“MAIS QUE POETA”
Foto: Roberto Fontes |
SUPERPAUTA –
Você nasceu aqui mesmo, em Natal?
GURGEL -
Meu nome é Carlos Roberto de Oliveira Gurgel. Oliveira por parte da minha mãe,
Zoraide, e Gurgel por parte do meu pai, Deífilo. Nasci em Natal, na Maternidade
Januário Cicco, no dia 5 de maio. A família morava na Ezequias Pegado, uma rua
antes da Escola Doméstica. Lá era muito tranquilo. Natal era uma vila, há
cinquenta e poucos anos atrás. Na esquina da nossa rua tinha uma vacaria. Todo
dia de manhã, papai nos levava para tomar leite. Dessa época vem os primeiros
alumbramentos com a poesia. Ele também ia conosco para a Lagoa Manoel Felipe.
Ainda não era a Cidade da Criança. Ficávamos passeando ao redor da lagoa.
Depois de voltar para casa, papai nos balançava na rede enquanto declamava
Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto...
SUPERPAUTA – E
a sua mãe?
GURGEL –
Mamãe sofreu muito com a minha rebeldia. Papai tentava contemporizar um pouco,
mas ela ficava preocupada, porque sempre fui muito arredio. Lembro que - quando
tinha de 15 para 16 anos - peguei a mochila, botei nas costas e saí “on the
road”. Não disse nada a eles. Esse tipo de atitude deixava mamãe muito
inquieta. Lembro um tempo em que ela não sabia como dialogar comigo. Papai é
quem estabelecia uma conversa a respeito dessa minha diáspora, desse “outsider”
todo. Apesar dessas dificuldades, fazendo hoje uma releitura avalio que foi
muito precioso esse processo todo. Foi a partir daí que criei uma forma muito
singular de observar as coisas. Toda a minha trajetória foi como uma sementezinha
que depois começou a florescer e hoje está sedimentada em um turbilhão de
jardins nos quais me vejo dentro. São jardins de uma série de inquietações e
observações do que percebo e de tudo. Sou um observador das coisas. Essa minha
característica começou a se manifestar mais forte a partir da pré-adolescência.
SUPERPAUTA – A
timidez era outra característica sua?
GURGEL – Eu
era muito tímido! Lembro que quando meus pais faziam confraternizações, eu
permanecia na sala, só observando. Eles ficavam na varanda da casa, ao lado de
convidados como Newton Navarro, Dorian Gray, Celso da Silveira, Berilo
Wanderley... Conversavam, declamavam poemas, brincavam. Vendo aquilo, eu
entrava em um processo de alucinação total, porque era uma coisa mágica. Até
que um dia papai me chamou: “Carlos, traga para o pessoal ver aqueles
poemazinhos que você escreve”. Fiquei mudo e pensei: “poxa, vou falar para esse
pessoal as besteirazinhas que eu escrevo?”. Mas, terminei indo. Eu tinha entre
dez e onze anos de idade. Foi nesse período que comecei a conhecer as drogas.
Usei drogas dos onze anos aos trinta.
SUPERPAUTA –
Antes de entrarmos nesse capítulo das drogas, fale um pouco mais sobre a sua
mãe.
GURGEL –
Seu nome completo é Zoraide de Oliveira Gurgel. Ela também é daqui de Natal. Casou
com papai e foi mãe de nove filhos. Era para ser dez, mas um faleceu. Mamãe foi
um fiel escudeiro do meu pai, se dedicou à vida de dona-de-casa. É uma pessoa
extremamente tenaz até hoje. Além do trabalho doméstico, ela era um amparo para
o meu pai. Conviveram durante 61 anos. Nos preocupamos muito quando meu pai
partiu. Não sabíamos se ela superaria a ausência dele. Depois de alguns
momentos complicados, finalmente ela conseguiu se reorganizar. Mamãe é uma
pessoa de uma docilidade e de uma paciência enorme com relação às coisas. É
extremamente compreensiva. Sendo companheira do meu pai, sendo esposa de
Deífilo, não poderia ser de outra forma. Hoje ela salvaguarda o nome do meu pai
e tenta fazer com que essa tarefa seja um exercício diário para todas as pessoas
que vivem no seio da nossa casa.
SUPERPAUTA –
Qual a visão que você tem do seu pai?
GURGEL –
Uma pessoa do povo, extremamente humana. Fico emocionado quando falo sobre ele.
Meu pai se doou pra tudo. Fazia mais pelos outros do que para si próprio. Na
Fundação José Augusto, deixava de tratar de assuntos importantes para ele mesmo
em seu trabalho, e ia se dedicar aos outros. Meu pai era assim:
completamente desprendido. Era o oposto deste mundo onde vivemos, que é muito
espinhoso, cheio de truculência e pernosticismo. Sua simplicidade e
honestidade eram absurdas. Guardo isso para todo o sempre.
SUPERPAUTA – Em
algum momento você pensou em seguir o caminho dele na área do folclore e da
pesquisa?
GURGEL –
Não. Apesar de eu ter curiosidade com relação ao trabalho dele, minha história
foi em outra esfera, mais em um plano que transcendia um pouco essa coisa do
chão e do povo. Eu estava mais voltado para a inquietação dessa
contemporaneidade que a gente vive. Essa é a minha manufatura de poesia: eu
exponho a ferida, não tenho nenhuma contemplação. Simplesmente escrevo. Isso
que a gente vive é uma desumanidade, transcende qualquer compreensão mesmo. O
desrespeito, o despreparo em todos os segmentos... Eu sou fruto disso, eu sou
isso. Também tenho as minhas falhas e podridões...
SUPERPAUTA –
Vamos voltar à questão das drogas. O que o levou, tão novo, a esse mundo?
GURGEL -
Minha cabeça sempre foi aberta a essas coisas. Juntou a minha curiosidade em
querer descobrir, com o fato de que ao meu redor essas coisas estavam pulsando.
Estava ao meu entorno e eu queria provar, experimentar. Eu tinha onze anos de
idade. Foi um vendaval, era um processo de uma rapidez enorme. Mergulhei nisso
tudo enquanto produzia uns textos meio Kerouac, meio sem ponto, como se fosse
um vômito verbal. Só que as drogas o deixam refém.
SUPERPAUTA –
Por que você resolveu abandonar as drogas?
GURGEL –
Não sei até hoje como saí daquilo. Quer dizer, saí por mim
mesmo. Deu em mim como se fosse uma clarividência, uma revelação.
SUPERPAUTA –
Foi uma “bad trip”?
GURGEL - O
contrário: foi uma “good trip”. Fiquei um mês dentro do quarto. Lá em casa
todos sabiam que eu era poeta e sonhador. Quando terminou o mês, fui dar um
mergulho na praia. Depois disso, nunca mais quis saber de nada. O problema é que
sempre fui muito compulsivo. O que viesse na minha frente, eu provava. Eu
estava já na beira do despenhadeiro. Até que, por vontade própria e com extrema
determinação e persistência, deixei. Foi como uma linha ferroviária: você pode
mudar o trilho e conduzir o trem para outro percurso completamente diferente do
anterior. Fiz isso com a minha vida. Não foi fácil.
SUPERPAUTA –
Com qual idade você começou a documentar, via escrita, suas observações a
respeito da vida?
GURGEL –
Eduardo Alexandre Dunga diz que foi quando eu tinha uns oito anos de idade,
mesma época em que a gente se conheceu no Marista. O certo é que alguns anos
depois eu passei a sentir necessidade de transcrever minhas impressões para o
papel, como um testemunho da vida. De repente aquilo passou a fazer parte do
meu dia-a-dia. Sinto necessidade de escrever sempre. Durante a madrugada é o
meu período preferido. Durmo tarde, é nessa hora em que eu mergulho mais,
penetro mais em mim mesmo.
SUPERPAUTA –
Você foi um bom aluno? O que lhe interessava no colégio?
GURGEL –
Até que sim, mas muito indisciplinado. Fui aluno do Marista durante nove anos,
aí fui expulso. Eu não me enquadrava. Mesmo assim, eu gostava dos finais de
semana em que armávamos uma barraca para acampar perto do campo de futebol, lá
no Marista. Fui goleiro da seleção do Marista e apesar de tudo, passava por
média. Me interessava mais por Português. Também fiz algumas amizades que até
hoje permanecem e foram importantes para mim.
SUPERPAUTA – A
leitura interessava?
GURGEL – Eu
lia muito: Guimarães Rosa, Machado de Assis, Murilo Mendes, Ferreira Gullar e a
literatura “beat”... Gostava muito de Glauber Rocha e do poeta Joaquim Cardoso. Tive um diálogo grande com
Miguel Cirillo, figura que tinha conhecimento profundo sobre
literatura. Tinha uma loja esotérica no centro da cidade, “O
Templário”. Eu ia muito lá. Li também coisas orientais, como Krishnamurti.
Gostava muito de Allen Ginsberg, Alan Watts... Daí começou também o meu
interesse por cinema. Filmes antológicos me sinalizaram que o cinema é uma arte
extremamente bela, inquietante e desbravadora. Filmes como “Fahrenheit 451”, “Apocalypse
Now”, “Dow by low” e “Zabriskie Point” realmente transcendem.
SUPERPAUTA – Em
qual circunstância você resolveu lançar seu primeiro livro?
GURGEL –
Meu primeiro trabalho foi coletivo. Enoch Domingos, da TV-U, me chamou. Não
lembro exatamente como aconteceu. Acho que foi em um dos encontros do Cineclube
Tirol. Devo ter levado alguns textos para o pessoal ler e Enoch leu também. A
partir daí saiu o convite. O nome do livro é “Akó”, termo que em tupi-guarani
significa braguilha. Não lembro exatamente, mas sei que tem textos meus, de
Enoch e de mais duas pessoas. A repercussão foi quase nenhuma, porque Natal, no
final dos anos 1960, era uma aldeiazinha. Até hoje é. Talvez seja ainda pior
hoje, pois a cidade se traveste de uma coisa meio contemporânea e modernosa,
mas traz na raiz algo extremamente provinciano. A Natal daquela época eu
adorava. Como sempre dormi tarde, costumava sair pelas ruas da cidade
caminhando. Descia para a Praia dos Artistas... Quase de manhã eu voltava para
casa. O fato de eu ser notívago reforçou mais quando passaram a me convidar
para ser discotecário de boate. Fui discotecário da “La Prision”, da “Vela” e
de outra boate que tinha em Ponta Negra. Aí foi que troquei mesmo o dia pela
noite. Eu levava a minha própria coleção de discos.
SUPERPAUTA – O
que você costumava tocar?
GURGEL – Nina
Hagen, Led Zeppelin, Lennon, Stones, Creedence... Não era o
termo da
época, mas era como um bate-estaca. Eu fazia de propósito. O pessoal bebia, e eu fazia questão de botar um som para amplificar aquela loucura. No outro dia, quando algum deles encontrava comigo, comentava: “mas Gurgel, que doideira!”. Eu respondia: “da próxima vez vai ser mais ainda!”.
época, mas era como um bate-estaca. Eu fazia de propósito. O pessoal bebia, e eu fazia questão de botar um som para amplificar aquela loucura. No outro dia, quando algum deles encontrava comigo, comentava: “mas Gurgel, que doideira!”. Eu respondia: “da próxima vez vai ser mais ainda!”.
SUPERPAUTA –
Você escuta esse povo até hoje? Quem são seus artistas de cabeceira?
GURGEL –
Claro! Eu escuto também muita gente. Do Brasil, por exemplo, eu gosto muito de
Stella Campos, Apanhador Só, José Miguel Wisnik, Walter Franco, Jards Macalé.
Para mim, é um artista raro. Gosto muito do seu sarcasmo e de sua “mise en
scène” proposital. Ele tem aquela postura, aquela voz, aquele jeito... A
lista se estende: tem um grupo de Brasília, o Satanique Samba Trio. Também tem Vitor
Ramil, Letuce... Sou fã incondicional de Ava Rocha, Ivan Santos, Graveola,
Jussara Silveira, Cidadão Instigado, O Jardim das Horas, Siba e Isaar. Não
posso deixar de citar o Leonard Cohen e o Tom Waits. Escuto o pessoal dos anos
1970, como Lou Reed e Cat Stevens. Recordo um lançamento que marcou: Paêbirú,
de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Uma loucura, aquilo ali. Fui à gravadora Rozenblit
e peguei duas cópias, mas não sei onde foi parar. Esse disco é uma viagem, eu
ficava maravilhado. Paêbirú foi
um som que marcou demais. E também tem o som dos poetas
contemporâneos. Celso Borges, meu amigo poeta do Maranhão, belo o trabalho
dele. Tenho também escutado Artur Soares, Liz Rosa, Cabrito, Raul e Alcatéia
Maldita, Romildo Soares, Saturnino e o Disco Avoadô.
SUPERPAUTA –
Naquela época o disco era valorizado, até porque não era fácil adquiri-lo, seja
pelo custo em si ou pela dificuldade de os lançamentos chegarem a Natal. Hoje
em dia as gravações estão disponíveis antes mesmo de o disco começar a ser
vendido. Talvez por isso não se dê tanto valor.
GURGEL – O fluxo hoje é hipnoticamente intenso. A internet possibilitou esse vendaval, essa enxurrada de coisas que surgem. A tecnologia passou a permitir que você produza gravações e vídeos de boa qualidade em casa. O meu trabalho “Dramática Gramática” - que reúne livro, camiseta, pôster, CD e DVD - foi feito de forma caseira.
GURGEL – O fluxo hoje é hipnoticamente intenso. A internet possibilitou esse vendaval, essa enxurrada de coisas que surgem. A tecnologia passou a permitir que você produza gravações e vídeos de boa qualidade em casa. O meu trabalho “Dramática Gramática” - que reúne livro, camiseta, pôster, CD e DVD - foi feito de forma caseira.
SUPERPAUTA –
Antes de começarmos a tratar da sua produção literária, fale um pouco sobre
suas parcerias musicais.
GURGEL –
Tudo começou com o pessoal do “The Functos”, lá do Marista. O grupo era
Ivanildo, Napoleão, Adroaldo, Luis Neto, Glaucus, João Batista e, depois de
certo tempo, Piru. Participamos de vários festivais de música. Em um deles,
estava inscrita uma canção com a letra minha: “Missa biológica/Transe
comunhão/Sacrossanto”. A ideia do texto, que persiste até hoje, é que as
pessoas não estão mais mirando na cruz de Cristo para imaginar que ali é o
caminho para a salvação. O que estamos vendo é o nome d’Ele sendo pregado em
vão. Tem nome de Cristo em camisinha, papel higiênico, avenidas, em
tudo que é lugar... Em todo canto se lê a frase “Deus salva”. Quando comecei a
questionar que igreja é essa, saiu a letra de “Missa biológica/Transe comunhão/Sacrossanto”.
Eu costumava ficar na plateia vendo os festivais. Mas nesse ano resolvi
participar de outra forma. No dia da apresentação, fui me confessar na igreja
de Petrópolis. Quando o padre ficou de costas, peguei uma batina e o turíbulo,
que estavam no confessionário, e me mandei. (risos). À noite, durante a nossa
apresentação, entrei vestido com aquela roupa. Só que no lugar do incenso,
botei maconha dentro do turíbulo. Comecei a fazer uma evolução com aquele
turíbulo cheio de maconha e o pessoal ficou doido. Eu balançava ele perto do
nariz dos integrantes da comissão julgadora, que contava com gente como
Anchieta Fernandes. Ficaram doidos. Ao final da apresentação os jurados davam
as notas levantando tabuletas de zero a dez. Todo mundo levantou o dez. (risos).
Foto: Roberto Fontes |
SUPERPAUTA – Os
autores das músicas concorrentes não solicitaram exame antidoping? (risos).
GURGEL – O
problema é que estava todo mundo dopado. Esses festivais foram legais e
serviram como espaço para a gente mostrar o que estava fazendo e também se
divertir.
SUPERPAUTA –
Isso foi antes do Festival do Forte?
GURGEL –
Foi. Depois dessa experiência dei uma parada nas parcerias com compositores.
Logo em seguida surgiu a “Galeria do Povo”, de Eduardo Alexandre Dunga, na
Praia dos Artistas. Foi ponto de referência para as pessoas que trabalhavam com
poesia, com pintura... As reuniões ocorriam aos domingos. Além dos diálogos a
respeito da produção de cada um, vez por outra era montado um palco para o
pessoal tocar. Lembro que Bráulio Tavares se apresentou por lá. Posterior a
isso vieram os festivais do Forte, que foram uma delícia.
SUPERPAUTA –
Como surgiu a ideia de promover festivais culturais no Forte dos Reis Magos?
GURGEL – Eu
estava morando em Salvador. Fui curtir o carnaval da Bahia e resolvi não voltar.
Fiquei dois anos por lá, foi o maior carnaval da minha vida! Primeiro fiquei na
casa da Guida, uma baiana. Depois fui morar com uma gaúcha, Karla. Aconteceu o
seguinte: eu estava no carnaval e me roubaram tudo. Na hora que cheguei e fui
atrás do trio elétrico, quando fui procurar meu dinheiro, tinham roubado tudo,
inclusive os documentos. Resolvi não ir embora. Guida disse que eu podia ficar
em seu apartamento. Depois do carnaval fui à Secretaria de Segurança - para ver
a questão da identidade - e comecei a procurar emprego. Consegui um como
vendedor de uma loja de discos no Corredor da Vitória, ali perto do Solar do
Unhão. Fiquei quase um ano. Depois, Luciano, o dono, me transferiu para
trabalhar como gerente na loja do Porto da Barra. Lá nessa lojinha criou-se uma
reunião dos músicos, poetas e pintores. Eles gostavam de frequentar o lugar.
Foi daí que conheci Zelito Miranda, um músico da Bahia. Certo dia, ele me
convidou para fazer parte do seu grupo de teatro. Eles estavam montando um
espetáculo. Topei. Eu trabalhava de manhã e de tarde na loja e à noite ia para
o Teatro Castro Alves. Apresentamos esse trabalho coletivo no Teatro Castro
Alves. Depois de umas três semanas em cartaz, Lola me ligou. “Gurgel, eu sei
que você está em Salvador e tudo, mas queria que você viesse para Natal”. Perguntei
o que eu iria fazer em Natal. “Estamos com a ideia de realizar um grande
festival no Forte, reunir artistas do Sul, Sudeste e Norte do país. Vai ser uma
coisa muito legal”. A ideia foi de Lola! Topei. Vim e trouxe Karla comigo, a
gaúcha. O festival foi maravilhoso. Teve em 1978 e em 1980. Infelizmente, até
onde sei, não existe registro em vídeo, mas tem fotos. Acho que
existem vídeos quando ele se transferiu para a Cidade da Criança e o Bosque dos
Namorados, o Parque das Dunas.
SUPERPAUTA –
Você apresentou alguma coisa no Festival do Forte ou ficou apenas na
organização?
GURGEL –
Geralmente eu ficava na organização, mas teve um ano em que fiz uma... Eu não
gosto desse nome “performance”, acho que ele está muito diluído. Mas eu fiz uma
apresentação envolvendo aquela senhora, dona Raimunda, que ficava pelo centro
da cidade e todo final de semana se acomodava em um banquinho na frente do
Teatro Alberto Maranhão. Ela usava um chapéu, joias e roupas brilhosas. Para
levá-la até o Forte, foi um drama. Dona Raimunda tinha problema nas
articulações das pernas, demorou umas duas horas para chegar do início da
passarela até o Forte. A apresentação foi uma conversa sobre um outro lado da
história da vida dela. Foi um papo meio que lisérgico e alucinatório. Tenho as
fotos dessa apresentação.
SUPERPAUTA –
Você conheceu muita gente interessante nesses festivais?
GURGEL -
Tive a oportunidade de conhecer Chacal, José Roberto Aguilar, Pedro Osmar,
Paulo Rô, Marcélia Cartaxo e muitos outros. A impressão que tive de Aguilar é
que ele é um guia, uma pessoa extremamente audaz e ao mesmo tempo dócil.
Compactua com essas duas coisas: a audácia e a docilidade. Ele gravou um elepê
antológico: “Aguilar e a Banda Performática”. Quando estive em São Paulo há
alguns anos, fiquei uma noite todinha no atelier de Aguilar. Pessoas amigas
dele estavam lá, inclusive integrantes da Banda Performática. Fiquei umas oito
horas por lá, conversando. Ele é genial.
SUPERPAUTA –
Qual a importância desses festivais do Forte para a cidade?
GURGEL –
Teve uma importância tremenda: rompeu aquela visão de que os eventos locais
tinham que ser algo exclusivamente da cidade. Passamos a abrigar pessoas de
outras esferas, com outras cabeças, atitudes e trabalhos muito interessantes de
serem vistos. No festival, ficou muito explícita a validade da proposta de
reunir pessoas de várias regiões, com cabeças diferenciadas, para se
estabelecer um novo referencial da poesia, música, vídeos, artes plásticas,
dança etc. Foi muito legal para a cidade. Durava a noite toda, na época da lua
cheia. O Festival do Forte dos Reis Magos foi e sempre será uma lembrança que
marcou toda uma geração de artistas natalenses intercambiando com os artistas
das outras regiões brasileiras.
SUPERPAUTA –
Quando você chegou de Salvador o Forte já estava escolhido como local para
abrigar o festival? Por que saiu do Forte e foi para a Cidade da Criança?
GURGEL – Já
estava escolhido. Depois da realização de duas edições no Forte, houve uma
determinação da própria Fundação José Augusto para a troca de local. Algumas
pessoas estavam dilapidando a parte física do Forte. Por mais que tivéssemos
cuidado, alguns “viajavam” demais e exageravam. Isso dificultou para que o
Forte fosse novamente escolhido para sediar outros festivais. Nessa época eu
não estava mais em Natal. Participei apenas dos festivais de 1978 e 1980,
depois viajei para o Rio. Fiquei no apartamento do tio Tarcísio, na Lauro
Müller, ao lado do Canecão. Fui tentar minha vida por lá. Trabalhei como
revisor na “Editora Vozes” pela mão do amigo que há pouco partiu,
Moacy Cirne. Também fui revisor de uma revista de rock cuja redação ficava
próximo a Rio Comprido. Não lembro o nome da revista. Fiquei uns cinco meses,
mas a revista teve dificuldade de veiculação e sobrevivência.
SUPERPAUTA –
Antes de se mudar para o Rio você atuou na imprensa de Natal?
GURGEL – Só
como colaborador. Fiz matérias com vários artistas, como Leno, Jorge Melo,
Lola... Eu mandava o material e os jornais publicavam. Mas lembrei de um
projeto legal que bolei um pouco depois do Festival do Forte. Tentei agregar na
cidade grupos de poesia, trabalhar com saraus, incitar esse tipo de coisa.
Quando ia a shows eu costumava pedir um espaço para falar alguma poesia. Depois
de um tempo fiquei imaginando que a poesia não solicitava só isso. Ela quer um
espaço próprio, onde possa pulsar à sua maneira. Foi então que comecei a pensar
na possibilidade de organizar um projeto para os poetas. Assim surgiu o
“Lança-Poesia”, que ocupou durante três noites o Teatro Alberto Maranhão.
Consegui juntar muitos poetas bacanas: Dácio Galvão, João Gualberto, Eli Celso,
João da Rua, Civone, Darci Girassol... Foram uns vinte poetas: sete se
apresentando em cada uma das três noites. O evento contribuiu para despertar a
curiosidade das pessoas, que passaram a entender que a poesia poderia ter o seu
espaço próprio, ela poderia respirar por si própria. Nessa mesma época lancei
um jornalzinho-mural chamado “Caras Letradas”. Depois, já na Fundação José
Augusto, fiz o “Bendita Poesia”. O projeto tinha abrangência regional.
Consegui, pela Fundação, passagens, hospedagem, divulgação e alimentação. Convidei
Miró, Malungo, Lara e outros poetas do Recife; Carlos Emílio, de Fortaleza; e
vários outros poetas. Cada poeta dispunha de 30 minutos. Ele podia fazer
leitura ou qualquer outra coisa. A formatação era dele. Aconteceu lá no Teatro
de Cultura Popular da Fundação José Augusto.
SUPERPAUTA –
Qual o maior público que você conseguiu reunir no “Bendita Poesia”?
GURGEL – A
capacidade do teatro é de 180, eu coloquei umas 100 pessoas lá. A cada noite eu
juntava dois poetas de Natal e um convidado de fora. Mais recentemente, o
pessoal do Buraco da Catita me convidou para uma reunião. Eles estavam
transformando o local em um espaço cultural: queriam poesia, cinema, artes
plásticas... Me chamaram para desenvolver um trabalho de poesia lá. Devem ter
pensado que eu ia colocar um microfone aqui outro ali e escalar poetas para
recitarem. Não fiz isso. Juntei Carito, Civone Medeiros, Renata Mar e Pedro
Quilles (o único que não é de Natal), contratei uma pessoa para trabalhar com
vocal e outra para a expressão corporal e ensaiamos dois meses. Foi assim que
estreamos, no Buraco da Catita, “Toque de Colher Poemas”. Era uma mescla de
poesias de cada um. O espetáculo era dividido em três partes e durava 50
minutos. Pena que não deu para continuar, pois Civone teve outros compromissos
e só conseguimos fazer uma única apresentação. Mas a repercussão foi
tremenda.
SUPERPAUTA –
Vamos retornar ao Rio de Janeiro. Depois trabalhar como revisor na “Editora
Vozes” na revista de rock, o que você foi fazer da vida?
GURGEL –
Fui trabalhar como atendente em um bar “dark”. Era frequentado pelas figuras
mais “darks” possíveis. Um turbilhão de gente entrava no bar, e eu ficava
atendendo... Passei apenas três meses, não deu para continuar. O dono estava
querendo mudar o estilo do bar, não queria mais ficar com “dark”. Depois,
passei a participar de recitais de poesia. Um deles, no Parque Lage, teve
grande presença de público e muita repercussão. Saiu até matéria no jornal.
Permaneci mais um tempo, fiz um vídeo com o pessoal de Santa Tereza, mas depois
tive que retornar para Natal. De todas as viagens que eu fiz, acho que a mais
significativa foi para São Paulo, quando morei no Copan, no centro da capital
paulista.
SUPERPAUTA –
Como foi?
GURGEL – Eu
soube que Dailor e João Gualberto estavam morando lá. Mantive contato e eles
disseram que eu podia ir. Lá tinha um quarto para mim. Eu acordava de manhã,
atravessava o Largo do Arouche, e ia comer em um restaurante integral. Vizinho
ficava uma casa noturna chamada “Stardust”, que era do pai do guitarrista Lanny
Gordin. Numa das minhas idas e vindas do Copan para o centro e para outros
bairros de São Paulo, entrei na Augusta e vi um cartaz no Teatro Oficina:
“Estamos fazendo testes para elenco da montagem de ‘Hair’”. Resolvi me
inscrever e fui selecionado para participar dessa primeira apresentação de
“Hair” no Brasil. Era aquilo o que eu queria: permanecer em São
Paulo, talvez até ficar o resto da vida por lá. Para comemorar, convidei Dailor
e João Gualberto para ir ao “Redondo”, um bar que tem perto do Copan. Tomei uma
cana grande! Era para eu estar no teatro, no outro dia, às oito da manhã.
Cheguei vinte minutos atrasado e já tinham me substituído. Por essa minha
irresponsabilidade, perdi a oportunidade. Eles não esperaram, até porque tinha
uma fila com mais de dez pessoas aguardando alguma desistência.
SUPERPAUTA –
Atualmente você é servidor da Fundação José Augusto?
GURGEL –
Sim. Quando presidiu a Fundação, François Silvestre conseguiu a minha
redistribuição da Secretaria de Educação para lá. Na Secretaria da Educação
trabalhei no departamento de artes desenvolvendo atividades culturais ligadas
às bibliotecas. Uma delas era leitura para os alunos. Mas estava muito sacal,
eu não aguentava mais.
SUPERPAUTA –
Vamos falar sobre os seus livros. Dê uma resumida na sua produção.
GURGEL – Depois
do “Akó”, com Enock, teve “O Arquétipo da Cloaca – 3X4”, em parceria com Sávio
Ximenes, Carlos Paz e Flávio Américo. Era tipo um portfólio. O lançamento foi
na Academia de Trovas, em frente à Academia de Letras. Em seguida veio o
primeiro individual: “Avisos & Apelos”, depois “Batman e Robin -
Um poema concreto da abstração vivencial”, meu e de Eduardo Alexandre. Depois
desse teve “Deusa do Além”, com capa de Buca, um artista plástico cearense, e
com ilustrações de Aguilar. É um livrozinho pequeno, organizado por Venâncio
Pinheiro, que tinha uma gráfica. Rodamos em mimeógrafo. Em 2004, saiu
“Apaixonada poesia louca”. Os dois últimos foram “Dramática Gramática” (livro, CD,
DVD, camiseta e pôster) e, agora, “Mais que amor”.
SUPERPAUTA –
Fale um pouco sobre “Dramática Gramática”.
GURGEL – O
livro surgiu quando eu tinha uma página no Orkut. Ficavam insistindo para eu
publicar, e eu sempre respondendo que não queria. Foi tanta insistência que
resolvi não fazer apenas o livro, mas também a camiseta, o pôster, o CD e o
DVD. Fiquei um ano doido, para dar conta desse negócio. Mirei no projeto e só
descansei quando concluí. É muito louco lançar, numa mesma ocasião, cinco
itens. Não é fácil. O trabalho é todo conceitual. As logomarcas que aparecem
neste CD, por exemplo, foram de apoios prometidos que não se concretizaram. Não
recebi nenhum tostão de nenhum deles. Tive que fazer um empréstimo que até hoje
pago. Não houve lucro nenhum porque tive que bancar tudo. O custo foi de
aproximadamente 20 mil reais. Mas valeu a pena, o CD e o DVD são muito
experimentais. Essa é uma linha que eu gosto. Nas gravações, a minha voz normal
navega por outras texturas vocais. Mas sem nenhum truque ou efeito digital. É a
minha voz mesmo, sem manipulação.
SUPERPAUTA –
Por último teve o “Mais que amor”.
GURGEL –
Esse também surgiu a partir de uma rede social, a minha página no Facebook.
Dialogando com a proprietária da editora “Ibis Libris”, Thereza Christina Roque
da Mota - que além de editora é poeta e tradutora carioca - ela disse que ia
publicar meu livro. Levei na brincadeira, mas, uma semana depois, Thereza pediu
que eu escolhesse alguns poemas e enviasse para ela dar uma olhada. Mandei
todos eles, bem uns 150. Dez dias depois ela devolveu tudo diagramado. Foi
então que percebi que Thereza estava falando sério. Paralelamente, a gente
começou um relacionamento. Fiquei um tempo com ela no Rio. Lá o Jorge Benjor me
apadrinhou e incluiu o lançamento do livro na programação do “Corujão da Poesia
– Universo da Leitura”, que ele organiza junto com João do Corujão. Depois
lancei no quiosque da “Pelada Poética do Leme”, na praia do Leme. Fui para São
Paulo e fiz um lançamento na “Livraria do Espaço Itaú”, na Rua Augusta. Marcos
Silva, amigo da época dos festivais de música aqui em Natal e que a um bom
tempo é professor em São Paulo, foi quem conseguiu. Em outubro, a convite do
poeta maranhense Celso Borges, lancei também na feira do livro de São Luís. Em
Natal fiz lançamentos no “Piazzalle” (no Midway) e também no “Between”. Ainda
tenho convites para lançar em Fortaleza, Recife e João Pessoa e Campina Grande.
SUPERPAUTA –
Qual a temática do livro?
GURGEL – O
meu texto está muito nu, despido de qualquer complacência. Ele fala sobre como
o mundo está atualmente, repleto de indelicadezas e murmúrios. De um mar
apadrinhado por asseclas que reinam por dentro dos seus castelos, como se
quisessem declarar o seu amor pelo supérfluo e transitório. Numa outra época
tinha gente legal, era a geração dos Beatles, do teatro revolucionário, do
cinema de Glauber. Quando me deparo com a realidade atual, emudeço. Por isso o
livro é um vômito mesmo, é uma verborragia. Se bem que meus escritos estão
passando por uma depuração. Antes era uma coisa mais de “insights”. Hoje já me
detenho mais: se eu quiser lapidar, lapido. Aprendi isso com Thereza. Ela
falava muito para eu ter cuidado com o que escrevia. Thereza é uma das maiores
tradutoras do Brasil. Traduziu 154 sonetos de Shakespeare, entre outros.
SUPERPAUTA –
Você continua escrevendo todos os dias.
GURGEL –
Praticamente. Hoje mesmo escrevi. Coloco no Facebook. Vou fazer outro livro
chamado “Vocabulário da Raça”. Vai ficar pronto agora em 2014. Não sei ainda
qual a editora. Vai ser a sequência desse último. Meu trabalho está muito isso.
Tem coisa amorosa, claro, inquestionavelmente tem sim, mas também tem esse
caleidoscópio liquidificado onde vivemos.
SUPERPAUTA –
Você tem filhos?
GURGEL -
Tenho dois. Lucas está com 20 anos. Ele tatua. É uma figura lindíssima.
Escreve, é músico. Toca violão, guitarra, baixo, bateria... Está
trabalhando com pintura, com vídeos... Meu filho é muito incrível. Tenho outro
que mora em João Pessoa, com a mãe, que é o Ian. A mãe dele, Ana Cristina, é
violinista na orquestra sinfônica. Ian nasceu em João Pessoa, perto da família
da mãe.
SUPERPAUTA – E
os “bottons” que você está comercializando dentro da proposta de as pessoas
colocarem a poesia no peito?
GURGEL –
Esse trabalho surgiu a partir da Raquel Jácome, aqui do Between. Resolvi fazer
esses “bottons” para que as pessoas possam colocar literalmente a poesia no
peito. É um desdobramento do meu trabalho.
SUPERPAUTA –
Onde alguém que não mora em Natal ou não está próximo a você pode ter acesso a
todo esse material que você produz?
GURGEL – Mantendo
contato pelo meu Facebook.
SUPERPAUTA – Em
determinada ocasião você foi eleito o homem mais bonito de Natal...
GURGEL –
Não, Roberto, por favor. Isso aí não contempla não.
SUPERPAUTA – O
que você considera boa poesia, hoje, no Brasil e em Natal?
GURGEL –
Aqui em Natal tem Adriano de Souza, o Eli Celso, que está morando em Brasília.
Gosto muito de Marize Castro, Anchella Monte, Iracema Macedo. Tem Drika Duarte,
Jota Mombaça, e - guardem esse nome - Juliana Ribeiro Dantas, filha de Anchella.
É muito bonita a poesia dela. Entre os poetas de fora, gosto muito do Alberto
Lins Caldas e José Inácio, amigos e poetas porretas do Facebook, além de Canaã
Ferraz e Michel Melamed... Eu poderia depois ampliar essa relação, já que tem
muita coisa legal.
SUPERPAUTA –
Como você encerraria essa entrevista?
GURGEL – A
melhor forma seria declamando um poema. Chama-se: “Contumaz”. Diz assim: “Minha
saudade é uma relíquia /Confesso aos meus erros a felicidade / De uma chácara
repleta de ilhas / E de um vasto ocaso: o espelho daquela tarde / Foi o ontem
que me deixou mais pensativo / Repousado de brios, ferrugens e do bem do mar /
É como o destino que me caçoa, soa fugitivo / De uma torre, de uma serpente, do
seu olhar / Me sigo como vila velha de milhas / Trespasso a ampulheta que aluga
noites e dias / Aguo a vida que me dá filhos e filhas / E repouso como um
míssil, sombreado de dentes sombrios / No vasto do rastro que escorrego e me
acho / Vago feito um senil, simulacro de fogo e enfeite / Sou de noite a flor
do facho, passo à passo / Como uma bússola que encobre todo o seu azeite / E
que da ilha que do início me fez senhor / Eu peço a luz que induz e conduz a
sua paz / Só quero a cruz, as minhas costas e aquela dor /E do inúmero vento
daquela lembrança que me leva e que me trás /Que me leva e que me trás”.
Foto: Roberto Fontes |
Show! A entrevista e as fotos, principalmente as cedidas, deram um toque especial ao texto. Parabéns, Bob Man!
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