GATOS LÚDICOS EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU!
Foto: Fabiana Bagdonas |
Aportamos
no Ancoradouro (novo nome do Restaurante Veleiros) em uma noite do final de
novembro, com a missão de resgatar a trajetória do Gato Lúdico - banda que
incendiou o cenário musical natalense a partir dos anos 1980. Para contar todos
os detalhes, estavam lá os fundadores Carlos Lima e Vicente Vitoriano, e também
o gato lúdico mais recente: Artemilson Lima, que ingressou oficialmente na
história quando o grupo reiniciou suas atividades, em 2011. O terceiro Gato da
formação original, Jaime Lúcio Figueiredo (que morreu em 2007) pontuou
praticamente toda a conversa. Assumindo a responsabilidade de materializar a
entrevista, estávamos eu, meus xarás Roberto Fontes e Roberta Simões, Fabiana
Bagdonas e Costa Júnior. Quatro jornalistas potiguares e uma advogada
pernambucana com faro e talento jornalísticos, Roberta Simões. A conversa está
transcrita a seguir. (robertohomem@gmail.com)
SUPERPAUTA – Vamos começar pelas
apresentações... Cada um de vocês pode contar a sua história?
Foto: Roberto Fontes |
ARTEMILSON – Sou Artemilson
Alves de Lima, o Artemilson Lima. Nasci em Pau dos Ferros. Minha origem é
protestante. Comecei a me envolver com artes cantando na igreja. Depois foi que
a música se transformou profanamente em uma forma de diversão. Vim para Natal
em 1983 para fazer cursinho. Porém, antes disso eu já tinha vencido festivais.
Ganhei o prêmio de “A mais bela voz do sertão”, na Região Oeste. Disputei a grande
final em Mossoró. Não ganhei, mas de qualquer maneira foi um impulso muito
grande.
SUPERPAUTA – Na sua família
tinha muitos músicos?
ARTEMILSON – Meu tio, Antonio
França, é cantor evangélico. Ele vive em São Paulo e já lançou vários elepês. Uma
tia tocava violão, e a outra, sanfona. Eu era muito ligado a elas. A minha mãe,
Maria Alves de França, também tocava violão. Ela era dona-de-casa, mas sempre
esteve envolvida com as coisas da igreja, inclusive com a música evangélica.
Dessa forma também fui me interessando. Lá em casa quase todos os filhos
cantam. Minhas irmãs até hoje continuam sendo protestantes e são cantoras de
igreja. Passei a mexer com música ainda adolescente, em Pau dos Ferros.
SUPERPAUTA – Em que seu pai
trabalhava? Você veio sozinho para estudar em Natal?
ARTEMILSON - Meu pai, Odílio
José de Lima, é ferreiro. Está muito velho, mas ainda pratica a arte de
trabalhar o ferro. Vim sozinho para Natal morar na Casa do Estudante. O
objetivo era fazer cursinho para entrar na universidade. Passei para o curso de
História. Em 1983 conheci os meninos do Gato Lúdico. Foi a partir daí que a
cobra fumou mesmo. Foi onde eu me perverti. (Risos).
SUPERPAUTA – Na sequência
você continua essa história. Vamos ouvir agora o que Carlos tem para contar.
Foto: Roberto Fontes |
CARLOS – Eu me chamo
Carlos Alberto de Lima. Sou conhecido como Carlos Lima ou Carlão - apelido que
tenho desde adolescente. Nasci aqui no agreste, no Sítio Sumaré, distrito de
Goianinha. Ainda criança mudei para o sertão. Morei em Martins e depois em Mossoró.
De lá fui para João Pessoa.
SUPERPAUTA – Qual a
explicação para tantas mudanças?
CARLOS – Meu pai,
Severino Olinto de Lima, trabalhava nos Correios. Ele era condutor de malas. Hoje
está aposentado.
SUPERPAUTA – O que fazia um
condutor de malas?
CARLOS – Era o
responsável por transportar as malas de uma agência dos Correios para outra, de
uma cidade para outra. Ele carregava aquelas malas de lona com os malotes e as
correspondências dentro. No início meu pai fazia esse serviço a cavalo. Depois
passou a utilizar o trem. Um dos percursos era entre Mossoró e Sousa. A essa
altura eu já era adolescente e morava em Mossoró. Foi lá que comecei minhas
atividades artísticas, mais ou menos aos 15 anos, com um clube de jovens. Começamos
a fazer teatro imbuídos naquele lance do teatro de protesto. Estávamos em plena
ditadura, e o teatro era uma forma de resistência. Apesar de ainda ser muito
criança e não ter essa consciência política, me liguei a esse grupo de estudantes
da faculdade de Serviço Social de Mossoró. Baseados em texto do Papa João
XXIII, fizemos uma peça com músicas. O teatro de protesto tinha mais ou menos
esse formato de música e textos desde o “Show Opinião”. Então, minha
participação artística foi a partir do teatro com a música. Além da
interpretação dos poemas, tinha também as músicas.
SUPERPAUTA – Depois dessa
fase em Mossoró, que rumo você tomou?
CARLOS - Fui estudar em
João Pessoa. A família da minha mãe, Fernandina Gomes deLima, morava lá. Minha
mãe era doméstica, do lar. Minha família não tinha vocação para a arte. Acho
que fui o único que teve essa inclinação artística. Mas eu dizia que fui para
João Pessoa, estudar. Lá entrei no Grupo Oficial de Arte Dramática do Teatro
Santa Roza. Um nome pomposíssimo! Foi aí que eu comecei a fazer teatro de uma
forma mais específica, isso em 1967. No final do ano seguinte, esse grupo foi
convidado para participar de um festival de teatro amador que seria realizado
para marcar a inauguração do Teatro Municipal de São Carlos, em São Paulo. Foi
muito marcante participar desse festival porque nele eu conheci a atriz Cacilda
Becker. Ela estava montando “Esperando Godot”, por sinal a sua última peça. Havia
estreado há pouco, em São Paulo. No teatro de São Carlos era tipo a segunda vez
que ela encenava aquele espetáculo. Foi fantástico! Pude vê-la de perto e isso
me impressionou muito e marcou profundamente o teatro como uma opção de arte
pra mim.
SUPERPAUTA – Da sua turma do
Teatro Santa Rosa alguém se destacou nacionalmente?
CARLOS – Vital Farias
talvez seja o nome mais estelar daquele grupo. Ele fazia a
parte musical da
peça “Auto de Maria Mestra”, de Altimar Pimentel. Era um auto nordestino: tinha
folguedos, pastoril e aquela coisa toda. No espetáculo, Vital Farias era um dos
músicos do grupo. A direção era de Elpídio Navarro. O diretor do teatro era
Paulo Pontes. O grupo era amador, totalmente amador. Apesar de não ter
estrelas, tinha artistas importantes. Mas ninguém chegou ao estrelato. De João
Pessoa, virei hippie. Assumi a vida de hippie: larguei estudo, larguei família,
larguei tudo.
Foto: Roberto Fontes |
SUPERPAUTA – Você chegou a
ouvir a opinião dos seus pais antes de tomar essa decisão?
CARLOS – Não ouvi ninguém,
simplesmente larguei tudo e me mandei. Fui para o Rio de Janeiro.
SUPERPAUTA – Como você
sobreviveu durante esse período em que se tornou hippie?
CARLOS – Sobrevivi
basicamente através da venda de artesanato. Fiz muita pulseira de miçangas,
trabalhei com couro, fiz bolsas, cintos, mocassins... Tudo isso a mão. A
comercialização desses produtos dava a grana necessária para sobreviver e
comprar mais miçangas e material. Desta forma, pude transar minhas coisas e
viver a vida em comunidade. Morei em algumas comunidades na Paraíba, Bahia, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul... Deixei essa aventura hippie em 1979.
SUPERPAUTA – Por que?
CARLOS – Virei hippie em
1972. Com o passar do tempo, houve um desvirtuamento do movimento hippie. Em
1978 a coisa já estava bem desvirtuada. Havia muita infiltração de pessoas que utilizavam
o movimento para não ter o que fazer e manter um status. Isso prejudicou muito
o movimento hippie, que já chegou um pouco atrasado aqui no Brasil. É que aqui as
coisas já chegavam com um certo delay.
Deixei o movimento por conta dessas infiltrações e desvirtuamentos. Com o
passar do tempo, o movimento foi mudando ao ponto de virar uma caricatura.
Hoje, por exemplo, esse pessoal que vive da venda de artesanato é uma
caricatura daquilo que foi o movimento hippie. Então, em 1979 eu aportei aqui
em Natal.
SUPERPAUTA – Por que Natal?
CARLOS – Porque era a
minha terra, o meu estado. Aqui era onde eu tinha uma base familiar e de amigos,
também.
SUPERPAUTA – Como a família
lhe recebeu após essa temporada distante?
CARLOS – Muito bem! Graças
a Deus nunca tive problemas por ter deixado a família... Nem quando voltei. Por
incrível que pareça, apesar de não serem pessoas cultas, meus pais
compreenderam perfeitamente e me aceitaram sem problemas quando ingressei no
movimento hippie. Então, em 1979 aportei aqui. Em 1977 eu já havia passado em
Natal. Naquela ocasião, o amigo Véscio Lisboa – meu amigo desde a época que
morei em Martins - me convidou para implantar a macrobiótica em Natal. Foram
duas etapas. O primeiro restaurante macrobiótico foi montado na Cordeiro de
Farias. Depois passamos para a Ladeira do Sol. Nessas duas fases, trabalhei no
restaurante. Eu cozinhava, fazia pães e participava de todo aquele movimento. Foi
uma época importante e de grande aprendizado para mim. Inclusive para minha
sobrevivência, para a minha vida, de um modo geral. Depois de tudo isso - de
ter sido hippie, de ter ido e voltado, da macrobiótica - virei funcionário
público. Entrei na TV Universitária, como locutor. Foi lá que conheci Jaime
Lúcio Figueiredo.
Foto: Roberto Fontes |
SUPERPAUTA – Então vamos
ouvir a história de Vicente Vitoriano. Depois voltamos para falar sobre Jaime.
VICENTE – Sou de Mossoró e
o meu nome completo é Vicente Vitoriano Marques Carvalho. O Marques é de minha
mãe, Maria de Lourdes, e o Carvalho do meu pai, José Victor. Meu pai foi marceneiro,
mas isso aconteceu quando eu ainda era muito criança. Não guardo recordações
dessa época. Quando vim tomar conhecimento, ele já trabalhava fazendo a
contabilidade de sindicatos. Mesmo com uma educação formal mínima, meu pai
começou a fazer escrituração fiscal.
SUPERPAUTA – Como ele
conseguiu essa ascensão?
VICENTE – Sabedoria. Ele
se transformou. Tanto que quando eu estava no ginásio ele me incentivou a fazer
um curso de escrituração mercantil. Ingressei nesse ginásio profissionalizante,
mas nunca concluí. Até me saí bem como acadêmico, mas não gostava da atividade.
Minha família era muito católica. Frequentei igreja muito ativamente até os 16
anos. Da mesma forma que Carlos, participei de clubes de juventude.
SUPERPAUTA – Você foi bom
aluno?
VICENTE – Sempre fui bom
aluno, me destacava em tudo: sempre fui dos melhores alunos onde estudei. Digo
isso sem nenhuma vaidade. Eu tinha facilidade natural para aprender as coisas, para
tirar notas boas. Fui muito estudioso até o período desse curso profissionalizante,
no ginasial. Depois, passei a ser apenas um estudante responsável. Era o
período da adolescência, passei a me interessar por outras coisas, além dos
estudos. Por ser o filho caçula, não devia trabalhar. A minha obrigação era
estudar. Mas passei a me interessar por outras coisas, como as artes. Eu já
desenhava desde criança. Por volta dos 15 anos comecei também a trabalhar com
música e com teatro.
SUPERPAUTA – De onde você
herdou essa tendência para as artes?
VICENTE – Igual a Carlos,
foi via os clubes de juventude. Inclusive, no intervalo de tempo em que Carlos morou
em Martins e Mossoró, começamos a trabalhar juntos. Não era um grupo
constituído. Fizemos amizade e tivemos oportunidade de fazer aparições. Posteriormente,
em uma das voltas de Carlos, aprofundamos esse trabalho. Começamos a ler teatro:
textos da dramaturgia e teoria do teatro. Também fizemos algumas experiências.
Na época, nossa ideia era fazer teatro underground. A intenção era fazer teatro
para convidados, espetáculos para três ou quatro pessoas. Mostrávamos coisas
estapafúrdias. Uma das coisas importantes que fizemos naquela época foi encenar
Edward Albee. Para mim foi a certeza de que eu não poderia fazer nada menos do
que aquilo. Eu tinha que ir para frente.
SUPERPAUTA – Como as pessoas,
em Mossoró, recebiam essa proposta tão avançada?
VICENTE – Era teatro
underground, só ia quem já estava sabendo o que era. Mesmo assim, alguns colegas
ficavam se perguntando o que era aquela coisa. De certa forma, as pessoas
entendiam o que estávamos tentando fazer, até porque elas já tinham visto “Blow-up”,
de Antonioni. Nossa formação tinha muito a ver com cinema, e todo mundo lia
muito. Obviamente procurávamos convidar pessoas que poderiam aproveitar alguma
coisa daquilo. Mas, em termos de teatro, só quando vim para Natal foi que
retornei o trabalho.
SUPERPAUTA – Por que você
veio para Natal ao invés de ingressar com Carlos no movimento hippie?
VICENTE – Porque eu já era
desvirtuado. Quando Carlos foi ser hippie, eu já estava desvirtuando o hippismo!
Eu estava só fazendo a moda hippie: roupa, cabelo, enfeite, essas coisas. Eu
usava aquilo porque achava uma opção melhor do que a roupa “careta”, como se
dizia na época. Mas eu vim para Natal fazer universidade, cursar Arquitetura.
Na época não tinha Artes. Na realidade, eu queria ser jornalista. Estava tudo
organizado para eu estudar no Rio de Janeiro. Tinha lugar para ficar e emprego
na Tribuna da Imprensa, por influência de Aluízio Alves e do pessoal que estava
lá: Franklin Jorge e Paulo Augusto. Esses dois estudavam e trabalhavam lá.
Disseram que eu teria lugar para morar e emprego.
SUPERPAUTA – Por que você não
aproveitou essa oportunidade?
VICENTE – Quando toquei no
assunto com meu pai, ele só faltou pirar. Isso foi em 1972 ou 1973. Quando esse
meu projeto de estudar Jornalismo no Rio pifou, fiquei muito angustiado, pois
teria que vir para Natal estudar Engenharia, acatando o que o meu pai queria. Por
sorte, quando fui prestar vestibular tinha acabado de ser criado o curso de
Arquitetura. Dei mais sorte ainda ao passar no vestibular, na primeira tacada.
Antes de eu vir morar em Natal, quando vim fazer matrícula, estava estreando um
espetáculo do denominado “Subgrupo de Teatro - Teatro Mágico para Poucos”. Aquela
ideia era mais do que o que eu estava fazendo com Carlos. Então, me integrei
logo a eles. Participei da montagem do espetáculo seguinte, que foi “A
ampulheta e o espelho”. A pesquisa era de Véscio. Curioso é que todo mundo
queria se apresentar no Teatro Alberto Maranhão. Nós fomos impedidos por um
diretor do TAM, na época, o Meira Pires. Ele alegou que não podíamos nos
apresentar lá porque éramos um “subgrupo”. Devido a essa "boutade" de Meira Pires, depreciando o grupo, Véscio o registrou como “Subgrupo de Teatro”. Mas, como eu dizia, em Natal retomei o teatro. Mas a
minha atividade artística mais intensa era relacionada com o desenho, as artes
visuais.
SUPERPAUTA – E a música?
Foto: Roberto Fontes |
VICENTE – A música é outra
história. Tenho uma irmã chamada Antônia. Ela é mais conhecida como Toinha
Bedel. Meu pai era conhecido como José Bedel. O pai dele tinha sido bedel de
uma escola. Dessa forma, viramos a família bedel. Tem Antonia Bedel, Adelaide
Bedel... Mas eu nunca fui conhecido assim. Mas eu dizia que essa minha irmã era
cantora de igreja. Formava um grupo com mulheres músicas, como Dayse Melo e
D'Alva Stella. D’Alva regia esse coral de moças para cantar nas igrejas de
Mossoró. Mas essa é uma memória que tenho muito diluída. Minha relação com a
música - de compor, cantar e tocar - foi pra fazer serenata pras meninas. Minha
escola começou nisso. Em Mossoró era tranquilo, mas claro que de vez em quando podia
aparecer um cara armado com uma espingarda, enquanto tocávamos na frente de sua
casa. Já perto de me mudar para Natal foi que comecei a me envolver com músicos
de verdade. Aprendi bastante e comecei a compor. Pouco tempo depois de chegar
em Natal, já fiz músicas para algumas peças de Véscio.
SUPERPAUTA – Fale um pouco
sobre o grupo “Nuvem Verde”, que serviu como embrião para o Gato Lúdico.
VICENTE – Tudo começou com
Jaime. Ele é do Pará, mas morou muito tempo no Paraná e no Rio de Janeiro.
Jaime veio para Natal em 1975. Tinha cansado do Rio. Era funcionário da Chesf e
pediu transferência para o Nordeste. Veio trabalhar no Recife. Depois de pouco
tempo, desistiu do trabalho e pediu demissão. Andou um pouco e veio morar em
Natal. A primeira pessoa que ele procurou fui eu, porque alguém já tinha dado
notícia minha por aí afora. Ele devia procurar algumas pessoas - entre elas eu
e Núbia Lima. Jaime era brilhante, inteligentíssimo, muito informado e tinha
uma experiência de vida em arte interessante. Era diretor de teatro. Ouvíamos
muito jazz, rock and roll (Jaime preferia Rolling Stones e rock dos anos 1950)
e alguma coisa de rock progressivo. Mas, basicamente escutávamos jazz
tradicional e alguma coisa mais recente da época. Até então nossa amizade
estava muito focada na música. Em 1977, meus colegas da universidade queriam
fazer uma viagem para participar de um congresso. Resolvemos montar um
espetáculo de teatro visando ajudar na arrecadação do dinheiro necessário para bancar
as despesas. Convidei Jaime e ele topou dirigir aquela montagem. Foi o primeiro
trabalho dele com teatro, em Natal. Depois, Jaime pegou fogo, digamos assim:
logo em seguida começou a fazer outras coisas. E eu sempre ao redor. Depois
disso, Carlos foi trabalhar com ele na TV Universitária, local onde costumávamos
ensaiar e nos reunir.
SUPERPAUTA – Então, Carlos
continua contando a origem do grupo Nuvem Verde, que posteriormente geraria o
Gato Lúdico.
CARLOS – Quando conheci
Jaime, Vicente já havia me falado que ele era uma pessoa muito bacana, e que eu
iria adorar conhecê-lo. Foi o que aconteceu. De imediato as nossas ideias
bateram, principalmente com relação a teatro. Logo estabelecemos aquela
amizade, aquela irmandade artística que ele chamava cumplicidade. Essa cumplicidade
artística resultou no “Grupo Nuvem Verde de Teatro Aberto”. Fazíamos parte:
Jaime Lúcio Figueiredo (que era o diretor), eu, Vicente e algumas outras
pessoas que giravam em torno de nós, como Augusto Lula, Venâncio Pinheiro e
Júlio César Revorêdo. Por sugestão de Jaime, resolvemos fazer Brecht. Foi
marcante porque era a primeira vez que um grupo interpretava Brecht no Rio
Grande do Norte. Isso provocou certa polêmica, diziam que não adiantava fazer
Brecht porque ninguém ia entender. Mais atrevidos ainda, nós queríamos fazer
Brecht para o povo! Trazer aquela mensagem do teatro Brechtiano para o povo... E
conseguimos. Usamos o texto de Brecht, mas com uma montagem bastante simples e
acessível.
SUPERPAUTA – O que vocês
encenaram?
Foto: Roberto Fontes |
CARLOS – A primeira peça
de Brecht que nós fizemos foi “A exceção e a regra”. Encenamos inclusive no
bairro de Mãe Luiza e no interior. Naquela época, início dos anos 1980, participamos
de semanas universitárias em Alexandria, Pau dos Ferros e Pedro Avelino. A Esam
(Escola Superior de Agricultura de Mossoró) também comprou os três espetáculos de
Brecht que nós fizemos e levou para Mossoró. Depois de “A exceção e a regra”,
que estreamos em 1979, encenamos “Os fuzis da senhora Carrar”. Esse texto foi
uma espécie de panfleto contra a guerra civil espanhola. O terceiro trabalho de
Brecht que nós fizemos foi “O mendigo ou o cão morto”. Daí vem a história do
Gato Lúdico. “O mendigo ou o cão morto” era uma peça curta, durava uns 30
minutos. Os intérpretes éramos eu e Vicente. Foi uma combinação muito feliz. Eu
tinha toda a carga dramática que o personagem, o mendigo, pedia. Já o rei, que
Vicente fazia, era totalmente o contrário do mendigo. Foi uma combinação tão
interessante que Jaime considerou o melhor trabalho dele.
SUPERPAUTA – Por que essa
peça terminou gerando o Gato Lúdico?
CARLOS - A peça tinha trinta
minutos, mas para levar ao teatro nós precisávamos que o espetáculo durasse mais
ou menos uma hora. Para complementar os outros trinta minutos, inserimos
músicas nossas e poemas. Poemas de Brecht, como, por exemplo, “A infanticida
Marie Farrar”. Depois surgiu a ideia de cantar em público, e, dessa forma foi
surgindo o Gato Lúdico, mas ainda de uma maneira informal. O Gato Lúdico surgiu
oficialmente no Festival de Música e Poesia da UFRN, em 1982. Defendemos duas
músicas: “O príncipe Augusto”, composição de Véscio Lisboa para teatro (para a
peça “La Serpento”), e “Serelepe”, que era uma música minha. Sempre tive a
ousadia de fazer música e letra. É uma ousadia mesmo. Mas foi assim que entrou
em cena o Gato Lúdico.
SUPERPAUTA – Artemilson, como
você conheceu o Gato Lúdico?
Foto: Roberto Fontes |
ARTEMILSON – Jaime foi o
primeiro dos “Gatos” que eu conheci, depois que vim para Natal fazer cursinho
visando entrar na UFRN. Nesse curso preparatório conheci uma menina chamada
Rosinha. Ela era amiga de Jaime e frequentava eventualmente a sua casa, lugar
onde o Gato se reunia. Jaime foi o único anarquista e socialista autêntico e
real que conheci na minha vida. Ele tinha um desprendimento material tão grande
que a própria casa dele era aberta a quem chegasse, sem distinção. Não existia persona non grata na casa de Jaime Lúcio. Então, em 1983 conheci Rosinha e ela me
chamou, certa ocasião, para ir ao Baixo. Estávamos ali na esquina do Bar do
Boliviano, onde esquentávamos os tamborins para sair para outros bares, como o
Boteco. Eis que surge uma trupe com um índio de bigode, trajando camisa xadrez,
calça vermelha e sapatos brancos. Ainda lembro como se fosse hoje, era quase
uma hora da manhã. Rosinha se empolgou, chamou e puxou aquele personagem para a
nossa mesa. Assim ela me apresentou a Jaime Lúcio. De lá fomos para a Barraca
da Marlene. Nessa noite dormi na casa de Jaime, porque não tinha mais
transporte e eu morava na Casa do Estudante. A partir de Jaime começou a minha
aproximação com o Gato Lúdico, que em 1983 já tinha uma história como grupo
musical.
SUPERPAUTA – Onde Jaime Lúcio
morava?
ARTEMILSON – Quando o conheci,
Jaime morava na Dois de Novembro, onde depois foi instalado o Espaço Cultural
Alto do Juruá, de Hugo Manso e Venâncio Pinheiro. Depois ele mudou para a Rua Pinto
Martins. A primeira vez que vi o Gato Lúdico se apresentar em palco foi no
Espaço Juruá, no Dia da Consciência Negra. A amizade que firmei com ele se
tornou uma espécie de irmandade. Da mesma forma, estabeleci com o Gato Lúdico,
a partir de 1983, uma vinculação um pouco mais orgânica e visceral. Isso se deu
em virtude de eu já dispor de bastante informação musical e literária. Eu já
era um grande leitor. Digo isso porque na época era a única coisa que eu fazia.
Quando terminei o segundo grau em Pau dos Ferros, fiquei um tempo sem ocupação.
Gastava o tempo cantando e lendo. Apesar disso, posso afirmar que a relação com
os meninos provocou um salto grande na minha história intelectual. Comecei a
fuçar toda a discografia de Jaime, que incluía muita coisa do rock dos anos
1950 e que eu conhecia apenas esparsamente, por meio das veiculações
radiofônicas. Por outro lado, Carlos me apresentou uma das figuras que mais me
impressionou na época: Tom Waits. Foi um choque quando ouvi pela primeira vez.
SUPERPAUTA – Tom Waits é
realmente diferente de qualquer outra coisa...
ARTEMILSON - Lou Reed foi
outro que me impressionou. Jaime tinha em sua discografia
e me apresentou. O
que me fez ter uma aproximação diferenciada com o grupo foi a minha curiosidade
intelectual e também o fato de eu já tocar violão. Comecei a aprender a tocar
as canções do Gato Lúdico e a levar essas músicas para circuitos fora da minha convivência
com eles. Um desses locais foi o movimento estudantil, ao qual passei a militar
a partir de 1985. Eu era um dos que animavam as rodas universitárias. Então, eu
levava o Gato Lúdico para dentro da história. Nessa época descobri, também na
casa de Jaime Lúcio, grupos análogos ao Gato, como Língua de Trapo e Joelho de
Porco. Com Jaime estabeleci uma relação mais do que de amizade: ele se tornou
uma pessoa da minha família. Ele, inclusive, estabeleceu uma relação familiar
com minha ex-mulher, minha ex-sogra e meus filhos. Jaime Lúcio é o padrinho do
meu filho mais velho. Frequentávamos os lugares juntos. No período entre 1984
até 1995 - quando o Gato Lúdico parou as atividades musicais propriamente ditas
- eu estava no calcanhar deles, inclusive ensaiando algumas composições que
nunca foram mostradas. Chegamos a iniciar uma segunda montagem de “A exceção e
a regra”. Concluímos todas as leituras de mesa. Nessa época Jaime Lúcio era
cenógrafo da TV Universitária, ali na Princesa Isabel. Quando íamos para a fase
das marcações, houve um desacerto no grupo - que envolvia mais gente, como Jorge
Borges, Novenil e Claudio Damasceno - e terminamos desistindo da história. A
partir dessa montagem que não deu certo, me tornei uma espécie de tiete de
luxo, vamos dizer assim, porque além de acompanhar o trabalho do grupo, eu
cantava e tocava as canções.
Foto: Roberto Fontes |
SUPERPAUTA – Não se falou,
naquela época, em você passar a integrar o Gato Lúdico oficialmente?
ARTEMILSON - Nunca
questionamos a formação do Gato em três. Apesar de eu ter uma vontade enorme de
participar de pelo menos uma canção do show, nunca fui contemplado. Mas entendia
perfeitamente, porque a história anterior do Gato, vinda do “Nuvem Verde” e
tal, legitimava esse fechamento do grupo. Ao invés de insatisfeito, eu me
sentia orgulhoso de ser um “gato lúdico debaixo do tapete”. Em 2011 Vicente me
chamou para integrar o Gato Lúdico, mas aí a história é outra...
SUPERPAUTA – Carlos, o nome
Gato Lúdico foi criado para o Festival de Música e Poesia da UFRN?
CARLOS – O nome foi uma
criação de Vicente, então seria melhor que ele falasse sobre isso. Mas, com
relação a esse festival da UFRN, ali foi a primeira aparição formal do Gato
Lúdico como grupo. Antes apenas cantávamos nossas músicas, sempre muito bêbados
e curtindo muito. Era uma grande brincadeira, na verdade. Não havia nenhum
compromisso maior - como hoje, por exemplo, de ensaiar com banda e gravar
disco. Tudo era totalmente intuitivo, lúdico mesmo. Mas essa curtição foi se
transformando em algo mais sério. Depois do festival, resolvemos encarar essa
coisa de grupo mesmo. Na sequência vieram as participações em três Festivais do
Forte.
SUPERPAUTA – Como as pessoas reagiam
ao trabalho do Gato Lúdico?
CARLOS – Nessa época ainda
reverberava como referência de vanguarda da música popular no Brasil o trabalho
dos Secos & Molhados. Isso refletia muito no comportamento dos artistas,
desde os anos 1970. Essa forma vanguardística se transformou na nossa proposta
de participação no festival. A apresentação de “Serelepe” e “Príncipe Augusto”,
no Festival de Música e Poesia da UFRN, detonou essa coisa de grupo no Gato
Lúdico. Também porque a reação das pessoas foi muito interessante. Alguns
levaram cartazes com alusão ao Gato Lúdico e à música “Príncipe Augusto”. Foi
bacana ver o Teatro Alberto Maranhão lotado e as pessoas manifestando suas
preferências e portando faixas e cartazes. Desde essa estreia, o Gato Lúdico
sempre foi um grupo que provocou essa empatia com o público. Até hoje há essa
interação.
SUPERPAUTA – E no Festival do
Forte, como foi?
Foto: Roberta Simões |
SUPERPAUTA – Parecido com esta
nossa entrevista...
CARLOS – Exatamente. Nessa
nossa apresentação, no Festival do Forte, o pessoal foi gostando e pedindo para
que permanecêssemos no palco. E a equipe da organização já louca, com as mãos
na cabeça. A grande atração da noite era Jards Macalé, mas não terminávamos
nosso show.
VICENTE – Isso foi no
segundo Festival do Forte.
CARLOS – Ficamos no palco
cantando e curtindo aquela loucura toda. Resultado: cortaram o microfone e o
som. Foi um rebu! O grupo, a partir de então, se transformou em um ícone
anarquista e vanguardista da inteligência e da arte em Natal. Chegamos a
inspirar poetas e outros artistas. Gato Lúdico virou uma marca muito
interessante que prevalece até hoje. Depois do Festival do Forte houve
apresentações em bares. Foi bacana também, era uma verdadeira romaria que fazíamos
pelos bares.
SUPERPAUTA – Qual roteiro
vocês percorriam?
CARLOS – Casa Velha,
Tirraguso... O Tirraguso, que funcionava onde depois foi o Chaplin, era um
restaurante de uma baiana amiga nossa, Sandra. Ela também havia sido hippie.
Fizemos uma temporada por lá. Movimentou muitos artistas e jornalistas. Teve grande
repercussão. Também frequentávamos, na Praia dos Artistas, as barracas da
Marlene, da Irene e do Seu João. Também íamos muito ao Boliviano, Chernobyl...
Tinha ainda o Vice-e-Versa. Todo esse roteiro o Gato Lúdico fazia cantando e
depois rodando o chapéu. Não tocamos fora do estado, mas estivemos em Mossoró.
SUPERPAUTA – Agora Vicente
vai explicar a escolha do nome e como o grupo de teatro se transformou no Gato
Lúdico.
Foto: Roberto Fontes |
VICENTE – Na verdade, o
grupo de teatro não se transformou no Gato Lúdico. Até hoje consideramos o Gato
Lúdico como um trabalho do grupo de teatro. Mas, de certa forma o grupo acabou
e o Gato Lúdico ganhou independência. Com relação ao nome, Gato tem uma origem
e Lúdico tem outra. A ideia de Gato foi uma alusão não só aquele músico de jazz
famoso, o Gato Barbieri, mas também a um cara que tinha sido guitarrista de
Roberto Carlos, conhecido como Gato. Então, era um nome relacionado a músico
pop. O Lúdico veio das discussões acerca de arte e da ideia da arte como um
jogo ou uma brincadeira. Essa arte lúdica, a arte como um jogo, combinava com
algumas tendências no momento, como por exemplo, o comportamento punk. Em certo
sentido, algumas pessoas entendiam o Gato Lúdico como uma coisa punk, o que não
deixava de ser. O título é uma associação dessas ideias. Além do mais, Gato
Lúdico é um bom nome de banda. Outras bandas da época tinham nomes dos mais
esquisitos, como Língua de Trapo. Uma coisa interessante dentro dessa
associação com punk e a contracultura é que talvez por isso não tenhamos tanto
registro. Nosso projeto era fazermos o estilo “folclore contemporâneo”.
Artemilson contribuiu bastante para isso: para que as ideias, as músicas, as
letras e os poemas fossem sendo divulgadas de boca a boca. Esse foi um dos
motivos pelos quais resistimos durante muito tempo a trabalhar com músicos
profissionais. Nossas performances eram realmente mambembes, improvisadas e
passíveis de todos os tipos de erro. Sinteticamente, essa era a concepção do
Gato Lúdico, mesmo com boa parte das canções contendo um caráter mais
intelectualizado. Outra característica é que usávamos o noticiário na
composição de músicas para cantar naquele dia. A canção era apresentada exclusivamente
naquela ocasião. Existe uma quantidade imensa de músicas que foram feitas e nem
sabemos mais.
SUPERPAUTA – Vocês chegaram a
abrir um show para Aguilar. O que fizeram de mais relevante depois das
antológicas apresentações nos festivais de música da UFRN e do Forte?
VICENTE – O Gato Lúdico
foi convidado para abrir um show de Aguilar, que era um artista visual
importante. Ele veio com um grupo grande. Jaime, que era muito fã de Aguilar, disse
que o nosso show foi muito melhor do que o dele. Outra apresentação interessante
foi a inauguração de um espaço de festas no Clube América. Cantamos ao rés do
chão, junto com a plateia. Foi muito interessante, como também foi em Mossoró.
Lá tivemos experiências muito boas, tanto interpretando Brecht, no teatro
propriamente dito, como nas duas vezes que estivemos lá como Gato Lúdico. Na
primeira tinha uma performance de Jaime escovando os dentes com cachaça.
SUPERPAUTA – E não era truque
cenográfico...
Foto: Roberto Homem |
VICENTE – De maneira
alguma! Ele tirava a dentadura e escovava. A plateia delirava. Costumo contar
essa história assim: tínhamos, digamos, 100 pessoas no começo do show e
terminamos com umas 15. Em uma canção na qual falávamos sobre TV, depois que a música
terminava ficávamos fazendo aquele chiado schiiiiiiiiiii... Era a TV fora do
ar. Descíamos para a plateia e escolhíamos casais. Pegávamos no braço do rapaz
e dizíamos para a moça: “depois a gente fica na sala como se nada tivesse
acontecido”. (risos).
SUPERPAUTA – Qual teria sido
o auge do Gato Lúdico?
VICENTE – Não tínhamos
essa preocupação, mas eu gosto muito da segunda apresentação que fizemos no Festival
do Forte, a que foi interrompida. Foi uma das performances mais fantásticas do
Gato Lúdico. Esse trabalho foi muito bom. De qualquer forma, tanto naquele
tempo como agora o objetivo principal é fazer a festa: ir, cantar, se divertir
e divertir as pessoas. É muito por aí.
SUPERPAUTA – Por que o grupo parou,
em meados dos anos 1990?
VICENTE – Chegamos num
momento em que não dava mais para fazer o folclore contemporâneo, tinha que ser
produzido um trabalho de melhor qualidade. Nós mesmos nos agenciávamos e era
muito complicada essa parte e a logística de contratar músico etc. Ainda
fizemos alguns trabalhos com Rômulo Tavares, com Edinho... Eles é que
arranjavam os outros músicos, mas sempre com muita dificuldade. Fizemos também com
Wycliffe, que dirigia uma banda de adolescentes lá no Sesi. Mas era muito
complicado. Por outro lado, chegou um momento, no final dos anos 1990, que eu
resolvi fazer doutorado. Nessa época a coisa do grupo já estava meio diluída. Para
completar, tivemos uma decepção grande com o projeto de um disco que nos foi
prometido por uma agência cultural de Natal. Quando apresentamos o orçamento –
que na época girou em torno de R$ 16 mil (hoje seria muito mais barato) – eles
ofereceram uma ajuda de 500 reais. Vai pra porra, né? Dessa forma, adeus Gato
Lúdico, vamos parar. Voltei para as minhas pinturas, meus desenhos e fui fazer
doutorado. É bom dizer que paramos com as apresentações, mas continuamos
cantando e até compondo, nesse intervalo.
SUPERPAUTA – E você, Carlos,
o que tem a dizer sobre a interrupção dos trabalhos do Gato?
CARLOS – Vicente se
voltou para a universidade, para o doutorado e para o trabalho de
artes
visuais. Jaime estava envolvido com o problema do álcool, o que prejudicou
muito as atividades dele como artista. Ele se acomodou, ficou sem iniciativa de
fazer qualquer coisa, de seguir à frente. Eu me voltei para a universidade, onde
ainda trabalhava. Ainda tentamos fazer teatro, fizemos dois monólogos. No
segundo, procuramos fazer com que o grupo mantivesse sua atividade. Mas era
difícil, principalmente por conta dos problemas de Jaime com o álcool. Isso deu
uma refluída tanto no trabalho de teatro como no de música. No último monólogo que
fizemos, “O primeiro milagre do Menino Jesus”, teve a participação em cena do
Gato Lúdico. Eu interpretava, Vicente tocava violão e Jaime também participava.
Nós três estávamos em cena. A música era ao vivo, e era Gato Lúdico. Foi no
Solar Bela Vista. O texto era de Dario Fó, com algumas partes musicadas pelo
Gato Lúdico. A rigor foi o último trabalho onde havia Nuvem Verde e Gato Lúdico
juntos. Depois disso veio o último trabalho do Gato Lúdico, especificamente: o
show “Zoom na zona”. Foi produzido por Augusto Lula e Danielle Brito, no Bar do
Buraco. Nessa apresentação tocamos com Edinho, Pereirinha na bateria e um rapaz
chamado Júnior, no baixo. Isso foi em 1996.
Foto: Fabiana Bagdonas |
SUPERPAUTA – Em quais
circunstâncias se deu o retorno do Gato Lúdico?
ARTEMILSON – Depois de
adormecido desde 1996, o grupo voltou em 2011. Como Vicente disse, entre 1996 e
2007 – até a morte de Jaime - sempre nos reuníamos e cantávamos muito. Mas sem perspectiva
de retorno. O próprio Jaime, digamos assim, desprezava a ideia de volta. Em
2011, Carlos Gurgel foi convidado para selecionar as atrações que se
apresentariam na comemoração do Dia da Poesia, organizada pela Fundação José
Augusto. Gurgel ligou para Vicente Vitoriano dizendo que queria resgatar alguns
grupos das décadas de 1980 e 1990, entre eles o Gato Lúdico e o Grupo Escolar,
de Marcelus Bob. Vicente tinha passado por um problema coronário, estava em
repouso absoluto. Ele ligou pra Carlos e para mim. Ele disse que só toparia
voltar o Gato Lúdico se fosse com Carlos e um terceiro integrante. “E eu não
vejo outra pessoa que não seja você, Artemilson, para ser o terceiro componente
do grupo”. Fiquei morto de feliz. Eu respondi: “vamos e vamos”. Vicente explicou
que não poderia participar de ensaios, mas começamos a nos reunir. Chamei
Claudio Damasceno, que sempre foi muito ativo com o Gato Lúdico. Eu estava
próximo de um trio muito bom que tocava na Choperia Atheneu: Paulo Brunis,
Ranier Alves e John Fidja. Propus a Vicente e a Carlos que, ao invés de irmos
só nós, convidássemos esses músicos. Tinha um cachê básico, de 500 reais, que a
Fundação nos dava. A apresentação era simples, apenas cinco canções. Carlos e
Vicente foram logo de acordo. Fizemos dois ensaios acústicos na minha casa e
depois fomos para um estúdio, quando Vicente voltou do repouso. Dessa forma
fizemos a aparição do Gato Lúdico, despretensiosamente, no Teatro de Cultura
Popular, no Dia da Poesia.
SUPERPAUTA – O show deve ter
agradado, pois depois dele vocês se apresentaram várias outras vezes...
Foto: Roberto Fontes |
ARTEMILSON – Quando acabamos
de tocar, mil propostas choveram para retomar o Gato Lúdico. Mas não dependia
de mim. Como integrante novo, eu sempre tive muito claro de que decisões dessa
monta só podiam ser tomadas pelos dois. E eles não descartaram a ideia,
contanto que houvesse alguém para agenciar o Gato Lúdico. Eu falei que tinha
alguém que poderia fazer esse trabalho, o Nelson Rebouças, que ficou
maravilhado e na mesma hora colocou seu conhecimento a serviço. Fizemos um
segundo show, que ficou marcado como o show do retorno mesmo: “Skull amb action
society”. Foi no Circuito Ribeira, na Casa da Ribeira. Durante o show, fizemos
uma homenagem a Jaime Lúcio. Cunhamos notas de cem dólares e substituímos a
efígie de Benjamin Franklin por uma foto bem anarquista de Jaime Lúcio. Tocamos
a canção “Mais valia”, ou “Vale tudo”, que nunca tinha sido interpretada em
show. Ela critica o capitalismo, foi composta na época de criação dos
movimentos “Tea Party” e “Ocupe Wall Street”. No final do show, Carlos ficava
declamando um texto de Brecht no palco, enquanto eu e Vicente descíamos e
distribuíamos notas de cem dólares com a cara de Jaime Lúcio, e dizíamos para
cada espectador: “compre o mundo”. A partir daí fizemos vários shows, como no
lançamento da revista do Circo da Luz, a convite de Racine Santos; em eventos
como a XVIII Cientec, XV Enearte, Expotec 2011 e voltamos a tocar no TCP com
cachê garantido. Antes de estrearmos na Ribeira, fizemos duas aparições no Café
da Ribeira, num projeto chamado Poesia Esporte Clube, do professor Ruy Rocha.
SUPERPAUTA – No Youtube está
disponível uma apresentação completa do grupo, realizada no 7º MPBeco. Ela pode
ser acessada no link http://www.youtube.com/watch?v=pKWTkmnR0mU
ARTEMILSON – Esse show foi
classificado pelos diretores do MPBeco como um dos três melhores de todas as
edições daquele festival. Esse vídeo disponível na Internet foi gravado pela
própria organização do evento. A nosso pedido, Vlamir Cruz gravou o áudio da
apresentação em canais separados, com a intenção de lançarmos um CD ao vivo.
Infelizmente, apesar de todo o esforço de Vlamir, houve alguns probleminhas técnicos
e não conseguimos salvar todas as músicas. Escolhemos cinco, fizemos pequenos
retoques no estúdio Ícone e lançamos o EP “Extended”.
SUPERPAUTA – Como os fãs do
Gato Lúdico, podem adquirir esse trabalho?
Foto: Roberto Homem |
ARTEMILSON – Está à venda no
Sebo Balalaika, no sebo de Vicente Januário, e Nélson Rebouças comercializa
também em todo evento que produz. Mas, sobre esse retorno, ele se reveste de
uma história mais diferenciada. Não deixamos de ter essa condição teatral, pela
própria performance de palco do grupo, mas hoje o Gato Lúdico tem um peso
musical muito maior. Fazemos a performance muito mais em torno da proposta
musical do que da proposta teatral. Mas sem deixar de lado uma ideia que está
na canção com a qual costumamos abrir nossos shows:
“Nós
não fazemos onda / Não fazemos rock / Não fazemos reggae / Não fazemos brega /
Não fazemos Brecht / Nós fazemos gênero / É ótimo fazer gênero / Gênero rock /
Gênero reggae / Gênero brega / Gênero Brecht / Nós não fazemos onda / Não somos
uma banda / Não somos uma lenda / Se nós abrimos fendas / Se nós rasgamos
vendas / Nós fazemos gênero / É ótimo fazer gênero / Gênero banda / Gênero
lenda / Abrindo fendas / Rasgando vendas”.
A
ideia é que ali estão três atores, acompanhados por um grupo de músicos. Nos
últimos shows, participaram conosco Franklin Nogvaes nos teclados, Wagner Tsé
na bateria, Júlio Lima no baixo e Fabão, integrante do Boca Seca, na guitarra.
Enquanto eles tocam, nós fazemos gênero. Imitamos uma banda que também não é exclusivamente
de rock, nem de reggae e nem de brega, porque nós cantamos do carimbó, passando
pelo reggae e o rock, ao rockabilly. Não temos filiação rítmica, nem de gênero
musical. Recentemente fizemos um ótimo show em frente ao Bar de Nazaré, durante
o festival gastronômico do Beco da Lama. A energia do público estava ótima,
contribuindo para que a apresentação fosse leve e despojada. Quando lançamos o
EP no Teatro Alberto Maranhão, tentamos gravar um DVD. Temos todas as imagens,
mas não classificamos como um material que possa se transformar num DVD. Talvez
uma ou outra canção possa ser editada e transformada em clipe.
SUPERPAUTA – O que esperar do
Gato Lúdico nesses tempos que virão?
Foto: Roberto Homem |
CARLOS – Gato Lúdico e o
futuro... (Risos). Quando éramos apenas três rapazes ébrios com um violão, era
uma coisa muito bacana e interessante. O Gato Lúdico atualmente, século XXI,
com uma banda, também é muito bacana e interessante. Mas, particularmente, não
sei onde vai dar isso. Eu, enquanto artista, gostaria muitíssimo de dar vazão a
essa expressão, a esse projeto bacana. Acho interessante unir música com
teatro, com poesia. É algo que tem futuro. Mas não sei se o Gato Lúdico vai
encarar esse futuro. Quando o Gato Lúdico era aqueles três rapazes e tal, tudo
bem. Hoje, com banda e tudo o mais, gravando CD e DVD, eu me sinto um pouco
assustado. Nossa, meu Deus: como é complicado isso de ir para estúdio, ter que
tocar com a banda... É um negócio complicado, mas possível. Não descarto o que
possa vir pela frente.
ARTEMILSON – Para mim nós só vamos
parar quando lotarmos Wembley. (Risos).
VICENTE – Sobre esse
assunto, eu quero recitar um poema que é musicado e pode ser que incluamos nos
nossos próximos repertórios.
“Você
pode me dizer? / Diga-me coisas que eu já sei / Para que eu as saiba novas e
desconhecidas / Coisas desaparecidas da minha cabeça sem peruca e sempre
grávida / Sempre louca e sempre ávida de loucura / Cabeça dura, tanto bate até
que fura / Futuro? Ah, amanhã eu não sei”.
SUPERPAUTA – Vocês vivem apenas
da arte ou têm outras atividades?
CARLOS – Eu não ganho
dinheiro como artista. Como artista eu só tenho reconhecimento e fama. Mas,
para sobreviver, é outra história, é outra coisa. Eu sou artista gráfico:
trabalho com artes gráficas e sou também radialista. Para viver, eu trabalho,
faço minhas coisas - independente de emprego, de função ou de qualquer
convenção. Então, arte para mim não é luxo, é necessidade. Agora, viver da arte
realmente é complicado. Acho que é difícil. Talvez só Vicente Vitoriano consiga
viver de arte.
VICENTE – Eu vivo em torno
da arte. Eu não diria que ganho dinheiro da arte, eu recebo de vez em quando
alguma coisa. Eu sou professor da Universidade e não conseguiria de jeito
nenhum largar esse emprego para sobreviver apenas da arte. Não conheço artistas
que tenham estabilidade material por conta só de sua arte. Gostamos de pensar
que Assis Marinho e Doryan Gray Caldas, por exemplo, fazem isso. Mas são
situações muito extremas, eles representam grandes exceções.
ARTEMILSON – Vicente vive em
torno da arte, Carlos não vive da arte. Eu acho que vivo
na arte, porque educar
é uma arte, você se equilibra. Viver arte é viver em equilíbrio, tentando
equilibrar-se constantemente. O educador tenta se equilibrar o tempo inteiro. E
não é no sentido financeiro que estou falando, mas no sentido existencial.
Financeiramente eu me resolvo porque também sou funcionário público. Há 22 anos
sou do Instituto Federal e, na verdade, se for pesar se ganhamos dinheiro com a
arte, gastamos é mais dinheiro. Viver da música - como fazem Pedro Mendes,
Geraldo Carvalho, Romildo Soaress, a própria Khrystal, e outros – é uma luta
diária, é uma tarefa de Sísifo. A pessoa tem que rolar a pedra até o topo do
cume e depois a pedra desce e ela tem que levantar de novo essa pedra. Isso é
um exercício diário. No nosso caso, temos desembolsado para poder cantar.
Muitas das coisas aconteceram porque seguramos a peteca.
Foto: Fabiana Bagdonas |
SUPERPAUTA – O que o motiva a
gastar dinheiro para cantar?
ARTEMILSOM – A catarse que é
subir num palco. Carlos sabe muito bem disso, porque ele é de muitos palcos. É
incrível a sensação de subir num palco depois de ter feito tanto esforço para
preparar aquele espetáculo. Durante o show, incorporamos aquela entidade. Ao
final, você desce de lá com aquela entidade ainda se desmanchando. Nessa hora
não existe questão material ou dinheiro. A resposta do público, o contato com
os fãs, isso nos motiva.
VICENTE – Nesse espetáculo
que fizemos para o lançamento do EP, os músicos todos estavam vestindo uma
camiseta com um preço R$ 1,99. Era alusão a esse baixo retorno financeiro que
tem o artista, principalmente da música. Não é uma coisa fácil.
SUPERPAUTA – Chico Science
tem uma canção que diz “Os computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”.
Isso tem algum sentido?
VICENTE – Tem, mas é o
inverso. Os artistas continuam fazendo a arte com a ajuda dos computadores.
ARTEMILSON – E os
computadores tem feito cada vez mais dinheiro.
CARLOS – Artista para
fazer dinheiro, só o Mick Jagger mesmo.
SUPERPAUTA – Obrigado, gente!
Foto: Roberta Simões
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Boa entrevista, parabéns Roberto Homem e rapaziada do Gato Lúdico que cheguei a ver uma de suas apresentações no Tirraguso entre outros da década de oitenta como Raul (ALCATÉIA MALDITA)
ResponderExcluirSérgio Almeida (via Facebook)
Quem quer saber tudo sobre o Gato Lúdico, é só ler esta entrevista. Ela está completa, não faltou nada. Vi falar muito nesta banda, mas só agora ser toda sua história, de quem faz parte e de quem está fazendo. parabéns Roberto pela bela entrevista.
ResponderExcluirMais uma grande entrevista!
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