segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Encontros impossíveis: Vinicius de Moraes

Encontros Impossíveis

O Amor Além da Vida


Desta vez, o encontro impossível é com o “Poetinha” que fez do amor uma religião e da poesia, um modo de viver.

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” — Vinicius de Moraes


A névoa se desfaz devagar, e no meio dela surge o velho Vinicius — o Poetinha, o diplomata do amor, o homem que fez da palavra um corpo vivo. Ao lado, um copo de uísque, meio cheio; ao fundo, um samba de Paulinho Nogueira rodando num vinil que parece eterno. Ele sorri, acende um cigarro imaginário e me convida a sentar. O cenário é uma mesa que poderia estar em qualquer bar do mundo — ou talvez no céu dos boêmios, onde as madrugadas nunca terminam. A conversa começa. E não acaba nunca.

Entre goles e lembranças, Vinicius fala da solidão digital, da intolerância, das guerras e dos amores efêmeros — temas que parecem novos, mas que ele sempre previu com sua sensibilidade antiga e eterna.


SUPERPAUTA –
Olá, caro Poetinha! Que saudade... Quanta falta você faz nesse mundo tão áspero, onde as pessoas têm como um dos principais hobbies se agredir nas redes sociais. As relações humanas se tornaram virtuais. Como você vê o rumo que a sociedade tomou, 45 anos após sua partida?

(Vinicius toma um gole e olha para longe, como se estivesse pensando a melhor resposta)

VINICIUS – Olha, meu caro, esse mundo de hoje é uma espécie de solidão coletiva. As pessoas se abraçam por telas, mas não se tocam mais. A máquina aproxima e afasta ao mesmo tempo. Eu sempre acreditei em gente — gente de verdade, que sua, que chora, que erra, que beija com o corpo todo. Detesto tudo o que oprime o homem, inclusive a gravata. E agora inventaram uma nova forma de opressão: viver dentro de uma caixinha, falando com fantasmas digitais. Mas não posso julgar demais — talvez eu mesmo, com essas maquininhas, tivesse me metido em menos encrencas [risos]. O que me dói é ver que perderam a capacidade de amar com entrega. Vocês se queimam de ódio nas redes, quando poderiam se queimar de amor. E o amor é o único incêndio que purifica. Que desperdício de chama, meu irmão.

SUPERPAUTA - E como você, que tanto acreditava no amor e na beleza, reagiria ao clima de intolerância e polarização que domina o Brasil atual? Ainda acreditaria que o amor é a solução?

VINICIUS — [Acende o cigarro com calma, como quem acende uma lembrança.] Meu querido, a intolerância é o amor doente. O homem que odeia é aquele que esqueceu como se vê no espelho do outro. O ódio é sempre um amor falido. Eu vivi tempos de divisão também — censura, ditadura, rancor — e mesmo assim continuei acreditando que o amor é a única revolução possível. Nenhum decreto tem mais poder que um beijo verdadeiro. Se me chamassem hoje de romântico incurável, eu sorriria. Prefiro ser um sonhador a fazer parte da multidão que grita mas não sente. Prefiro ser um ingênuo que abraça a ser um sábio que apedreja. Enquanto houver amor, há esperança. O resto é ruído.


SUPERPAUTA - Como ex-diplomata, que atravessou a Segunda Guerra e a Guerra Fria, o que pensa das guerras contemporâneas e da incapacidade humana de aprender com o passado?

VINICIUS — Ah, meu amigo, o homem é um aluno repetente da própria história, é uma criatura de memória curta e coração orgulhoso. Já vi bombas caindo, vi o medo fardado de discurso. E o que mudou? Mudaram os uniformes, os logotipos e as desculpas. Mas a pólvora continua a mesma. Mudam as bandeiras, os idiomas, mas o sangue tem o mesmo tom. A guerra é o fracasso da poesia — é quando a palavra morre e sobra só o grito. A paz exige mais coragem que a batalha. E ainda acredito: o amor é a única bomba que explode sem ferir ninguém.

SUPERPAUTA - Poemas e canções estão sendo criados por inteligência artificial. O senhor veria isso como avanço da sensibilidade humana — ou o fim da alma na arte?

VINICIUS — Veja bem: a arte é o suspiro da alma, e alma não se programa. A máquina pode escrever, pintar, até emocionar — mas ela sente? Ela já chorou de amor? A poesia nasce do sofrimento, da alegria, do corpo que pulsa. Se uma máquina emociona, é porque ainda há um homem atrás dela, emprestando seu sonho. Não é o fim da arte, é só um novo instrumento. Mas que nunca se esqueça: o coração é o maestro. O resto é partitura.

SUPERPAUTA - A MPB que o senhor ajudou a fundar se fragmentou em muitos estilos. Ainda reconheceria poesia nas novas vozes e ritmos do Brasil contemporâneo?

VINICIUS — A poesia é camaleoa, meu amigo. Ela muda de roupa, de sotaque, mas continua sendo poesia. Eu ouço esses jovens rimando nas esquinas, misturando samba com rap, forró com funk... e vejo neles o mesmo impulso que me fazia escrever um soneto pra uma moça de olhos tristes. A arte é isso: uma teimosia do coração. E a MPB, que um dia foi bossa, agora é mosaico — feita de mil vozes, mil amores, mil dores. E todas elas têm algo de poesia.

SUPERPAUTA - Vinícius, sabe-se que você e Toquinho iniciaram a bela canção Carta ao Tom 74 durante uma estadia em Natal, mais precisamente em Ponta Negra, onde estavam hospedados — embora o plano original fosse ficar no então badalado HotelReisMagos. A melodia chegou a se chamar Samba de Natal antes de ganhar o nome definitivo quando a letra foi posta. Sabendo que o hotel acabou sendo abandonado e demolido tempos depois, poderia contar algum detalhe desse processo de criação da música — que partiu de Natal, mudou de nome e depois de lugar — e o que daquele momento em Ponta Negra ficou com você, tanto em lembrança como em verso?

VINICIUS — Ah, meu amigo… Carta ao Tom 74 nasceu em Natal, sim. A melodia veio primeiro, soprada pelo vento morno de Ponta Negra. Eu e Toquinho estávamos hospedados num hotel simples, mas de frente para o mar — e aquele mar parecia ter o compasso exato de um samba. O nome inicial era Samba de Natal, porque era isso mesmo: uma saudade que vinha com o cheiro de maresia e o balanço das ondas. O plano era ficarmos no Reis Magos, o mais elegante da cidade. Mas, veja só, o destino sempre tem seu senso de humor — acabamos indo para outro canto, e foi lá, naquela varanda aberta para o Atlântico, que o samba começou a nascer. Eu me lembro do Toquinho com o violão no colo, dedilhando devagar, e eu tentando achar a letra certa. A música tinha uma tristeza bonita, uma saudade boa, dessas que fazem a gente querer voltar para o lugar de onde veio, mesmo sem saber qual é. Depois, quando voltei ao Rio e finalizei a letra, Natal virou Ipanema, Ponta Negra virou saudade — e o Samba de Natal virou Carta ao Tom 74. Era uma carta mesmo, uma conversa com o passado, um abraço à amizade que a vida e o tempo mudaram de endereço. Soube que o velho Reis Magos foi derrubado. Que pena. Cada cidade que perde um símbolo perde também uma parte da alma. Mas as canções, ah, essas sobrevivem a tudo. O hotel caiu, o tempo passou, o mar mudou de cor — mas a lembrança daquela tarde em Natal continua viva, dedilhando no violão de Toquinho e no coração de quem ainda acredita que a beleza pode nascer da saudade.

SUPERPAUTA - Se tivesse um perfil nas redes sociais, resistiria à necessidade de agradar ao público — ou transformaria o Instagram num novo caderno de sonetos?

VINICIUS — Meu Instagram seria um boteco espiritual. Postaria um soneto por dia, um gole de uísque por noite e uma declaração de amor por semana. Não me interessaria por curtidas, mas por corações que ainda sabem pulsar. O poeta não é influenciador — é inflamador.
A função da poesia é incendiar almas, não colecionar seguidores.

SUPERPAUTA - O senhor, que viveu o amor em tantas formas, o que diria a uma geração que confunde amor com curtidas e relacionamentos com “matches”?

VINICIUS — O amor não cabe numa tela, nem se mede em toques. Amar é suar junto, é rir de madrugada, é discutir e voltar. O amor é o perigo mais bonito do mundo. “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.” E dura, viu? Dura o tempo de uma eternidade em miniatura. Esses amores líquidos de hoje são distrações.
Mas um dia, quando a solidão bater forte, vão entender que amar é se perder — e se achar — no outro.


SUPERPAUTA
 - O senhor enfrentou a censura e foi afastado da diplomacia por suas ideias. Que conselho daria hoje aos artistas silenciados por suas opiniões?

VINICIUS — A censura é o medo vestido de autoridade. Quem tenta calar o poeta é porque tem medo do espelho que ele oferece. Aos artistas, eu diria: resistam. A beleza sempre escapa por alguma fresta. Escrevam, cantem, pintem — nem que seja com lágrimas. A arte é a voz de quem não tem microfone. E o silêncio é a maior forma de covardia.

SUPERPAUTA - Depois de tantos amores, exílios e despedidas — o que o senhor descobriu sobre Deus e sobre o que vem depois da vida?

VINICIUS — Descobri que Deus é o grande poeta e nós somos seus versos imperfeitos. A morte é apenas uma vírgula. A vida continua em outro tom, outra melodia.  Aqui, no além, não há tristeza. Há um samba leve, onde cada alma é um instrumento de luz. Se pudesse deixar um último verso, seria: “Enquanto houver amor, haverá vida. E enquanto houver vida, haverá poesia.”

SUPERPAUTA - E o que diria, hoje, sobre a perda da fé e da ternura nas pessoas?

VINICIUS — A ternura é a forma mais madura da força. Quem não sabe ser terno, não sabe ser justo. Hoje vejo um mundo que confunde ironia com inteligência, sarcasmo com coragem. Mas a verdadeira bravura está em continuar doce num tempo amargo. A fé é isso: uma doçura teimosa. É acreditar na beleza mesmo quando ela se esconde. Se eu pudesse pedir algo ao homem moderno, seria: “Desarmem o peito. Deixem-se enternecer.” A ternura é a última revolução que ainda não tentaram.

SUPERPAUTA - Como diplomata e poeta, o que aprendeu sobre o poder das palavras nas relações humanas e políticas?

VINICIUS — Aprendi que as palavras são como embaixadores da alma. Elas tanto podem construir pontes quanto declarar guerras. O erro do mundo é tratar as palavras como armas, quando elas nasceram para ser pontes. A diplomacia que aprendi com o Itamaraty foi fria. Mas a que aprendi com o coração — essa sim é universal. Um poema é um tratado de paz entre o homem e o seu próprio caos.

SUPERPAUTA - E, por fim, se pudesse escrever uma última canção para o Brasil de hoje, que título teria? E o que diria nela aos jovens que ainda acreditam na beleza, apesar de tudo?

VINICIUS — [Sorri, com o olhar perdido em algum pôr do sol do infinito.]
Talvez se chamasse “Esperança entre Ruínas”. Diria aos jovens: a beleza é teimosa, não morre nunca. Está na flor que insiste no asfalto, no menino que aprende um instrumento, na moça que ainda sonha com o mar. Não se deixem enganar pelos tempos duros — a poesia ainda é possível. E o amor, mesmo cansado, continua sendo a resposta. “Vamos juntos, jovens do Brasil, construir a paz com as palavras,
com as mãos que trabalham, com os olhos que veem além do caos.” [Levanta o copo.] À beleza, meu irmão. À beleza que resiste.
Porque o resto — o resto é só cinza soprada pelo vento.

 

(O disco de Paulinho Nogueira gira mais uma vez. Vinicius se levanta, sorri e some na neblina. Fica o eco de um brinde e uma lição que resiste ao tempo: amar é a única forma de permanecer vivo — até mesmo depois da morte.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário