quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Clarice Lispector

 Encontros Impossíveis

O mistério atrás da porta

Na penumbra de um Rio de Janeiro atemporal, Clarice fala sobre a guerra na Ucrânia, as cicatrizes do fogo, a recusa ao feminismo de rótulo e a fome de Macabéa.


Sou tão misteriosa que não me entendo” — Clarice Lispector

  

O Rio de Janeiro lá fora insiste em ser solar, barulhento, vivo. Mas aqui, neste apartamento no Leme que parece flutuar entre o passado e o agora, o tempo é uma substância espessa. O ar cheira a cigarro e a um perfume antigo, algo como madeira e flores secas. Há uma tensão silenciosa, como se o ambiente estivesse prestes a quebrar.

Venho de um encontro leve com Fernando Sabino, amigo íntimo desta mulher que agora me encara. Se Sabino era o abraço do Rio, Clarice é o abismo. Ela está sentada na poltrona, protegendo a mão direita — marcada por um incêndio trágico — com um xale sutil. Seus olhos amendoados, levemente felinos, não me convidam; eles me interrogam. Há uma máquina de escrever Olympia sobre a mesa e, ao lado, um maço de cigarros pela metade.

Ela não sorri, mas também não é hostil. É apenas... intensa. Como se estivesse tentando decidir se sou uma visita ou um personagem que ela precisa decifrar. “Eu sou tão misteriosa que não me entendo.” — a frase ecoa antes mesmo de começarmos. Respiro fundo. Entrar no mundo de Clarice Lispector exige coragem.

 



SuperPauta: Clarice, em que instante exato Chaya Pinkhasovna Lispector deixou de existir para que Clarice começasse a respirar?

Clarice: (Traga o cigarro e solta a fumaça lentamente, criando uma névoa entre nós) Não sei se foi um instante ou um processo de esquecimento. Chaya... Chaya é um nome que carrega o peso da fuga. Nasci na Ucrânia, em Chechelnyk, durante uma pausa na viagem de emigração dos meus pais, fugindo dos pogroms, da perseguição aos judeus. Chaya ficou lá, ou talvez tenha morrido no navio. Clarice nasceu aqui, tentando desesperadamente pertencer a este chão tropical. Mas sinto que as duas respiram até hoje, meio desalinhadas, como duas mulheres tentando caber num corpo só. Sou feita dessa falha de encaixe.

 

SuperPauta: Hoje, quase meio século após sua partida, a terra onde a senhora nasceu, a Ucrânia, está em guerra, assim como a região de seus ancestrais em Israel e Gaza. Como a menina que fugiu da violência olharia para o mundo atual?

Clarice: (Seus olhos ficam úmidos e ela desvia o olhar para a janela, onde o mar bate surdo) Com o mesmo espanto antigo. A guerra não muda, meu filho. A guerra é a falência da palavra. Meus pais vieram fugidos, com a fome no estômago e o medo nas costas. Eu vim bebê, mas a memória da fuga ficou no leite que tomei. Ver o mundo se dividindo novamente, ver gente morrendo por terra, por deus ou por nada... é sentir que a raiz humana está podre. A tecnologia avançou, fomos à Lua, temos essa "rede" que conecta tudo, mas a fome de matar o "outro" continua intacta. Isso me dá um cansaço de séculos.

 

SuperPauta: Ainda sobre essas marcas iniciais: consta que a senhora começou a escrever muito cedo, não por vaidade, mas por necessidade. Qual é a primeira memória desse impulso que ainda lhe causa vertigem?

Clarice: O quarto de minha mãe. Ou talvez não o quarto… o silêncio do quarto. Ela estava doente, morrendo aos poucos, e eu... eu falava para curá-la. Eu inventava histórias, acreditava nelas mais do que na realidade. Achava que se eu contasse a história certa, ela não morreria. E quando percebi que a palavra não podia salvar ninguém — aí veio a vertigem. É estranho: a dor desse momento me formou. Mas também me empurrou para algo maior do que eu podia suportar. É uma vertigem antiga. Ainda me roda.

 

SuperPauta: Então o luto pela sua mãe moldou seu silêncio ou seu grito?

Clarice: Moldou meu grito, mas um grito mudo. Escrevi para não morrer do silêncio dela. Talvez toda a minha obra seja uma tentativa — falha — de dar voz ao que eu perdi ali, naquele quarto.

 

SuperPauta: Se pudesse falar com seu eu de cinco anos, o que diria?

Clarice: “Não tenha pressa de entender.” Entender é o fim. Talvez eu dissesse também: “Brinca mais, menina. Se suja.” O futuro é apenas passado com mais peso. E a angústia… essa a gente aprende a usar como tinta.

 

SuperPauta: A senhora cresceu no Nordeste, entre Maceió e Recife. O que aquela infância lhe revelou sobre a brutalidade e a beleza?

Clarice: Que são a mesma coisa... mas isso eu só entendi depois. A galinha viva no quintal era bonita. A morte dela para o almoço de domingo, brutal. E eu comia. Eu existia no meio das duas coisas. O Nordeste não é suave, o Recife não era macio. Era uma luz dura, uma verdade crua. A pobreza que vi nas ruas, os mocambos... aquilo me vacinou contra o excesso de doçura. Aprendi cedo que viver é esse fio tenso entre a náusea e o êxtase.

 

SuperPauta: Essa sensação de não pertencer totalmente a lugar nenhum... Ser estrangeira na própria vida é destino ou escolha?

Clarice: Destino, talvez. Mas tem uma parte que é escolha, sim… não escolha consciente, dessas de levantar a mão. É uma escolha do corpo, do jeito como se sente o mundo. Sempre me senti um pouco traduzida. E traduções nunca são fiéis. Mas… ao mesmo tempo, ser estrangeira também me deu liberdade. A gente que não pertence pode circular entre as coisas. Eu circulo.

 

SuperPauta: Antes de partir para o exterior, em 1944, a senhora passou um período em Natal, esperando transporte, num hotel que chamou de “horrívelzinho”. O que aquele trecho interrompido da vida lhe revelou? Clarice: Ah, Natal… sim, aquele hotel. Não tenho boas lembranças, não. Foi uma espera longa — uma espécie de suspensão. Eu estava de passagem, mas a passagem demorou mais do que eu queria. A cidade… talvez eu não tenha sabido recebê-la, e ela também não soube me segurar. Às vezes um lugar não coincide com o nosso tempo interno, e aí tudo fica torto. Em Natal eu senti um cansaço existencial, uma espécie de desalinho entre mim e o mundo. Um intervalo que me revelou que, mesmo no Brasil, eu podia ser estrangeira de novo. E isso doeu. Mas ensinou.

 

SuperPauta: Pouca gente sabe que a senhora se formou em Direito e chegou a trabalhar em prisões, além de ter sido voluntária como assistente de enfermagem na FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra. O que viu ali, entre feridos e presidiários, que a literatura não contava?

Clarice: Vi que o corpo não mente. No hospital da FEB, cuidando dos nossos soldados que voltavam, não havia metáfora. Havia pus, febre, delírio e gente jovem mutilada. Eu queria ajudar, passava batom para animá-los, escrevia cartas para eles, mas me sentia inútil diante da dor física real. Ali eu entendi que a literatura tem um limite. Diante da carne aberta, a palavra é um luxo. Isso me deu humildade. E me deu, também, uma certa raiva de quem faz literatura enfeitada. A vida é sangue e matéria.

 

SuperPauta: Depois disso, a senhora viveu anos no exterior — Suíça, Estados Unidos — acompanhando seu marido diplomata. Mas suas cartas a amigos como Fernando Sabino e Rubem Braga revelam uma angústia profunda. Por que era tão difícil ser apenas "a esposa do diplomata"?

Clarice: Porque a etiqueta diplomática é uma máscara de gesso. E eu sufocava. (Ela alisa o tecido da saia, impaciente). Eu tentava, juro que tentava. Organizava jantares, sorria, usava as luvas certas, aprendia a não falar o que pensava. Mas, por dentro, eu estava vendo a "coisa" pulsando. Eu olhava para uma embaixatriz e via a solidão dela, via o esqueleto. Como conversar sobre o clima quando você vê a alma da pessoa gritando? Eu me sentia uma espiã infiltrada num mundo de aparências. Escrevia para o Fernando pedindo o Brasil, pedindo uma máquina de escrever suja de tinta, pedindo a desordem. O luxo de Berna e Washington nunca preencheu meu vazio. Era uma prisão de veludo.

 

SuperPauta: Nessas cartas, a senhora pedia afeto de forma quase infantil. A ‘Clarice Monstro Sagrado’ era, antes de tudo, uma pessoa solitária?

Clarice: (Suspira fundo, a fumaça sai densa) O "monstro sagrado" foi uma invenção dos críticos e dos leitores para não terem que lidar comigo como gente. É mais fácil idolatrar uma estátua do que conviver com uma mulher cheia de falhas. Sim, eu era solitária. Terrivelmente. Eu pedia afeto como quem pede pão. As cartas eram meu cordão umbilical com o Brasil e com a sanidade. Eu me sentia estrangeira em tudo, e os amigos — Fernando, Cabral, Rubem, Érico — eram minha pátria. Mas, no fundo, a gente nasce e morre só. A escrita é a única ponte que às vezes, só às vezes, atravessa esse abismo.

 

SuperPauta: Nosso penúltimo entrevistado, seu grande amigo Fernando Sabino, dizia que “no fim dá tudo certo”. A senhora, que olhou tão fundo nos abismos da alma humana, concorda com esse otimismo dele?

Clarice: (Esboça um meio sorriso, quase maternal) Fernando... O Fernando era um menino que se recusava a envelhecer. Ele tinha a graça da leveza. Eu o invejava, às vezes. O Deus dele era gentil. O meu... o meu é urgente. Para mim, não é que "dá certo". É que "é". As coisas são. A barata é, a dor é, o amor é. Aceitar que não há final feliz, mas apenas a continuidade brutal e bela da vida... talvez seja a minha forma de otimismo. Mas é um otimismo doído.

 

SuperPauta: A senhora sempre foi considerada uma mulher belíssima, comparada a atrizes de cinema. Mas, em 1966, um incêndio no seu quarto — provocado por um cigarro e um sonífero — deixou marcas profundas em seu corpo e em sua mão direita. Como foi fazer as pazes com o espelho depois disso?

Clarice: (Ela olha para a mão cicatrizada sobre o colo, acariciando-a levemente com a outra mão) Nunca fiz as pazes. Fiz uma trégua armada. Eu era vaidosa, sim. Gostava de ser admirada, gostava das roupas, da imagem. O fogo... o fogo veio para tirar o supérfluo. Foi o meu inferno pessoal. Quase morri, fiquei dias entre a vida e a morte, e uma parte da minha vaidade morreu ali naquelas chamas. A dor das queimaduras... não há adjetivo para isso. Depois, precisei aprender a viver com as marcas, a esconder as pernas, a proteger a mão. Deixei de ser a "estátua" e me tornei apenas humana. Dolorosamente humana. A beleza virou algo interno, porque o externo foi violado.

 

SuperPauta: Mesmo com essa densidade, a senhora escreveu livros infantis. Era uma fuga?

Clarice: Era um descanso! Um intervalo de luz. Escrever para crianças — e para bichos, porque me entendo melhor com eles do que com gente — era me permitir brincar. No mundo infantil não há culpa, não há esse intelecto torturado que analisa tudo. Há curiosidade pura. Eu precisava dessa trégua. A Vida Íntima de Laura (a galinha) sou eu rindo de mim mesma.

 

SuperPauta: Clarice, a senhora sempre rejeitou o rótulo de "escritora feminista", embora suas personagens mulheres sejam as mais complexas da nossa literatura. Hoje, isso gera debate. Por que essa recusa?

Clarice: (Ri, um riso curto e seco) Que debatam. Eu não escrevia para agradar movimentos. Veja, eu não sou uma "escritora mulher". Eu sou uma pessoa que escreve. Dividir a literatura em gavetas de gênero me parecia diminuir a universalidade da alma. A dor não tem sexo. A angústia de existir não é masculina nem feminina. Claro que sofri as amarras de ser mulher — o casamento, as cobranças, a "doce burrice" que esperavam de nós. Mas eu queria atingir o humano, o "isso". O rótulo me limitava. Eu queria a liberdade total, e o feminismo da época, às vezes, me parecia outra forma de prisão ideológica ou sectária. Eu lutei sendo, não militando.

 

SuperPauta: Vamos falar da sua escrita, que muitos consideram difícil. Suas histórias muitas vezes não têm começo, meio e fim tradicionais. Em A Paixão Segundo G.H., uma mulher passa o livro todo dentro de um quarto olhando uma barata esmagada. O leitor médio se assusta. Por que romper com a narrativa?

Clarice: Porque a vida não tem enredo! A vida não é um romance linear. A vida é um fluxo, um susto, um tropeço. Eu não queria contar uma historinha para entreter. Eu queria capturar o instante. G.H. não é sobre uma barata. É sobre o momento em que a civilização falha. A barata é a vida pré-histórica, imunda e viva, que nos olha de volta. Quando G.H. come a massa branca da barata, ela está comungando com o real, sem máscaras. Quem busca lógica em mim, perde o melhor: perde a sensação.

 

SuperPauta: O medo da loucura transparece em muitas linhas. Escrever a protegia ou a empurrava para o abismo?

Clarice: As duas coisas. Escrever é caminhar na beira do abismo. Havia dias em que eu sentia que, se escrevesse mais uma palavra verdadeira, eu quebraria. Eu me desintegraria. Mas se eu não escrevesse... eu sufocava. A literatura foi minha corda bamba. O medo da loucura sempre esteve lá, rondando. Talvez por isso eu tentasse me agarrar ao trivial, ao fazer feira, ao cuidar dos filhos, ao ter horário para o jornal. O cotidiano era minha âncora para não voar para longe demais.

 

SuperPauta: Em A Hora da Estrela, sua última obra publicada em vida, a senhora cria Macabéa, uma nordestina faminta, feia, virgem e que comia cachorro-quente. Muitos viram ali uma denúncia social. Quem era Macabéa para você?

Clarice: Macabéa era eu. Sem o verniz, sem a cultura, sem a proteção do dinheiro. Macabéa era a minha pureza perdida e a culpa do Brasil. Eu a amei desesperadamente enquanto a matava no papel. Ela não sabia que era infeliz, e isso é de uma crueldade e de uma beleza insuportáveis. O Brasil está cheio de Macabéas. Gente que vive sem saber que vive, que pede desculpas por ocupar espaço. Eu queria gritar por ela. Rodrigo S.M., o narrador do livro, sou eu tentando suportar a culpa de fazer arte num país de famintos.

 

SuperPauta: O que as mulheres do seu tempo não entenderam sobre Macabéa?

Clarice: Elas tiveram pena. E a pena é uma forma de cegueira. Macabéa não se pensava infeliz, e isso confundiu muitas mulheres da época. Elas queriam vê-la como vítima — e ela era —, mas era também algo mais difícil de aceitar: pura. Uma pureza que não vem da inocência consciente, mas da ignorância luminosa. Macabéa não sabia que era trágica, e isso a tornava… livre, de um jeito doloroso. Eu a amei com amor e com inveja. Porque ela vivia sem a tortura da autoconsciência. E poucas pessoas suportam admitir que a ignorância pode ser uma espécie de graça. Eu mesma nunca tive essa graça.

 

SuperPauta: A senhora trabalhou muito tempo na imprensa, escrevendo crônicas e até colunas femininas sob pseudônimo para ganhar dinheiro. O jornalismo atrapalhou ou ajudou a literatura?

Clarice: Ajudou a pagar as contas (sorri de canto). E me ensinou a comunicação direta. Na coluna feminina, eu dava conselhos sobre cremes e maridos fingindo ser quem não era... era divertido e humilhante ao mesmo tempo. Mas na crônica de sábado, no Jornal do Brasil, ali eu podia conversar. Descobri que falar simples é o mais difícil. O jornal me manteve conectada às pessoas comuns, aos taxistas, às donas de casa. Isso foi vital para não me perder no hermetismo.

 

SuperPauta: O que é o "Instante" que a senhora tanto perseguiu?

Clarice: O Instante é o "já". É o momento em que o ovo quebra. É quando você olha para uma coisa e a vê pela primeira vez, despida de nome. É um relance de divindade ou de horror. É tão rápido que a memória falha em segurar. Eu escrevia para tentar prender o Instante na página, como quem tenta prender um pássaro com as mãos nuas. Quase sempre ele escapava, e ficava só a pena.

 

SuperPauta: A página em branco lhe dava pavor ou prazer?

Clarice: Pavor. Um medo físico. O branco é o nada — e eu tenho medo do nada. Quando a palavra vem, aí sim, um lampejo de êxtase. Mas antes disso… é como ficar diante de um abismo que me chama. Eu não sei se quero cair ou recuar. A escrita é esse vacilo.

 

SuperPauta: A senhora dominava a linguagem ou era devorada por ela?

Clarice: No começo eu quis dominar. Fazer bonito. Depois percebi que a linguagem é bicho – e eu era a presa. Naquele tempo, a escrita me devorava inteira, e eu a deixava. Com o passar dos anos fui entendendo que eu era apenas o corpo por onde a frase passava. Quando releio o que escrevi – e releio como quem toca algo estrangeiro – sinto que não fui eu. Era uma parte minha que eu nunca alcancei. Talvez a melhor parte.

 

SuperPauta: O silêncio fala mais que a palavra?

Clarice: O silêncio… ah, o silêncio. Ele é a língua que eu mais entendo, embora finja que domino outras. A palavra é uma tentativa de aproximação, um contorno torto. O silêncio é o centro. A palavra é só a borda. Quando escrevia — e até quando não escrevia — eu percebia que tudo o que realmente importa está justamente no que não consegui dizer. O que está escrito é sombra; o silêncio é o corpo. O silêncio não explica, não seduz, não argumenta. Ele é. Ele se impõe. E ele, muitas vezes, dói. Porque no silêncio a gente escuta o que não queria ouvir: o medo, a memória, o desejo, a verdade sem maquiagem. O silêncio é a matéria-prima do indizível. E talvez seja por isso que eu o perseguia tanto: para ver se, cercando-o com palavras, eu conseguia tocá-lo sem machucar — ou sem me machucar. Mas ele sempre escapou. E, escapando, ensinou.

 

SuperPauta: Já odiou escrever?

Clarice: Sim. Muitas vezes. E não tenho orgulho disso — mas também não tenho vergonha. O ódio vinha porque escrever me rasgava. Porque exigia de mim coisas que eu não queria dar. Porque me obrigava a olhar para dentro quando eu só queria um copo d’água e um descanso do mundo. Eu odiava escrever quando queria simplesmente viver. Ser comum. Ser tola. Ser feliz de um jeito simples. Mas o papel me chamava, como se houvesse uma dívida. E, ao mesmo tempo, enquanto eu odiava, eu precisava. O ódio e a necessidade conviviam, se mordiam, se abraçavam. Eu era escrava da frase que ainda não existia. E, no fim, mesmo odiando, eu sentava e escrevia. Como quem volta para uma casa que fere, mas também salva.

 

SuperPauta: Escrevia para ser lida ou para se salvar?

Clarice: Eu escrevia para respirar. Para não morrer afogada em mim mesma. Escrever era um ato de sobrevivência — como abrir uma janela em uma sala onde falta ar. A leitura veio depois. O leitor sempre foi um milagre, mas nunca a origem. Se eu estivesse condenada ao silêncio absoluto, teria escrito mesmo assim, talvez em guardanapos, talvez nas paredes, talvez apenas dentro de mim. Não escrevi para ser compreendida. Escrevi porque, sem escrever, eu implodiria. E quando alguém me lia… bom, aí acontecia outra espécie de milagre. Dois solitários se reconhecendo. Mas o impulso inicial sempre foi a urgência de existir.

 

SuperPauta: Qual objeto do cotidiano melhor traduz seu processo criativo?

Clarice: A máquina de escrever — aquela velha, pesada, barulhenta. A que não perdoava um erro, a que fazia a casa inteira ouvir quando a frase nascia. Porque escrever não é sopro, não é leveza: é trabalho de ferreiro. É golpear o invisível até virar forma. A máquina me lembrava que a literatura não vem do ar, mas do esforço. Das madrugadas. Do cansaço. Do medo. Do corpo curvado. A tecla batendo é uma espécie de martelo: martela-se a alma para que o texto apareça. E eu confiava nesse barulho. Era quase uma companhia. Talvez por isso eu nunca tenha conseguido escrever direito em silêncio absoluto: eu precisava ouvir a luta.

 

SuperPauta: Onde começa a sua verdade? No pensamento, no corpo ou no vazio?

Clarice: No corpo. Sempre no corpo. O pensamento mente, argumenta, constrói explicações elegantes demais para serem verdadeiras. O corpo não tem diplomacia: ele treme, arrepia, adoece, recusa, deseja. O corpo diz a verdade antes que a mente consiga disfarçar. E o vazio? Ah… o vazio é o lugar onde a verdade mora, mas onde quase ninguém tem coragem de entrar. O vazio é o território do essencial, mas também do perigoso. Eu me aproximei dele muitas vezes — mais do que seria sensato. E talvez por isso eu tenha escrito o que escrevi: para tentar dar bordas ao vazio sem cair nele inteira.

 

SuperPauta: Hoje, vivemos na era da exposição total. Todos têm uma câmera na mão, todos publicam suas vidas. O mistério acabou?

Clarice: O mistério se escondeu envergonhado. Há muito barulho, muita "eu-foria". As pessoas mostram o prato de comida, mas escondem a fome da alma. Escrevem para serem vistas, não para verem. Tudo é vitrine. Mas o mistério... ah, ele é paciente. Ele espera no silêncio. Quando a tela apaga, quando a bateria acaba, o ser humano continua sozinho no escuro do quarto com sua angústia ancestral. E aí, não há like que salve. O mistério não morreu, só ficou mais solitário.

 

SuperPauta: Qual é o Deus de Clarice Lispector?

Clarice: Não é o Deus das barbas brancas e dos julgamentos. É o Isso. A energia neutra e viva que move as estrelas e as baratas. Um Deus que cria e destrói com a mesma indiferença sagrada. Eu o busquei a vida inteira, às vezes com raiva, às vezes com gratidão. Ele está no silêncio entre duas notas de música.

 

SuperPauta: Se pudesse enviar um telegrama urgente para os jovens brasileiros de hoje, o que estaria escrito?

Clarice: "Parem. Desliguem. Olhem. Sintam. Não se tornem robôs. Socorro. Clarice."

 

SuperPauta: Para encerrar, Clarice. A senhora passou a vida tentando decifrar a morte. Daqui de onde a senhora nos fala, ela ainda lhe assusta?

Clarice: (Ela olha fixamente para a máquina de escrever, depois sorri com uma leveza que não tinha antes) A morte... eu tinha medo de morrer, sim. Medo de deixar de ser. Mas descobri que a gente não deixa de ser. A gente se expande. A morte foi só o momento em que parei de atrapalhar a vida, e me integrei a ela. Não é um muro, meu filho. É uma porta que fica entreaberta. O silêncio que encontrei do outro lado não é vazio; é cheio de tudo. Eu não preciso mais soletrar a palavra. Agora, eu sou o próprio mistério.

 

SuperPauta: Obrigado, Clarice.

Clarice: (Ela se levanta, e sua figura parece ficar ligeiramente translúcida contra a luz da varanda) Agora vá. O silêncio me chama de volta. E ele não gosta de esperar.





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