Encontros Impossíveis:
Um encontro impossível com o “anjo pornográfico”, que segue encenando o drama humano — agora, do outro lado do palco.
“A morte não é o fim da peça. É apenas a troca de cenário.” — Nelson Rodrigues
Nunca imaginei que um dia entrevistaria Nelson Rodrigues — e, ainda assim, aqui estou. Não sei se foi sonho, delírio ou milagre da tecnologia. O fato é que ele surgiu diante de mim como uma aparição: o terno amarrotado, o cigarro pendendo entre os dedos, o olhar perdido numa distância que não pertence a este mundo. Ficou em silêncio por um longo momento, o cigarro se consumindo lentamente. Quando finalmente falou, sua voz tinha o peso da eternidade — e o humor ferino de quem já atravessou a morte, mas continua lúcido demais para ser um santo. (Roberto Homem)
NELSON RODRIGUES: Ah, meu caro, uma entrevista! Pois venha, sente-se aí. Não tenha pudores. Afinal, como eu sempre dizia, toda unanimidade é burra — e espero que você não tenha vindo aqui buscar consensos fáceis nem verdades adocicadas. Passei a vida sendo chamado de imoral, pornográfico, reacionário... E por quê? Porque tive a petulância — ou a coragem — de mostrar o que o brasileiro não quer enxergar no espelho. Somos um povo que se escandaliza com a verdade nua, mas se delicia secretamente com ela.
(Ele dá uma longa tragada, olha pela janela, e prossegue:)
Minhas peças e crônicas incomodavam porque eu mostrava o que há por trás da fachada respeitável de cada família brasileira: um vulcão de paixões inconfessáveis. Incesto, traição, obsessão... meus “anjos pornográficos” eram o reflexo dessa alma nacional que vive atrás de cortinas de moralismo barato.
(Apaga o cigarro e se inclina para frente.)
Então me diga, meu caro: o que você quer saber desta alma atormentada que foi Nelson Rodrigues? Meus fantasmas? Minhas convicções? Pergunte. A morte me deu a liberdade que a vida, com seus pudores, jamais permitiria.
A Política Como Folhetim Nacional
SUPERPAUTA: Nelson, como você vê o cenário político
brasileiro atual?
NELSON: Ah, política! O mesmo folhetim melodramático de sempre, apenas com outros atores. É um Fla-Flu moral interminável — metade quer canonizar, metade quer crucificar, e ninguém olha o cadáver do fato. Transformamos o governo em novela com cliffhanger (técnica de enredo que deixa o público em suspense, terminando um episódio, capítulo ou filme em uma situação de alto drama, perigo ou revelação chocante) semanal. Cada escândalo é uma cortina de fumaça para os mesmos pecados de sempre: poder, ressentimento e essa fome insaciável de prestígio que corrói a alma nacional. O brasileiro tem uma necessidade quase infantil de acreditar em salvadores da pátria. E os políticos, espertos, vestem as fantasias que o povo quer ver. A direita veste o terno da virtude; a esquerda, o manto da pureza. Nenhuma delas fala de ideias — falam de paixões. O voto, no Brasil, é um ato teatral. É Édipo na urna eletrônica!
SUPERPAUTA: E o presidente dos Estados Unidos, o que acha dele?
NELSON: Presidente americano é personagem, não pessoa. É o rosto a quem o mundo atribui destinos. Precisa parecer César ao meio-dia e contador às seis da tarde. Para nós, vira ao mesmo tempo espelho e ameaça — ora pai severo, ora banqueiro impaciente. Mas, no fundo, é apenas um homem. E o poder, meu jovem, é o veneno que revela a verdadeira face do indivíduo. Ele tira as máscaras, expõe as feridas. Nenhum cargo melhora o homem — só o desnuda. O que me diverte é ver como até o povo americano, tão racional e civilizado, se comporta como nós: paixões cegas, torcidas organizadas, brigas de família no jantar de Natal. A humanidade, aqui e lá, é a mesma — patética e sublime.
A morte da pátria de chuteira
SUPERPAUTA: E o futebol? Era também uma paixão, não?
NELSON: Ah, o futebol! Meu outro teatro. No Maracanã, eu
via as mesmas tragédias que colocava no palco. O torcedor vivendo pequenas
mortes e ressurreições a cada domingo. Futebol é paixão, é drama humano em
estado puro.
SUPERPAUTA: O Brasil deixou de ser a pátria de chuteiras? O que aconteceu com o nosso futebol?
(Ele se levanta bruscamente, como se tivesse levado um soco no estômago. O cigarro treme entre os dedos.)
NELSON: Meu Deus! Você tocou na ferida mais sangrenta da alma nacional! Sim, a pátria de chuteiras morreu — e morreu pelas próprias mãos! Nós, que criamos o futebol-arte, resolvemos sentir vergonha da nossa genialidade. Tentamos imitar o que nunca poderíamos ser. O complexo de vira-lata tomou conta de vez. Transformamos poetas em burocratas da bola. Nossos técnicos copiaram manuais europeus como se fossem evangelhos. E, no altar da modernização, sacrificamos a nossa alma.
NELSON: Primeiro, exportamos nossos meninos antes de
amadurecerem. Voltaram falando inglês, pensando alemão, jogando como robôs. Depois, a CBF transformou a Seleção numa empresa
sem alma. Hoje vestir a camisa do Brasil é expediente — não vocação. E, por fim, passamos a ter medo de ser grandes.
Ousadia virou pecado. O drible livre virou ameaça à “disciplina tática”.
Matamos a alegria! O futebol brasileiro era o espelho da nossa alma —
e quebramos esse espelho. O Maracanã virou arena de shopping. Nossa arte foi
domesticada. E dói, porque o futebol era a nossa forma de provar ao mundo que,
apesar de tudo, tínhamos uma beleza inimitável. Mas ainda há esperança. Enquanto houver um menino
jogando bola descalço em Copacabana, a chama está viva. Não precisamos de táticas europeias — precisamos de
fé em nós mesmos. Um dia voltaremos a jogar com alma. E o mundo
voltará a tremer ao ouvir nosso hino.
(Ele sorri com melancolia.)
NELSON: O dia em que o Brasil voltar a se orgulhar de ser brasileiro, voltaremos a ser campeões. Porque o futebol é a nossa metáfora da vida: podemos cair, mas nunca deixamos de sonhar.
Os Bastidores do Grande Teatro
SUPERPAUTA: Nelson, o
que é a morte para você?
NELSON: Ah, meu caro... essa pergunta! Você me obriga a olhar para o espelho
mais implacável — o espelho da eternidade. A morte não é o fim da peça; é
apenas a descoberta de que sempre estivemos nos bastidores de um teatro
infinitamente maior do que imaginávamos.
(Ele apaga o cigarro com um gesto demorado, quase ritualístico.)
SUPERPAUTA: E o que o senhor encontrou depois da cortina?
NELSON: Durante a
vida terrena, eu espiava a humanidade pela fechadura da porta. Via fragmentos,
ouvia ecos. E, de repente, alguém escancarou todas as portas! Descobri que o
teatro era imenso — com cenários que nunca suspeitei e personagens que nem sonhei
existir.
(Ele se levanta e começa a andar, flutuando entre lembranças.)
SUPERPAUTA: E o que se vê nesse outro lado?
NELSON: Aqui as
paixões continuam — mais vivas do que nunca! O “anjo pornográfico” não morre
com o corpo, meu caro, ele se liberta!
O amor não declarado, o ódio hereditário, a inveja travestida de virtude...
tudo isso continua. A morte não melhora ninguém — apenas tira a maquiagem.
Continuamos com os mesmos vícios e as mesmas ternuras inconfessáveis. Só
perdemos o álibi do corpo.
O Tempo Como Personagem Eterno
SUPERPAUTA: E o tempo?
Ainda existe aí onde o senhor está?
NELSON: O tempo aqui
é um cafajeste aposentado. (ri) Posso estar falando com você e, ao mesmo tempo,
revendo a estreia de “Vestido de Noiva”
ou assistindo a um drama que ainda vai acontecer em 2050. Tudo acontece ao mesmo tempo — passado, presente e futuro coexistem como um
palco giratório. Descobrimos, afinal, que o que chamávamos de vida era apenas o
primeiro ato. E nós, que nos achávamos protagonistas, éramos coadjuvantes de
uma peça muito maior.
SUPERPAUTA: O senhor sente saudade da vida?
NELSON: Ah, sinto, sim!
Tenho saudades da dor física, do sabor do cigarro, da chuva em Copacabana...
até da angústia! Porque a angústia era a prova de que ainda havia mistério.
Aqui, a compreensão é total — e isso é um tédio monumental. Sinto falta da
dúvida, da cegueira bendita que fazia de cada paixão uma aventura. A perfeição
cansa. A imperfeição era o tempero da alma.
SUPERPAUTA: E o que é, afinal, a eternidade?
NELSON: A
eternidade, meu caro, é feita de detalhes. O beijo que você não deu, a palavra
que reteve, o abraço que adiou. Esses pequenos gestos pesam uma eternidade. Não
há tribunal divino, nem anjos tocando harpas. Há apenas a continuidade
implacável de quem sempre fomos: seres divididos entre a grandeza e a
mesquinhez, representando eternamente o papel de sermos humanos.
O Conselho do Além-Túmulo
SUPERPAUTA: E se
pudesse deixar um conselho para os vivos?
NELSON: Não
desperdicem tempo com medo da morte! Ela é apenas a troca de cenário. Vivam
intensamente, apaixonem-se, criem dramas magníficos! Porque o que levamos conosco
não é a fama nem o dinheiro, mas a intensidade com que vivemos, a coragem com
que fomos nós mesmos — com todas as contradições, com todas as misérias e todas
as grandezas.
SUPERPAUTA: Então, a vida após a morte é o quê?
NELSON: É a
confirmação do que sempre escrevi: o homem é um abismo de contradições. Um anjo
pornográfico condenado à grandeza e à miséria simultâneas. A peça continua, os
atores mudam, mas o drama é o mesmo — e sempre novo, sempre humano.
(Ele se levanta, e por um instante parece que vai se dissolver no ar.)
NELSON (sorrindo): Agora, me permita, vou voltar ao meu camarote. Daqui de onde estou, assisto ao espetáculo da humanidade — essa comédia divina que jamais termina. E, acredite, meu caro: o público é sempre o mesmo, mas a peça... continua maravilhosa.
(Ele desaparece, deixando no ar apenas o eco de uma risada e o perfume longínquo de um cigarro aceso em outra dimensão).
Epílogo
SUPERPAUTA (Roberto Homem) - Saí dali
sem saber se tinha feito uma entrevista ou se tinha vivido uma revelação. Mas
uma coisa ficou clara: Nelson Rodrigues continua escrevendo — agora, com fumaça
e silêncio — a mais longa de todas as suas tragédias, a da própria eternidade.
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