que tem sobre a questão. Me veio Vladimir Herzog na cabeça, todas aquelas
figuras que estavam na barca. Eu botava a cabeça pro lado de fora e achava que
não ia dar certo, botava os pés e ficava com medo. Então, passei a noite
acordado. No outro dia tinha um grande café da manhã de um cara do PT com quem
eu tinha tido problema com ele, numa montagem de espetáculo. Ele tinha parado o
espetáculo pra fazer um discurso político e eu tinha brigado com ele. Era o
Fernandão. Ele chegou com grande café da manhã que socializamos com os
policiais e com os presos e de lá saímos para a primeira audiência. Lá estavam
as testemunhas de acusação. O mais louco é que quando elas falavam, nós não
podíamos estar na sala, mas quando a gente falava eles podiam estar rindo,
mangando, zombando. Todos mandados pelo Palácio do Governo, pelo Leônidas
Ferreira, o chefe de gabinete. Na noite anterior tinha havido jogo em Natal e
Júnior Baiano tinha dado murro num repórter e tinha pago a fiança às 4 da manhã
pra poder viajar com o Flamengo. E quando foram nos liberar eram 4 da tarde. Os
bancos já estavam fechados pra pagar a fiança. Por mais que tenham dito Júnior
Baiano pode, Júnio de Natal não pode? Que discriminação é essa? Tive que
assinar como pobre, que não tinha condições de pagar a fiança. Tiveram que ir a
uma delegacia providenciar um atestado de pobreza pra mim. Foram a Delegacia de
Ponta Negra, o delegado era Osni Monte, irmão de Roberto Monte. Conseguiram
trazer, chegou lá Doutor Bandeira, que estava coordenando a investigação, e não
aceitou porque tinha que ser assinado pelo escrivão. Ficou nessa brincadeira
todinha e findou nos levando de novo de volta pra Delegacia. Mas havia uma
reunião na OAB onde chegou na Secretaria de Segurança o doutor Hélio e todo o
conselho da OAB dizendo que era um absurdo, não podia acontecer. Assim mesmo
voltamos pra Delegacia. Meu ex-sogro, que tinha sido delegado de Polícia,
Geraldo Rabelo, foi a Delegacia. Nem esperávamos sair, mas ele teve um longo papo
com o delegado e, por telefone, com Manoel de Brito. Às oito e meia disse:
vamos embora. E saímos da delegacia. Meus filhos já estavam sofrendo muito, o
mais velho chorava. Ficamos respondendo processo. Foi um ano, até em uma sessão
que eu nem precisei mais comparecer, o promotor viu que todas as respostas
estavam numa agenda da testemunha de acusação. O cara nem estava no fato, eles
criaram a testemunha e deram tudo por escrito. Se perguntarem isso, responda
isso. Fomos absolvidos. Mas é um processo doloroso porque um ato cênico de
teatro de arte voltado pra um problema de saúde, de vida, se transformar numa
polêmica toda dessa. Mas ao mesmo tempo nos deu mais coragem de continuarmos
fazendo do nosso teatro uma arma também de denúncia. A gente não pode ficar só
balançando a cabeça, a gente não é lagartixa. Mas, por outro lado também forçou
a sair de Natal. Havia uma idéia de perseguição também. Eu não tinha essa
idéia, mas as pessoas que viviam comigo começaram a ter. Foi no período em que
o Centro de Direitos Humanos começou a denunciar os Meninos de Ouro de Natal. Colegas
disseram que alguns de nós tínhamos que sair de Natal. Gonzaga foi pra São
Paulo e eu saí para Icapuí. Lá recebi uma dádiva, um prêmio, não precisei chegar
lá pedindo. Eu tinha um recurso pra fazer um projeto com crianças lá. Recurso
da Coordenadoria Ecumênica de Serviços, da Bahia. A pessoa que estava lá era
Graça, militante de Natal e junto com Direitos Humanos me passaram esse recurso
pra eu não chegar na cidade precisando de dinheiro. Eu tinha um trabalho.
Cheguei me oferecendo pra fazer um trabalho com, na época, 7 mil URVs. Não
cheguei por baixo. Fiz um trabalho interessante que depois a prefeitura
assumiu. Criamos a Escolinha de Arte e eu sempre tou por lá e vivo por lá esse
tempo todo. Foi momento muito marcante da saída. Por outro lado eu estava em
outro processo de teatro. Queria criar um centro e não mais um grupo. Não
queria ter um grupo e continuar com a responsabilidade de montar espetáculo
daquele grupo, eu queria um centro que tivesse pessoas e condições de montar
com quem não estava com condições de fazer ou que não recebiam recursos. Era o Centro Volante de Assessoria Teatral,
que a gente chama de Cervantes do Brasil.
Então saí com esse intuito. Juntamos mais seis pessoas e fizemos o Cervantes. E pegamos uma abertura enorme
no Ceará porque fizemos logo que chegamos uma articulação muito forte com o Unicef.
Foi quem nos apresentou ao Ceará. Chegamos lá com pouquíssimos grupos de teatro
de rua e hoje tem mais de 180.
ZONA SUL – Você continua de cabeça nesse
projeto.
JÚNIO – Hoje, por exemplo, eu não
trabalho pra ninguém. Tava até comentando com amigos que esse ano tive um cachê
de 100 reais com o que eu faço e gosto de fazer. Disse duas poesias em janeiro,
ganhei 50, disse duas em maio e ganhei outros 50. Foi um primeiro semestre
terrível. Mas não me aperreei. Porque sei que no segundo semestre seria
diferente. Quando chega julho a gente se apega de um trabalho pra outro. Coisa
normal. Início do ano tem Carnaval, Semana Santa... Então poucas prefeituras e
pessoas estão investindo. Continuo dentro do movimento popular Escambo Livre de Rua. São 17 anos e 24
realizações, temos alguns apoios, a gente tem sido contemplado nos editais do
BnB e isso é muito importante. Mas temos uma intenção forte de poder viver da
nossa arte junto com o movimento popular. A gente tem dito muito nos encontros
que nós fazemos... Faço hoje mestre de cerimônias de abertura de encontros do
movimento sem aquela formalidade. Faço de vaqueiro cantando aboio... Tem mudado
muito a realidade daquela coisa muito formal e as pessoas têm ficado mais a
vontade pra falar. O público tem agradado mais, é uma coisa muito bonita. Tenho
dito muito nesses encontros que o movimento popular – que hoje recebe muito
recurso, o governo está investindo muito nos movimentos populares – ele tem que
destinar uma parte considerável pra esse trabalho de arte. Porque esse trabalho
de arte pode contar a história do movimento de uma forma muito mais viva do que
uma palestra. De uma forma muito mais animada do que qualquer outra coisa. Nós
somos verdadeiros livros andantes. Os artistas são livros que andam, livros que
falam, livros que cantam. Sem tirar a força do livro. O registro é superimportante
porque ele fica lá para sempre. E a gente tem sempre pregado e discutido isso.
Eu quero continuar vivendo do meu trabalho junto com o movimento popular.
Porque o movimento popular não me faz uma cobrança de compromisso partidário.
Ele não me pede para segurar bandeiras e ficar trocando de bandeiras
constantemente. Porque é isso que a gente entende hoje. E eu entendo muito que
no processo político nós estamos agora atrás dos inteiros e não dos partidos.
Os partidos são verdadeiros rachados, são partidos mesmo.
ZONA SUL – Estão partidos até dentro deles
próprios...
JÚNIO – Sim, e nós estamos em busca de
idéias que sejam dos inteiros, aquelas idéias que pensem não individualmente,
não umbilicalmente, mas que pensem de uma forma muito mais ampla, aberta, mais
coletiva. Isso é um discurso tão antigo da humanidade, a gente sempre criou, e
está avançando mais. Pra que a gente possa se comunicar com o mundo a gente
está mantendo, com algumas dificuldades, um blog - www.cervantesdobrasil.blogspot.com
– onde lá está a história do nosso grupo, o Cervantes,
do movimento Escambo, dos movimentos
populares. É essa história da multiplicação desse fazer de arte em cantos que
as pessoas não entendem que isso possa acontecer. Seguimos muito uma ação
determinada em um poema de Frederico Garcia Lorca. Ele escreveu esse poema, que
é uma das coisas mais lindas, ele diz assim: “Eu quero para o teatro a chegada
da luz de cima sempre / Quando os de cima chegarem ao teatro tudo estará
resolvido / Os de cima são aqueles que nunca viram Hamlet, Otelo, nem nada /
Existem milhões de pessoas que nunca viram teatro / Mas como sabem vê-lo quando
o vêem”. E a gente tem mudado esse final e colocado assim: “Existem milhões de
pessoas que nunca fizeram arte / Mas como sabem fazê-la quando a fazem”. Então
basta ter uma oportunidade para você ver como as pessoas fazem. E fazem bem
feito. É só se aprofundar. Por outro lado, se não fizer bem feito, vai servir
pra sua vida. Em vários momentos da nossa vida a gente precisa tirar a arte de
dento pra resolver a situação. Eu já criei vários personagens de determinados
momentos de blitzen, de confusão... Você trabalha dentro de você a
não-violência, já que a violência está muito latente, pra que possa resolver
aquela situação. Uso a arte como um instrumento de vida, não apenas como um
instrumento de espetáculo. Porque ela nasceu na possibilidade da luta do ser
humano se alimentar. Ela nasceu pra enganar e enganando os animais ele poderia
matar os animais com mais facilidade, já que não tinha arma, e poder comer. Se
a gente for buscar essa origem a gente vai ver que até hoje nós continuamos
matando uma ruma de animal disfarçado de máscara, pintado, com figurinos
coloridos pra poder viver.
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