Encontros Impossíveis
O Amor Além da Vida
Desta vez, o encontro impossível é com o “Poetinha” que fez do amor uma religião e da poesia, um modo de viver.
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” — Vinicius de Moraes
A névoa se desfaz devagar,
e no meio dela surge o velho Vinicius — o Poetinha, o diplomata do amor, o
homem que fez da palavra um corpo vivo. Ao lado, um copo de uísque, meio cheio;
ao fundo, um samba de Paulinho Nogueira rodando num vinil que parece eterno. Ele
sorri, acende um cigarro imaginário e me convida a sentar. O cenário é uma mesa
que poderia estar em qualquer bar do mundo — ou talvez no céu dos boêmios, onde
as madrugadas nunca terminam. A conversa começa. E não acaba nunca.
Entre goles e lembranças, Vinicius fala da solidão digital, da intolerância, das guerras e dos amores efêmeros — temas que parecem novos, mas que ele sempre previu com sua sensibilidade antiga e eterna.
(Vinicius toma um gole e olha para longe, como se
estivesse pensando a melhor resposta)
VINICIUS – Olha, meu
caro, esse mundo de hoje é uma espécie de solidão coletiva. As pessoas se abraçam
por telas, mas não se tocam mais. A máquina aproxima e afasta ao mesmo tempo. Eu
sempre acreditei em gente — gente de verdade, que sua, que chora, que erra, que
beija com o corpo todo. Detesto tudo o que oprime o homem, inclusive a gravata.
E agora inventaram uma nova forma de opressão: viver dentro de uma caixinha,
falando com fantasmas digitais. Mas não posso julgar demais — talvez eu mesmo,
com essas maquininhas, tivesse me metido em menos encrencas [risos]. O que me
dói é ver que perderam a capacidade de amar com entrega. Vocês se queimam de
ódio nas redes, quando poderiam se queimar de amor. E o amor é o único incêndio
que purifica. Que desperdício de chama, meu irmão.
SUPERPAUTA - E como você, que tanto acreditava no amor e na beleza, reagiria ao clima de intolerância e polarização que domina o Brasil atual? Ainda acreditaria que o amor é a solução?
VINICIUS — [Acende o
cigarro com calma, como quem acende uma lembrança.] Meu querido, a intolerância
é o amor doente. O homem que odeia é aquele que esqueceu como se vê no espelho
do outro. O ódio é sempre um amor falido. Eu vivi tempos de divisão também —
censura, ditadura, rancor — e mesmo assim continuei acreditando que o amor é a
única revolução possível. Nenhum decreto tem mais poder que um beijo
verdadeiro. Se me chamassem hoje de romântico incurável, eu sorriria. Prefiro
ser um sonhador a fazer parte da multidão que grita mas não sente. Prefiro ser
um ingênuo que abraça a ser um sábio que apedreja. Enquanto houver amor, há
esperança. O resto é ruído.
SUPERPAUTA - Como ex-diplomata, que atravessou a Segunda Guerra e a Guerra Fria, o que pensa das guerras contemporâneas e da incapacidade humana de aprender com o passado?
VINICIUS — Ah, meu
amigo, o homem é um aluno repetente da própria história, é uma criatura de
memória curta e coração orgulhoso. Já vi bombas caindo, vi o medo fardado de
discurso. E o que mudou? Mudaram os uniformes, os logotipos e as desculpas. Mas
a pólvora continua a mesma. Mudam as bandeiras, os idiomas, mas o sangue tem o
mesmo tom. A guerra é o fracasso da poesia — é quando a palavra morre e sobra
só o grito. A paz exige mais coragem que a batalha. E ainda acredito: o amor é
a única bomba que explode sem ferir ninguém.
SUPERPAUTA - Poemas e canções estão sendo criados por inteligência artificial. O senhor veria isso como avanço da sensibilidade humana — ou o fim da alma na arte?
VINICIUS — Veja bem:
a arte é o suspiro da alma, e alma não se programa. A máquina pode escrever,
pintar, até emocionar — mas ela sente? Ela já chorou de amor? A poesia nasce do
sofrimento, da alegria, do corpo que pulsa. Se uma máquina emociona, é porque
ainda há um homem atrás dela, emprestando seu sonho. Não é o fim da arte, é só
um novo instrumento. Mas que nunca se esqueça: o coração é o maestro. O resto é
partitura.
SUPERPAUTA - A MPB que o senhor ajudou a fundar se fragmentou em muitos estilos. Ainda reconheceria poesia nas novas vozes e ritmos do Brasil contemporâneo?
VINICIUS — A poesia
é camaleoa, meu amigo. Ela muda de roupa, de sotaque, mas continua sendo
poesia. Eu ouço esses jovens rimando nas esquinas, misturando samba com rap,
forró com funk... e vejo neles o mesmo impulso que me fazia escrever um soneto
pra uma moça de olhos tristes. A arte é isso: uma teimosia do coração. E a MPB,
que um dia foi bossa, agora é mosaico — feita de mil vozes, mil amores, mil
dores. E todas elas têm algo de poesia.
SUPERPAUTA - Vinícius, sabe-se que você e Toquinho iniciaram a bela canção Carta ao Tom 74 durante uma estadia em Natal, mais precisamente em Ponta Negra, onde estavam hospedados — embora o plano original fosse ficar no então badalado Hotel Reis Magos. A melodia chegou a se chamar ‘Samba de Natal’ antes de ganhar o nome definitivo quando a letra foi posta. Sabendo que o hotel acabou sendo abandonado e demolido tempos depois, poderia contar algum detalhe desse processo de criação da música — que partiu de Natal, mudou de nome e depois de lugar — e o que daquele momento em Ponta Negra ficou com você, tanto em lembrança como em verso?
VINICIUS — Ah, meu
amigo… Carta ao Tom 74 nasceu em Natal, sim. A melodia veio primeiro, soprada
pelo vento morno de Ponta Negra. Eu e Toquinho estávamos hospedados num hotel
simples, mas de frente para o mar — e aquele mar parecia ter o compasso exato
de um samba. O nome inicial era Samba de Natal, porque era isso mesmo: uma
saudade que vinha com o cheiro de maresia e o balanço das ondas. O plano era
ficarmos no Reis Magos, o mais elegante da cidade. Mas, veja só, o destino
sempre tem seu senso de humor — acabamos indo para outro canto, e foi lá,
naquela varanda aberta para o Atlântico, que o samba começou a nascer. Eu me
lembro do Toquinho com o violão no colo, dedilhando devagar, e eu tentando
achar a letra certa. A música tinha uma tristeza bonita, uma saudade boa,
dessas que fazem a gente querer voltar para o lugar de onde veio, mesmo sem
saber qual é. Depois, quando voltei ao Rio e finalizei a letra, Natal virou
Ipanema, Ponta Negra virou saudade — e o Samba de Natal virou Carta ao Tom 74.
Era uma carta mesmo, uma conversa com o passado, um abraço à amizade que a vida
e o tempo mudaram de endereço. Soube que o velho Reis Magos foi derrubado. Que
pena. Cada cidade que perde um símbolo perde também uma parte da alma. Mas as
canções, ah, essas sobrevivem a tudo. O hotel caiu, o tempo passou, o mar mudou
de cor — mas a lembrança daquela tarde em Natal continua viva, dedilhando no
violão de Toquinho e no coração de quem ainda acredita que a beleza pode nascer
da saudade.
SUPERPAUTA - Se tivesse um perfil nas redes sociais, resistiria à necessidade de agradar ao público — ou transformaria o Instagram num novo caderno de sonetos?
VINICIUS — Meu
Instagram seria um boteco espiritual. Postaria um soneto por dia, um gole de
uísque por noite e uma declaração de amor por semana. Não me interessaria por
curtidas, mas por corações que ainda sabem pulsar. O poeta não é influenciador
— é inflamador.
A função da poesia é incendiar almas, não colecionar seguidores.
SUPERPAUTA - O senhor, que viveu o amor em tantas formas, o que diria a uma geração que confunde amor com curtidas e relacionamentos com “matches”?
VINICIUS — O amor
não cabe numa tela, nem se mede em toques. Amar é suar junto, é rir de
madrugada, é discutir e voltar. O amor é o perigo mais bonito do mundo. “Que
não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.” E
dura, viu? Dura o tempo de uma eternidade em miniatura. Esses amores líquidos
de hoje são distrações.
Mas um dia, quando a solidão bater forte, vão entender que amar é se perder — e
se achar — no outro.
SUPERPAUTA - O senhor enfrentou a censura e foi afastado da diplomacia por suas ideias. Que conselho daria hoje aos artistas silenciados por suas opiniões?
VINICIUS — A censura
é o medo vestido de autoridade. Quem tenta calar o poeta é porque tem medo do
espelho que ele oferece. Aos artistas, eu diria: resistam. A beleza sempre
escapa por alguma fresta. Escrevam, cantem, pintem — nem que seja com lágrimas.
A arte é a voz de quem não tem microfone. E o silêncio é a maior forma de
covardia.
SUPERPAUTA - Depois de tantos amores, exílios e despedidas — o que o senhor descobriu sobre Deus e sobre o que vem depois da vida?
VINICIUS — Descobri que
Deus é o grande poeta e nós somos seus versos imperfeitos. A morte é apenas uma
vírgula. A vida continua em outro tom, outra melodia. Aqui, no além, não há tristeza. Há um samba
leve, onde cada alma é um instrumento de luz. Se pudesse deixar um último verso,
seria: “Enquanto houver amor, haverá vida. E enquanto houver vida, haverá
poesia.”
SUPERPAUTA - E o que diria, hoje, sobre a perda da fé e da ternura nas pessoas?
VINICIUS — A ternura
é a forma mais madura da força. Quem não sabe ser terno, não sabe ser justo. Hoje
vejo um mundo que confunde ironia com inteligência, sarcasmo com coragem. Mas a
verdadeira bravura está em continuar doce num tempo amargo. A fé é isso: uma
doçura teimosa. É acreditar na beleza mesmo quando ela se esconde. Se eu
pudesse pedir algo ao homem moderno, seria: “Desarmem o peito. Deixem-se
enternecer.” A ternura é a última revolução que ainda não tentaram.
SUPERPAUTA - Como diplomata e poeta, o que aprendeu sobre o poder das palavras nas relações humanas e políticas?
VINICIUS — Aprendi que
as palavras são como embaixadores da alma. Elas tanto podem construir pontes
quanto declarar guerras. O erro do mundo é tratar as palavras como armas,
quando elas nasceram para ser pontes. A diplomacia que aprendi com o Itamaraty
foi fria. Mas a que aprendi com o coração — essa sim é universal. Um poema é um
tratado de paz entre o homem e o seu próprio caos.
SUPERPAUTA - E, por fim, se pudesse escrever uma última canção para o Brasil de hoje, que título teria? E o que diria nela aos jovens que ainda acreditam na beleza, apesar de tudo?
VINICIUS — [Sorri,
com o olhar perdido em algum pôr do sol do infinito.]
Talvez se chamasse “Esperança entre Ruínas”. Diria aos jovens: a beleza
é teimosa, não morre nunca. Está na flor que insiste no asfalto, no menino que
aprende um instrumento, na moça que ainda sonha com o mar. Não se deixem
enganar pelos tempos duros — a poesia ainda é possível. E o amor, mesmo
cansado, continua sendo a resposta. “Vamos juntos, jovens do Brasil, construir
a paz com as palavras,
com as mãos que trabalham, com os olhos que veem além do caos.” [Levanta o
copo.] À beleza, meu irmão. À beleza que resiste.
Porque o resto — o resto é só cinza soprada pelo vento.
(O disco de Paulinho Nogueira gira mais uma vez. Vinicius se levanta, sorri e some na neblina. Fica o eco de um brinde e uma lição que resiste ao tempo: amar é a única forma de permanecer vivo — até mesmo depois da morte.)
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