Encontros Impossíveis
O mistério atrás da porta
Na penumbra de um Rio de Janeiro atemporal, Clarice fala sobre a guerra na Ucrânia, as cicatrizes do fogo, a recusa ao feminismo de rótulo e a fome de Macabéa.
“Sou tão misteriosa que não me entendo” — Clarice Lispector
O Rio de Janeiro lá fora insiste em ser solar,
barulhento, vivo. Mas aqui, neste apartamento no Leme que parece flutuar entre
o passado e o agora, o tempo é uma substância espessa. O ar cheira a cigarro e
a um perfume antigo, algo como madeira e flores secas. Há uma tensão
silenciosa, como se o ambiente estivesse prestes a quebrar.
Venho de um encontro leve com Fernando Sabino,
amigo íntimo desta mulher que agora me encara. Se Sabino era o abraço do Rio,
Clarice é o abismo. Ela está sentada na poltrona, protegendo a mão direita —
marcada por um incêndio trágico — com um xale sutil. Seus olhos amendoados,
levemente felinos, não me convidam; eles me interrogam. Há uma máquina de
escrever Olympia sobre a mesa e, ao lado, um maço de cigarros pela metade.
Ela não sorri, mas também não é hostil. É apenas...
intensa. Como se estivesse tentando decidir se sou uma visita ou um personagem
que ela precisa decifrar. “Eu sou tão misteriosa que não me entendo.” — a frase
ecoa antes mesmo de começarmos. Respiro fundo. Entrar no mundo de Clarice
Lispector exige coragem.
SuperPauta: Clarice, em que instante exato Chaya Pinkhasovna Lispector deixou de existir para que Clarice começasse a respirar?
Clarice: (Traga o cigarro e solta a fumaça lentamente,
criando uma névoa entre nós) Não sei se foi um instante ou um processo de
esquecimento. Chaya... Chaya é um nome que carrega o peso da fuga. Nasci na
Ucrânia, em Chechelnyk, durante uma pausa na viagem de emigração dos meus pais,
fugindo dos pogroms, da perseguição aos judeus. Chaya ficou lá, ou talvez tenha
morrido no navio. Clarice nasceu aqui, tentando desesperadamente pertencer a
este chão tropical. Mas sinto que as duas respiram até hoje, meio desalinhadas,
como duas mulheres tentando caber num corpo só. Sou feita dessa falha de encaixe.
SuperPauta: Hoje, quase meio século após sua partida, a terra onde a senhora nasceu, a Ucrânia, está em guerra, assim como a região de seus ancestrais em Israel e Gaza. Como a menina que fugiu da violência olharia para o mundo atual?
Clarice: (Seus olhos ficam úmidos e ela desvia o olhar
para a janela, onde o mar bate surdo) Com o mesmo espanto antigo. A guerra não
muda, meu filho. A guerra é a falência da palavra. Meus pais vieram fugidos,
com a fome no estômago e o medo nas costas. Eu vim bebê, mas a memória da fuga ficou
no leite que tomei. Ver o mundo se dividindo novamente, ver gente morrendo por
terra, por deus ou por nada... é sentir que a raiz humana está podre. A
tecnologia avançou, fomos à Lua, temos essa "rede" que conecta tudo,
mas a fome de matar o "outro" continua intacta. Isso me dá um cansaço
de séculos.
SuperPauta: Ainda sobre essas marcas iniciais: consta que a
senhora começou a escrever muito cedo, não por vaidade, mas por necessidade.
Qual é a primeira memória desse impulso que ainda lhe causa vertigem?
Clarice: O quarto de minha mãe. Ou talvez não o quarto… o
silêncio do quarto. Ela estava doente, morrendo aos poucos, e eu... eu falava
para curá-la. Eu inventava histórias, acreditava nelas mais do que na
realidade. Achava que se eu contasse a história certa, ela não morreria. E
quando percebi que a palavra não podia salvar ninguém — aí veio a vertigem. É
estranho: a dor desse momento me formou. Mas também me empurrou para algo maior
do que eu podia suportar. É uma vertigem antiga. Ainda me roda.
SuperPauta: Então o luto pela sua mãe moldou seu silêncio ou
seu grito?
Clarice: Moldou meu grito, mas um grito mudo. Escrevi para
não morrer do silêncio dela. Talvez toda a minha obra seja uma tentativa —
falha — de dar voz ao que eu perdi ali, naquele quarto.
SuperPauta: Se pudesse
falar com seu eu de cinco anos, o que diria?
Clarice: “Não tenha
pressa de entender.” Entender é o fim. Talvez eu dissesse também: “Brinca mais,
menina. Se suja.” O futuro é apenas passado com mais peso. E a angústia… essa a
gente aprende a usar como tinta.
SuperPauta: A senhora cresceu no Nordeste, entre Maceió e
Recife. O que aquela infância lhe revelou sobre a brutalidade e a beleza?
Clarice: Que são a mesma coisa... mas isso eu só entendi
depois. A galinha viva no quintal era bonita. A morte dela para o almoço de
domingo, brutal. E eu comia. Eu existia no meio das duas coisas. O Nordeste não
é suave, o Recife não era macio. Era uma luz dura, uma verdade crua. A pobreza
que vi nas ruas, os mocambos... aquilo me vacinou contra o excesso de doçura.
Aprendi cedo que viver é esse fio tenso entre a náusea e o êxtase.
SuperPauta: Essa sensação de não pertencer totalmente a lugar
nenhum... Ser estrangeira na própria vida é destino ou escolha?
Clarice: Destino, talvez. Mas tem uma parte que é escolha,
sim… não escolha consciente, dessas de levantar a mão. É uma escolha do corpo,
do jeito como se sente o mundo. Sempre me senti um pouco traduzida. E traduções
nunca são fiéis. Mas… ao mesmo tempo, ser estrangeira também me deu liberdade.
A gente que não pertence pode circular entre as coisas. Eu circulo.
SuperPauta: Antes de partir para o exterior, em 1944, a senhora passou um período em Natal, esperando transporte, num hotel que chamou de “horrívelzinho”. O que aquele trecho interrompido da vida lhe revelou? Clarice: Ah, Natal… sim, aquele hotel. Não tenho boas lembranças, não. Foi uma espera longa — uma espécie de suspensão. Eu estava de passagem, mas a passagem demorou mais do que eu queria. A cidade… talvez eu não tenha sabido recebê-la, e ela também não soube me segurar. Às vezes um lugar não coincide com o nosso tempo interno, e aí tudo fica torto. Em Natal eu senti um cansaço existencial, uma espécie de desalinho entre mim e o mundo. Um intervalo que me revelou que, mesmo no Brasil, eu podia ser estrangeira de novo. E isso doeu. Mas ensinou.
SuperPauta: Pouca gente sabe que a senhora se formou em
Direito e chegou a trabalhar em prisões, além de ter sido voluntária como
assistente de enfermagem na FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a
Segunda Guerra. O que viu ali, entre feridos e presidiários, que a literatura
não contava?
Clarice: Vi que o corpo não mente. No hospital da FEB,
cuidando dos nossos soldados que voltavam, não havia metáfora. Havia pus,
febre, delírio e gente jovem mutilada. Eu queria ajudar, passava batom para
animá-los, escrevia cartas para eles, mas me sentia inútil diante da dor física
real. Ali eu entendi que a literatura tem um limite. Diante da carne aberta, a
palavra é um luxo. Isso me deu humildade. E me deu, também, uma certa raiva de
quem faz literatura enfeitada. A vida é sangue e matéria.
SuperPauta: Depois disso, a senhora viveu anos no exterior —
Suíça, Estados Unidos — acompanhando seu marido diplomata. Mas suas cartas a
amigos como Fernando Sabino e Rubem Braga revelam uma angústia profunda. Por
que era tão difícil ser apenas "a esposa do diplomata"?
Clarice: Porque a etiqueta diplomática é uma máscara de
gesso. E eu sufocava. (Ela alisa o tecido da saia, impaciente). Eu tentava,
juro que tentava. Organizava jantares, sorria, usava as luvas certas, aprendia
a não falar o que pensava. Mas, por dentro, eu estava vendo a "coisa"
pulsando. Eu olhava para uma embaixatriz e via a solidão dela, via o esqueleto.
Como conversar sobre o clima quando você vê a alma da pessoa gritando? Eu me
sentia uma espiã infiltrada num mundo de aparências. Escrevia para o Fernando
pedindo o Brasil, pedindo uma máquina de escrever suja de tinta, pedindo a
desordem. O luxo de Berna e Washington nunca preencheu meu vazio. Era uma
prisão de veludo.
SuperPauta: Nessas cartas, a senhora pedia afeto de forma
quase infantil. A ‘Clarice Monstro Sagrado’ era, antes de tudo, uma pessoa
solitária?
Clarice: (Suspira fundo, a fumaça sai densa) O
"monstro sagrado" foi uma invenção dos críticos e dos leitores para
não terem que lidar comigo como gente. É mais fácil idolatrar uma estátua do
que conviver com uma mulher cheia de falhas. Sim, eu era solitária.
Terrivelmente. Eu pedia afeto como quem pede pão. As cartas eram meu cordão
umbilical com o Brasil e com a sanidade. Eu me sentia estrangeira em tudo, e os
amigos — Fernando, Cabral, Rubem, Érico — eram minha pátria. Mas, no fundo, a gente
nasce e morre só. A escrita é a única ponte que às vezes, só às vezes,
atravessa esse abismo.
SuperPauta: Nosso penúltimo entrevistado, seu grande amigo Fernando Sabino, dizia que “no fim dá tudo certo”. A senhora, que olhou tão fundo nos abismos da alma humana, concorda com esse otimismo dele?
Clarice: (Esboça um meio sorriso, quase maternal) Fernando... O Fernando era um
menino que se recusava a envelhecer. Ele tinha a graça da leveza. Eu o
invejava, às vezes. O Deus dele era gentil. O meu... o meu é urgente. Para mim,
não é que "dá certo". É que "é". As coisas são. A barata é,
a dor é, o amor é. Aceitar que não há final feliz, mas apenas a continuidade
brutal e bela da vida... talvez seja a minha forma de otimismo. Mas é um
otimismo doído.
SuperPauta: A senhora sempre foi considerada uma mulher
belíssima, comparada a atrizes de cinema. Mas, em 1966, um incêndio no seu
quarto — provocado por um cigarro e um sonífero — deixou marcas profundas em
seu corpo e em sua mão direita. Como foi fazer as pazes com o espelho depois
disso?
Clarice: (Ela olha para a mão cicatrizada sobre o colo,
acariciando-a levemente com a outra mão) Nunca fiz as pazes. Fiz uma trégua
armada. Eu era vaidosa, sim. Gostava de ser admirada, gostava das roupas, da
imagem. O fogo... o fogo veio para tirar o supérfluo. Foi o meu inferno
pessoal. Quase morri, fiquei dias entre a vida e a morte, e uma parte da minha
vaidade morreu ali naquelas chamas. A dor das queimaduras... não há adjetivo
para isso. Depois, precisei aprender a viver com as marcas, a esconder as
pernas, a proteger a mão. Deixei de ser a "estátua" e me tornei
apenas humana. Dolorosamente humana. A beleza virou algo interno, porque o
externo foi violado.
SuperPauta: Mesmo com essa densidade, a senhora escreveu
livros infantis. Era uma fuga?
Clarice: Era um descanso! Um intervalo de luz. Escrever
para crianças — e para bichos, porque me entendo melhor com eles do que com
gente — era me permitir brincar. No mundo infantil não há culpa, não há esse
intelecto torturado que analisa tudo. Há curiosidade pura. Eu precisava dessa
trégua. A Vida Íntima de Laura (a galinha) sou eu rindo de mim mesma.
SuperPauta: Clarice, a senhora sempre rejeitou o rótulo de
"escritora feminista", embora suas personagens mulheres sejam as mais
complexas da nossa literatura. Hoje, isso gera debate. Por que essa recusa?
Clarice: (Ri, um riso curto e seco) Que debatam. Eu não
escrevia para agradar movimentos. Veja, eu não sou uma "escritora
mulher". Eu sou uma pessoa que escreve. Dividir a literatura em gavetas de
gênero me parecia diminuir a universalidade da alma. A dor não tem sexo. A
angústia de existir não é masculina nem feminina. Claro que sofri as amarras de
ser mulher — o casamento, as cobranças, a "doce burrice" que
esperavam de nós. Mas eu queria atingir o humano, o "isso". O rótulo
me limitava. Eu queria a liberdade total, e o feminismo da época, às vezes, me
parecia outra forma de prisão ideológica ou sectária. Eu lutei sendo, não
militando.
SuperPauta: Vamos falar da sua escrita, que muitos consideram difícil. Suas histórias muitas vezes não têm começo, meio e fim tradicionais. Em A Paixão Segundo G.H., uma mulher passa o livro todo dentro de um quarto olhando uma barata esmagada. O leitor médio se assusta. Por que romper com a narrativa?
Clarice: Porque a vida não tem enredo! A vida não é um
romance linear. A vida é um fluxo, um susto, um tropeço. Eu não queria contar
uma historinha para entreter. Eu queria capturar o instante. G.H. não é sobre
uma barata. É sobre o momento em que a civilização falha. A barata é a vida
pré-histórica, imunda e viva, que nos olha de volta. Quando G.H. come a massa
branca da barata, ela está comungando com o real, sem máscaras. Quem busca
lógica em mim, perde o melhor: perde a sensação.
SuperPauta: O medo da loucura transparece em muitas linhas.
Escrever a protegia ou a empurrava para o abismo?
Clarice: As duas coisas. Escrever é caminhar na beira do
abismo. Havia dias em que eu sentia que, se escrevesse mais uma palavra
verdadeira, eu quebraria. Eu me desintegraria. Mas se eu não escrevesse... eu
sufocava. A literatura foi minha corda bamba. O medo da loucura sempre esteve
lá, rondando. Talvez por isso eu tentasse me agarrar ao trivial, ao fazer
feira, ao cuidar dos filhos, ao ter horário para o jornal. O cotidiano era
minha âncora para não voar para longe demais.
SuperPauta: Em A Hora da Estrela, sua última obra publicada
em vida, a senhora cria Macabéa, uma nordestina faminta, feia, virgem e que
comia cachorro-quente. Muitos viram ali uma denúncia social. Quem era Macabéa
para você?
Clarice: Macabéa era eu. Sem o verniz, sem a cultura, sem a
proteção do dinheiro. Macabéa era a minha pureza perdida e a culpa do Brasil.
Eu a amei desesperadamente enquanto a matava no papel. Ela não sabia que era
infeliz, e isso é de uma crueldade e de uma beleza insuportáveis. O Brasil está
cheio de Macabéas. Gente que vive sem saber que vive, que pede desculpas por
ocupar espaço. Eu queria gritar por ela. Rodrigo S.M., o narrador do livro, sou
eu tentando suportar a culpa de fazer arte num país de famintos.
SuperPauta: O que as mulheres do seu tempo não entenderam sobre Macabéa?
Clarice: Elas
tiveram pena. E a pena é uma forma de cegueira. Macabéa não se pensava infeliz,
e isso confundiu muitas mulheres da época. Elas queriam vê-la como vítima — e
ela era —, mas era também algo mais difícil de aceitar: pura. Uma pureza que
não vem da inocência consciente, mas da ignorância luminosa. Macabéa não sabia
que era trágica, e isso a tornava… livre, de um jeito doloroso. Eu a amei com
amor e com inveja. Porque ela vivia sem a tortura da autoconsciência. E poucas
pessoas suportam admitir que a ignorância pode ser uma espécie de graça. Eu
mesma nunca tive essa graça.
SuperPauta: A senhora trabalhou muito tempo na imprensa,
escrevendo crônicas e até colunas femininas sob pseudônimo para ganhar
dinheiro. O jornalismo atrapalhou ou ajudou a literatura?
Clarice: Ajudou a pagar as contas (sorri de canto). E me
ensinou a comunicação direta. Na coluna feminina, eu dava conselhos sobre
cremes e maridos fingindo ser quem não era... era divertido e humilhante ao
mesmo tempo. Mas na crônica de sábado, no Jornal do Brasil, ali eu podia
conversar. Descobri que falar simples é o mais difícil. O jornal me manteve
conectada às pessoas comuns, aos taxistas, às donas de casa. Isso foi vital
para não me perder no hermetismo.
SuperPauta: O que é o "Instante" que a senhora
tanto perseguiu?
Clarice: O Instante é o "já". É o momento em que
o ovo quebra. É quando você olha para uma coisa e a vê pela primeira vez,
despida de nome. É um relance de divindade ou de horror. É tão rápido que a
memória falha em segurar. Eu escrevia para tentar prender o Instante na página,
como quem tenta prender um pássaro com as mãos nuas. Quase sempre ele escapava,
e ficava só a pena.
SuperPauta: A página em
branco lhe dava pavor ou prazer?
Clarice: Pavor. Um
medo físico. O branco é o nada — e eu tenho medo do nada. Quando a palavra vem,
aí sim, um lampejo de êxtase. Mas antes disso… é como ficar diante de um abismo
que me chama. Eu não sei se quero cair ou recuar. A escrita é esse vacilo.
SuperPauta: A senhora dominava
a linguagem ou era devorada por ela?
Clarice: No começo
eu quis dominar. Fazer bonito. Depois percebi que a linguagem é bicho – e eu
era a presa. Naquele tempo, a escrita me devorava inteira, e eu a deixava. Com
o passar dos anos fui entendendo que eu era apenas o corpo por onde a frase
passava. Quando releio o que escrevi – e releio como quem toca algo estrangeiro
– sinto que não fui eu. Era uma parte minha que eu nunca alcancei. Talvez a
melhor parte.
SuperPauta: O silêncio fala mais que a palavra?
Clarice: O silêncio…
ah, o silêncio. Ele é a língua que eu mais entendo, embora finja que domino
outras. A palavra é uma tentativa de aproximação, um contorno torto. O silêncio
é o centro. A palavra é só a borda. Quando escrevia — e até quando não escrevia
— eu percebia que tudo o que realmente importa está justamente no que não
consegui dizer. O que está escrito é sombra; o silêncio é o corpo. O silêncio
não explica, não seduz, não argumenta. Ele é. Ele se impõe. E ele, muitas
vezes, dói. Porque no silêncio a gente escuta o que não queria ouvir: o medo, a
memória, o desejo, a verdade sem maquiagem. O silêncio é a matéria-prima do
indizível. E talvez seja por isso que eu o perseguia tanto: para ver se,
cercando-o com palavras, eu conseguia tocá-lo sem machucar — ou sem me
machucar. Mas ele sempre escapou. E, escapando, ensinou.
SuperPauta: Já odiou
escrever?
Clarice: Sim. Muitas
vezes. E não tenho orgulho disso — mas também não tenho vergonha. O ódio vinha
porque escrever me rasgava. Porque exigia de mim coisas que eu não queria dar.
Porque me obrigava a olhar para dentro quando eu só queria um copo d’água e um
descanso do mundo. Eu odiava escrever quando queria simplesmente viver. Ser
comum. Ser tola. Ser feliz de um jeito simples. Mas o papel me chamava, como se
houvesse uma dívida. E, ao mesmo tempo, enquanto eu odiava, eu precisava. O
ódio e a necessidade conviviam, se mordiam, se abraçavam. Eu era escrava da
frase que ainda não existia. E, no fim, mesmo odiando, eu sentava e escrevia.
Como quem volta para uma casa que fere, mas também salva.
SuperPauta: Escrevia
para ser lida ou para se salvar?
Clarice: Eu escrevia
para respirar. Para não morrer afogada em mim mesma. Escrever era um ato de
sobrevivência — como abrir uma janela em uma sala onde falta ar. A leitura veio
depois. O leitor sempre foi um milagre, mas nunca a origem. Se eu estivesse
condenada ao silêncio absoluto, teria escrito mesmo assim, talvez em
guardanapos, talvez nas paredes, talvez apenas dentro de mim. Não escrevi para
ser compreendida. Escrevi porque, sem escrever, eu implodiria. E quando alguém
me lia… bom, aí acontecia outra espécie de milagre. Dois solitários se
reconhecendo. Mas o impulso inicial sempre foi a urgência de existir.
SuperPauta: Qual objeto
do cotidiano melhor traduz seu processo criativo?
Clarice: A máquina
de escrever — aquela velha, pesada, barulhenta. A que não perdoava um erro, a
que fazia a casa inteira ouvir quando a frase nascia. Porque escrever não é sopro,
não é leveza: é trabalho de ferreiro. É golpear o invisível até virar forma. A
máquina me lembrava que a literatura não vem do ar, mas do esforço. Das
madrugadas. Do cansaço. Do medo. Do corpo curvado. A tecla batendo é uma
espécie de martelo: martela-se a alma para que o texto apareça. E eu confiava
nesse barulho. Era quase uma companhia. Talvez por isso eu nunca tenha
conseguido escrever direito em silêncio absoluto: eu precisava ouvir a luta.
SuperPauta: Onde começa a sua verdade? No pensamento, no corpo ou no vazio?
Clarice: No corpo.
Sempre no corpo. O pensamento mente, argumenta, constrói explicações elegantes
demais para serem verdadeiras. O corpo não tem diplomacia: ele treme, arrepia,
adoece, recusa, deseja. O corpo diz a verdade antes que a mente consiga
disfarçar. E o vazio? Ah… o vazio é o lugar onde a verdade mora, mas onde quase
ninguém tem coragem de entrar. O vazio é o território do essencial, mas também
do perigoso. Eu me aproximei dele muitas vezes — mais do que seria sensato. E
talvez por isso eu tenha escrito o que escrevi: para tentar dar bordas ao vazio
sem cair nele inteira.
SuperPauta: Hoje, vivemos na era da exposição total. Todos
têm uma câmera na mão, todos publicam suas vidas. O mistério acabou?
Clarice: O mistério se escondeu envergonhado. Há muito
barulho, muita "eu-foria". As pessoas mostram o prato de comida, mas
escondem a fome da alma. Escrevem para serem vistas, não para verem. Tudo é
vitrine. Mas o mistério... ah, ele é paciente. Ele espera no silêncio. Quando a
tela apaga, quando a bateria acaba, o ser humano continua sozinho no escuro do
quarto com sua angústia ancestral. E aí, não há like que salve. O mistério não
morreu, só ficou mais solitário.
SuperPauta: Qual é o Deus de Clarice Lispector?
Clarice: Não é o Deus das barbas brancas e dos
julgamentos. É o Isso. A energia neutra e viva que move as estrelas e as
baratas. Um Deus que cria e destrói com a mesma indiferença sagrada. Eu o
busquei a vida inteira, às vezes com raiva, às vezes com gratidão. Ele está no
silêncio entre duas notas de música.
SuperPauta: Se pudesse enviar um telegrama urgente para os
jovens brasileiros de hoje, o que estaria escrito?
Clarice: "Parem. Desliguem. Olhem. Sintam. Não se
tornem robôs. Socorro. Clarice."
SuperPauta: Para encerrar, Clarice. A senhora passou a vida
tentando decifrar a morte. Daqui de onde a senhora nos fala, ela ainda lhe
assusta?
Clarice: (Ela olha fixamente para a máquina de escrever,
depois sorri com uma leveza que não tinha antes) A morte... eu tinha medo de
morrer, sim. Medo de deixar de ser. Mas descobri que a gente não deixa de ser.
A gente se expande. A morte foi só o momento em que parei de atrapalhar a vida,
e me integrei a ela. Não é um muro, meu filho. É uma porta que fica
entreaberta. O silêncio que encontrei do outro lado não é vazio; é cheio de
tudo. Eu não preciso mais soletrar a palavra. Agora, eu sou o próprio mistério.
SuperPauta: Obrigado, Clarice.
Clarice: (Ela se levanta, e sua figura parece ficar
ligeiramente translúcida contra a luz da varanda) Agora vá. O silêncio me chama
de volta. E ele não gosta de esperar.










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