Encontros Impossíveis
O silêncio da história
Do outro lado da História, ele ainda mede palavras e destinos — Getúlio, o homem que jamais deixou o poder, “fala” ao SuperPauta, por sugestão do amigo Sérgio Penna
"Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida." – Getúlio Vargas
A névoa é densa, mas não é fria. Paira no ar um murmúrio distante — discursos, multidões, o som abafado de um tiro que o tempo ainda não conseguiu silenciar. Entre as sombras, surge Getúlio Dornelles Vargas: o gaúcho taciturno, o estrategista de fala mansa, o homem que soube ser amado e temido na mesma medida. O terno escuro parece absorver a luz. Na mão, uma cuia de chimarrão que nunca esvazia. O ambiente é um limbo de lembranças, um salão onde o passado e o futuro se cruzam. À volta, há pilhas de papéis, decretos e cartas que se movem sozinhos, como se o vento da História as folheasse. Um rádio antigo, de válvulas trêmulas, sussurra ao fundo o eco de sua própria voz — “Trabalhadores do Brasil...” Getúlio me analisa em silêncio. Há firmeza no olhar, mas também cansaço — o cansaço sereno de quem já entendeu tudo. Ele oferece o mate, eu o convido à confissão.
Entre goles de chimarrão e silêncios que ainda ecoam, Getúlio fala do suicídio que virou símbolo, dos bastidores da crise que o derrubou, das dores e glórias de governar, da guerra e das ilusões do presente, da precarização do trabalho e da esperança que insiste em renascer — temas do passado que continuam batendo no peito do Brasil como se fossem de ontem. (Roberto Homem)
SuperPauta: Presidente, o senhor acreditava mesmo ter deixado o poder “nos braços do povo”?
Getúlio: Pois veja, meu filho... aquilo não foi figura de retórica, não. Quando escrevi aquelas palavras, já não era apenas um homem, era um símbolo em processo de criação. Eu sabia que o poder estava sendo arrancado — e não por um motivo de governo, mas por um enredo de tragédia. O país vivia uma guerra surda entre quartéis, jornais e gabinetes. Tudo se precipitou depois do atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, na Rua Tonelero. O crime, cometido a mando de Gregório Fortunato — chefe da minha guarda pessoal —, feriu não apenas um homem, mas o governo inteiro. Lacerda sobreviveu, o major Vaz morreu, e a bala que saiu naquela madrugada já trazia meu nome gravado. A crise tomou corpo: os militares pediram minha renúncia, os jornais clamavam por deposição, e a política virou tribunal. Eu, encurralado entre o dever e o destino, percebi que não havia saída que não fosse o gesto. A carta-testamento foi meu último decreto — não para os ministros, mas para o povo. E o povo entendeu. Fui embora do corpo, mas fiquei na lembrança. Saí da vida, sim — mas entrei num lugar mais profundo: entre o coração e a consciência do Brasil.
SuperPauta: Se pudesse voltar àquele dia de agosto de 1954, puxaria o gatilho outra vez?
Getúlio: (sorri, soprando a erva do mate) — Pois é, guri... quando o homem percebe que sua palavra perdeu valor, só lhe resta o exemplo. Aquele tiro não foi um fim, foi um recado. Eu sabia que morreria de qualquer forma — pela força, pela calúnia, ou pela solidão. Preferi escolher o instante, o modo e a palavra. Foi o último ato de governo que ainda me restava. O gesto não foi desespero, foi cálculo. Eu quis deixar claro que, mesmo morto, não me renderia aos que queriam me humilhar. Transformei a derrota em permanência. E sim, se o destino me colocasse na mesma esquina da História, eu puxaria o gatilho outra vez — não contra mim, mas contra a injustiça.SuperPauta: O senhor guardou mágoa de Carlos Lacerda ou de Gregório Fortunato?
Getúlio: Mágoa, não. Mágoa é sentimento de quem ainda espera. Aqui, no outro lado, o tempo dissolve tudo. Lacerda foi o meu maior adversário, mas também o meu maior espelho. Ele me odiava com talento — e, no fundo, só se odeia com tanta força o que se admira em segredo. Quanto a Gregório, o Negro Gregório... (pausa longa) — foi leal até o erro. Fez o que achou que devia fazer, e com isso me matou antes da hora. Era um homem simples, fiel, mas cego pela devoção. Morreu na prisão, abandonado por todos. Eu o perdoei ainda em vida. Ele foi o último soldado de uma causa que o país não quis entender.
SuperPauta: O senhor tinha consciência do impacto que o gesto causaria?
Getúlio: Sabia, tchê. O povo entende a dor. O povo sente quando alguém cai de pé. O que fiz foi transformar derrota em permanência. O corpo tombou, mas a ideia levantou-se. Eu quis mostrar que há momentos em que o silêncio fala mais alto que o microfone.
SuperPauta: Se tivesse sobrevivido, teria sido preso ou lembrado como mártir?
Getúlio: Teria sido preso, caluniado, talvez esquecido por um tempo. Mas o tempo é o melhor advogado. Ele limpa a mentira e deixa a verdade brilhar. Hoje vejo que morri cedo, mas não em vão.
SuperPauta: Durante a Segunda Guerra, o senhor conduziu o Brasil entre potências inimigas. Como foi escolher um lado?
Getúlio: A guerra, meu filho, é o retrato do mundo quando perde o juízo. O Brasil era cortejado pela Alemanha e pelos Estados Unidos. De um lado, a indústria e o aço; do outro, promessas de democracia. Eu escolhi o que garantiria futuro, não o que oferecia aplauso. Ao lado dos Aliados, conquistamos respeito — e uma nova identidade. Nossos pracinhas levaram à Itália a dignidade de um povo que aprendeu a lutar por si.
SuperPauta: Em janeiro de 1943, o senhor se encontrou com Franklin Roosevelt em Natal, na chamada Conferência do Rio Potengi. Que importância aquele encontro teve para o Brasil e para a guerra?
Getúlio: (os olhos brilham na lembrança) — Aquilo foi mais que um aperto de mão, meu filho. Foi quando o Brasil entendeu que o mundo havia crescido demais para ficar olhando o próprio umbigo. Roosevelt era um homem de visão — enxergava longe, além das fronteiras e além do presente. O encontro em Natal não foi casual. O Rio Grande do Norte era o trampolim da vitória, a ponte aérea entre a América e a África. A base de Parnamirim recebeu aviões, soldados e esperança. Sem aquele pedaço de chão potiguar, os Aliados teriam demorado muito mais a virar o jogo contra o Eixo. E o Brasil, pois veja, deixou de ser espectador. Entramos na guerra com dignidade, escolhemos o lado certo da História. Não por submissão, mas por estratégia e soberania. A FEB mostrou que o brasileiro, quando chamado, enfrenta qualquer tirano — inclusive aqueles que matavam em nome da raça e do ódio. Roosevelt me tratava como igual. Ele sabia que o Brasil seria uma potência — era só lhe dar oportunidade e respeito. Naquela conversa, entre o calor do Nordeste e os ventos da guerra, selamos a ideia de que o Brasil podia voar mais alto do que permitiam suas próprias inseguranças. Parnamirim Field foi a pista. O Brasil foi o avião. E o destino… foi a vitória.
SuperPauta: E Olga Benário? E Luís Carlos Prestes?
Getúlio: (silêncio longo, olhar distante) — Olga foi a tragédia que nunca esqueci. A política, às vezes, exige decisões que ferem a alma. A entrega dela à Alemanha foi um erro moral de um tempo sem compaixão. Arrependo-me, sim. Quanto a Prestes, o respeitei, mesmo em oposição. Era um homem de fé política, e nisso nos parecíamos. Fomos adversários, mas não inimigos — cada um carregando o seu Brasil.
SuperPauta: O senhor vê as guerras atuais, a crise climática, a desinformação. O que pensa disso tudo?
Getúlio: O homem não aprendeu, guri. A guerra agora é fria no botão e quente no coração. E o planeta… o planeta está cansado. No meu tempo, falávamos em progresso; hoje, é sobrevivência. Penso que o homem trocou a alma por velocidade. Faz guerras por controle de telas, destrói o planeta em nome de lucro e chama isso de progresso. Pois te digo: a Terra está devolvendo a conta. O clima é a voz da natureza dizendo “basta”. No meu tempo, chamavam-me autoritário; hoje vejo democracias que não conseguem proteger nem o ar que respiram.
SuperPauta: O senhor sente falta do Rio Grande?
Getúlio: Sempre. O pampa não sai da gente, tchê. Sinto o cheiro da terra molhada, o vento frio na cara, o trote do cavalo na madrugada. O Rio Grande me ensinou o valor do silêncio e da espera. Foi ali que aprendi que governar é como laçar: se errar o laço, o boi foge e a vergonha é tua. Um homem precisa ser firme como o mate quente: se esfria, perde o sabor. O gaúcho não teme a solidão; ele a doma, como doma o cavalo arisco.
SuperPauta: E o Nordeste, especialmente o Rio Grande do Norte, além da participação decisiva na guerra, lhe deixou alguma lembrança?
Getúlio: Deixou, sim. Terra valente. Natal me recebeu como quem recebe parente. Lembro da brisa do mar e do povo que sorri mesmo quando o sol castiga. O sertanejo é irmão do gaúcho — ambos teimosos, ambos de fé. O Norte e o Sul se tocam na coragem.
SuperPauta: O Brasil ainda tem jeito?
Getúlio: (Sorri de canto) — Sempre teve, guri. O Brasil é como o mate — amargo no começo, mas bom de sustentar. O problema não é o povo, é o projeto. O que falta é vergonha na cara de quem o governa e esperança no peito de quem o serve. Este país é uma potência adormecida. Precisa de rumo, de continuidade e de líderes que ouçam mais o povo e menos os banqueiros. Falta quem pense o país com grandeza, quem governe olhando o amanhã. Este país só perde quando esquece o próprio tamanho.
SuperPauta: Se voltasse à Presidência hoje, o que faria primeiro?
Getúlio: Recolocaria o povo no centro do governo. Recomeçaria pelo essencial: educação, trabalho e terra. Educação para libertar, trabalho para dignificar e terra para sustentar. Criaria um pacto verde — porque o Brasil é a última esperança do planeta. E modernizaria as leis trabalhistas sem trair o espírito delas. Um Estado forte, mas justo, firme e humano. O poder não é para mandar: é para servir.
SuperPauta: O senhor acreditava num Estado centralizador. Como enxerga o país fragmentado de hoje?
Getúlio: Um Estado sem rumo é como cavalo sem rédea: corre muito, mas não chega. O que vejo é um país cheio de vozes e sem direção. Federalismo não é bagunça, é harmonia. O Brasil precisa de um centro que una, não de polos que se agridem.
SuperPauta: O senhor foi chamado de “pai dos pobres” e de “ditador”. Essas imagens convivem?
Getúlio: Convivem, e fazem parte da mesma história. O “pai dos pobres” nasceu do coração; o “ditador”, da necessidade. Governei em tempos de fogo cruzado. Às vezes é preciso ser aço para proteger o pão. Mas nunca deixei de ouvir o povo.
SuperPauta: Como o senhor vê o populismo atual, tão instantâneo e digital?
Getúlio: É populismo de palco, sem alma, tchê. No meu tempo, o rádio levava esperança, era ponte. Hoje, as redes levam raiva, virou armadilha. Um líder que governa pelo ódio é escravo das próprias paixões. As pessoas são tratadas como audiência, não como causa. Um governo que vive de curtida morre de vaia. Liderar é educar, não entreter. O povo precisa de exemplos, não de espelhos.
SuperPauta: Dizem que o senhor manipulava o imaginário nacional. Isso era verdade? Como vê as fake news?
Getúlio: Manipular? Não, tchê. Eu traduzi o sentimento do povo. Usei o rádio para unir, não para enganar. Hoje mentem com algoritmos. Transformaram a mentira em mercadoria. Eu usava o rádio para unir; eles usam a rede para dividir. Eu, ao menos, acreditava no que dizia.
SuperPauta: Sua política trabalhista moldou o país urbano. O senhor reconhece o trabalhador de hoje?
Getúlio: Reconheço o suor, mas não o amparo. O trabalhador de hoje carrega o celular no bolso como se fosse crachá, e a ilusão no peito como se fosse liberdade. Chamam-no de “empreendedor”, “colaborador”, “parceiro” — mas o nome bonito não muda o fato de que ele continua vendendo força e tempo por um prato de sobrevivência. A diferença é que agora ele paga o próprio uniforme, o próprio transporte e, muitas vezes, o próprio patrão é um aplicativo. No meu tempo, lutei para que o trabalho fosse o alicerce da dignidade humana. Hoje, o capital disfarça a exploração com marketing. A CLT foi um escudo; querem transformá-la em lembrança. E essa história de “ser dono do próprio negócio” — pois bah, meu filho — é uma piada cruel contada em linguagem moderna. O homem sem carteira não é empresário; é órfão de direitos. O Brasil precisa entender de novo que trabalho sem proteção não é progresso: é volta ao século XIX. O capital evoluiu, mas a fome não mudou.
SuperPauta: Muitos o chamaram de frio e calculista. O senhor amou alguém, ou alguma causa de verdade?
Getúlio: (sorri de leve, girando a cuia nas mãos) — Frio, talvez. Calculista, sim. Mas quem governa um país como o nosso e não calcula, afunda. E quem calcula demais, congela o coração. Eu vivi nesse fio da navalha. Amei, sim. Amei Darci, companheira de uma vida inteira, mulher de fibra e silêncio, que me acompanhou sem nunca me pedir o impossível. Amei meus filhos e netos, que foram o que sobrou de ternura em meio às batalhas. Amei amigos que a política me fez perder, e até adversários que me ensinaram a resistir. Mas, acima de tudo, amei o Brasil — e amar o Brasil, tchê, é um ato de fé e sacrifício. Amei o trabalhador, o colono, o guri da roça que sonha sem saber que está construindo a pátria. E amei também o poder — não por vaidade, mas porque, através dele, eu podia fazer. Só que o poder, meu filho, é como o mate mal cevado: parece doce no começo, mas amarga quando se descuida da água. Amei com dureza, porque o amor frouxo não educa. E esse amor — pela terra, pela gente e pela história — me custou caro. Foi o preço de não ter pertencido a ninguém por inteiro, nem mesmo a mim.
SuperPauta: Se pudesse deixar uma mensagem ao povo brasileiro de hoje, qual seria?
Getúlio: (olha para o vazio, como se escutasse um rádio distante) — Diria, meu filho, que nenhum povo deve esquecer a sua própria força. O Brasil que ajudei a erguer ainda está de pé, embora cansado. O que falta não é destino, é coragem de sonhar junto. Eu pediria memória — porque um povo sem memória é um rebanho fácil de conduzir. Peço que não esqueçam as lutas, as conquistas, os direitos que nasceram de suor, de greve, de prisão e de sangue. O salário justo, o descanso semanal, a aposentadoria, o voto da mulher — nada disso caiu do céu. Foi arrancado da terra. Também pediria respeito. Respeito à Pátria, que não é bandeira em comício, é chão, é gente. E respeito à política, que não é feira de vaidades, mas instrumento de transformação. Sem política, o povo vira espectador do próprio sofrimento. Ao trabalhador, diria que não se deixe enganar por falsas promessas de liberdade sem direitos. O homem sem proteção volta a ser servo, mesmo que use terno e aplicativo. Liberdade de verdade é comer, criar filhos, andar de cabeça erguida e dormir sem medo do amanhã. Aos jovens, diria que tenham esperança, mas não acomodação. O Brasil é obra inacabada que espera pedreiros, não espectadores. Cada geração precisa reconstruí-lo, mesmo que seja com as mãos feridas. E, por fim, diria que não odeiem. O ódio é o imposto mais caro que se paga ao atraso. Governar com rancor é cavar o próprio abismo. O Brasil só será grande quando entender que o inimigo verdadeiro não é o outro — é a injustiça que nos divide. O que quero é simples: que o povo confie outra vez em si mesmo. Porque, no fim das contas, não há Getúlio, não há partido, não há milagre. Há o povo. E só ele pode salvar o Brasil.
(Ele sorri com tristeza, passa a mão pelo bigode e completa, baixinho:) — Pois é, tchê... o mate esfria, o tempo passa, mas o Brasil... o Brasil ainda me dói como se eu fosse vivo.





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