quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Encontros Impossíveis – São Francisco de Assis

Encontros Impossíveis

O Canto do Irmão Sol

São Francisco retorna com a humildade que desarmou lobos e reis, mantendo esta conversa imaginária com o SuperPauta sobre a alegria na pobreza, a fraternidade universal e a força que nasce da simplicidade do coração

Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas.” — São Francisco de Assis


 

O ar na sala parecia vibrar em uma harmonia suave, como a quietude após a oração. Em meio à luz baixa, a figura de São Francisco de Assis se materializou. Não havia pompa, apenas o tecido grosseiro de seu hábito e um sorriso que desarmava. Não havia pompa, apenas o tecido áspero do hábito e um sorriso que desarmava. Seu olhar — que, embora cego nos últimos dias, via além das formas — irradiava uma luz serena. Moveu-se com a graça de quem encontrou a paz interior. Ao sentar-se, fez a cadeira simples parecer um trono, não pela vaidade, mas pela humildade que o revestia. Com um leve aceno de cabeça, abençoou o ambiente e deu início à conversa. Sua voz era terna, mas firme, com a ressonância de quem sempre buscou viver o Evangelho: "Pregue o Evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras."

A sugestão de trazer São Francisco de Assis para esta série partiu do amigo Florian Madruga, nascido a 4 de outubro – dia consagrado ao santo. Neste novo encontro imaginário, São Francisco, de quem Florian é devoto, conta como abandonou a vida de luxo para abraçar a pobreza, fala sobre o poder do abraço no leproso que mudou tudo, e ensina que a verdadeira alegria não está nos milagres, mas na paciência diante das ofensas. Ele recorda o momento em que recebeu as marcas de Cristo — os estigmas — no Monte Alverne, dois anos antes de morrer, e explica que toda a Criação é sua família. Por fim, deixa um recado sobre a importância de viver o Evangelho com a vida, não apenas com palavras, e mostra que a simplicidade é o único caminho seguro. (Roberto Homem)


 

SuperPauta: Frei Francisco, o pessoal de Assis te conhecia como Giovanni, o filho do rico Pietro Bernardone, que vivia na farra e sonhava ser um cavaleiro famoso. O que o fez trocar aquela “vida boa” e a roupa de luxo por esse hábito simples que você usa?
São Francisco: A paz e o bem, irmão. É verdade: durante muitos anos eu me deixei seduzir pelas festas, pelos banquetes, pelas canções e pelas roupas caras. Queria ser alguém admirado, um cavaleiro vitorioso, um homem de glória e aplausos. Mas Deus, em sua bondade, me esperava na curva da estrada. Ele me visitou na doença, quando meu corpo enfraqueceu, e me fez provar a fragilidade das forças humanas. Depois, veio a guerra, e nela entendi o quanto é inútil a ambição quando a alma está vazia. Mas o verdadeiro chamado não veio de trombetas nem de vozes do céu — veio de um encontro: o leproso. Aquele abraço foi o momento em que a luz atravessou as minhas sombras. Eu, que antes desviava o olhar e o nariz, senti, naquele instante, uma doçura que não era deste mundo. Percebi que o Cristo estava escondido nos desprezados. E compreendi que a pobreza, que o mundo teme, é na verdade a liberdade dos que amam. Ali, nasceu o Francisco — o irmão menor.

 

SuperPauta: A voz que você ouviu na Capela de São Damião — “Francisco, reconstrói a minha Igreja” — foi interpretada literalmente no início. Saiu pedindo pedra pra reformar o prédio. Você demorou a perceber que Deus falava de uma reconstrução espiritual?

São Francisco: (Inclina o corpo ligeiramente para a frente, em um gesto de humildade) Ah, irmão, como somos lentos para entender as coisas do Espírito! Quando ouvi aquela voz, pensei nas paredes quebradas, no telhado caído, na argamassa que faltava. Recolhi pedras com as mãos e mendiguei tijolos pelas ruas, achando que fazia a vontade do Altíssimo. Mas o Senhor, paciente, sorriu da minha simplicidade. Ele sabia que, ao reconstruir uma capela, eu aprenderia o que é erguer um coração. Com o tempo, percebi: a Igreja que Ele queria restaurar era viva, feita de almas cansadas e corações em ruína. E cada pedra que eu colocava na parede de São Damião me ensinava sobre o tijolo invisível da fé. Assim é Deus: fala-nos com palavras humanas para nos levar a compreender o divino.

SuperPauta: O Cântico das Criaturas, seu hino mais famoso, é considerado o início da poesia italiana. O senhor estava quase cego e sofrendo muito quando o escreveu, chamando o sol, a água e até a morte de “irmãos” e “irmãs”. Como veio essa inspiração num momento tão difícil? 
São Francisco: (Seus olhos fixam um ponto distante, como se visse a cena) Ah, meu filho, quando os olhos da carne se fecham, os da alma se abrem. A inspiração não veio do corpo, mas do coração que já enxergava o céu dentro da dor. Eu sofria, sim, mas cada coisa me falava de Deus: o vento que passava era o sopro do Espírito, o sol que queimava era o calor do amor divino, a água fresca era o batismo da terra. Chamar o fogo, a lua e a morte de irmãos não era metáfora — era reconhecimento. Tudo o que existe é dom, e todo dom é sinal da ternura do Criador. A irmã Água é pura e humilde; o irmão Fogo, forte e alegre; a Irmã Morte, inevitável e libertadora. O Cântico foi um louvor em meio à agonia, um grito de gratidão de um corpo ferido, mas de uma alma livre. É a canção do homem que, mesmo cego, ainda vê Deus em tudo.

SuperPauta: A experiência dos Estigmas, as marcas das chagas de Jesus Cristo em suas mãos, pés e lado. Ela aconteceu no Monte Alverne e marcou você como um outro Cristo. Como foi esse encontro com o Serafim Crucificado?

São Francisco: (A voz diminui de tom, em profunda veneração, e ele junta as mãos que um dia tiveram chagas) Meu irmão, há coisas que não se descrevem, apenas se vivem em silêncio. Estava recolhido no Monte Alverne, em oração, pedindo a Jesus que me deixasse sentir um pouco do amor que o fez morrer por nós. E Ele me atendeu com uma ternura que queimava. O Serafim veio como luz e ferida ao mesmo tempo. As chagas apareceram, mas o que mais doía era o amor — aquele fogo suave que não destrói, mas consome o orgulho. Na dor encontrei doçura; no sofrimento, paz. Não foi glória, foi cruz. As chagas me lembravam que o caminho de Cristo é feito de entrega. E eu compreendi que só é verdadeiramente cristão quem carrega no corpo e na alma os sinais do amor.

 

SuperPauta: Você contou ao Frei Leão sobre a “alegria perfeita”, que não está em fazer milagres, mas em suportar as humilhações com paciência. Essa história é verdadeira?
São Francisco: (Um riso terno e melancólico escapa, acompanhado de um aceno de cabeça) Ah, sim, é verdadeira. Frei Leão era minha ovelhinha, sempre curioso com as coisas do espírito. Um dia, caminhávamos sob chuva e frio, e ele me perguntou onde estava a alegria. Eu lhe disse: “Se chegarmos a um convento e nos deixarem do lado de fora, com fome e desprezo, e ainda assim agradecermos a Deus — aí estará a alegria perfeita.” Porque a verdadeira alegria não vem das vitórias, mas das feridas que aceitamos por amor. Não é fácil sorrir diante da humilhação, mas é nesse sorriso que o demônio se confunde e o céu se abre. A alegria perfeita é o segredo dos pobres de espírito — os que não têm nada, mas possuem tudo, porque têm paz.

 

SuperPauta: E essa sua fama de conversar com os bichos? O episódio do Irmão Lobo de Gúbio é o mais famoso. Como se fala com um lobo feroz? 

São Francisco: (Acaricia a manga do hábito, como se tocasse uma criatura) É preciso primeiro calar o ruído dentro de si. Quando o coração está em paz, até o rugido se torna oração. O Irmão Lobo estava faminto, e o medo o tornava cruel. Eu não o enfrentei com gritos nem com armas, mas com mansidão. Falei com ele como quem fala com um irmão: “Vem, em nome de Cristo, e faz comigo um pacto de paz.” Ele baixou a cabeça, e nos entendemos — porque o amor fala uma língua que todo ser compreende. Depois disso, o povo o alimentava e ele jamais voltou a atacar. O milagre não foi amansar a fera, mas reconciliar a natureza ferida com o coração humano. Quando o homem reencontrar o lobo que há dentro dele, o mundo voltará a ser jardim.

SuperPauta: Você foi um dos primeiros a buscar o diálogo com o mundo islâmico, indo falar com o Sultão Al-Kamil no Egito. Numa época de guerra e Cruzadas, o que você queria dizer para eles?

São Francisco: A guerra me feriu por dentro. Eu a vi de perto, e desde então entendi que a espada nunca leva ninguém ao céu. Fui ao sultão não como pregador, mas como irmão menor, com o desejo de compreender e ser compreendido. Levei o Evangelho, mas levei também o coração aberto. O sultão era um homem sábio e me acolheu com respeito. Conversamos sobre Deus, sobre o amor e sobre a paz. Ele não se converteu ao cristianismo, mas nós dois nos aproximamos do mesmo Deus, que é amor. E ali aprendi que a caridade é uma ponte que atravessa até os desertos da intolerância. O diálogo é a mais alta forma de fé.

 

SuperPauta: Alguns diziam que sua ideia de pobreza evangélica era exagerada. Você se sentiu incompreendido pela Igreja?
São Francisco: (Lentamente, ele ergue a mão direita, com a palma voltada para cima) A Igreja é nossa Mãe. Ela tem feridas, sim, mas é dela que recebemos a Eucaristia, o pão do céu. Eu jamais quis me afastar dela. A pobreza que defendi não era miséria, mas liberdade: o desapego de tudo que pesa na alma. Alguns me chamaram de sonhador, outros de louco. Mas eu dizia: melhor ser louco por Cristo do que sábio aos olhos do mundo. Eu só queria seguir o Evangelho sem glosa, como está escrito. Ser pobre é estar desarmado diante de Deus, para que Ele seja tudo em nós. E se o mundo não entende, é porque ainda confunde riqueza com segurança. A verdadeira segurança é o amor.

 

SuperPauta: Você não era muito ligado aos estudos. Como veria o nosso tempo, com tanta informação, internet e vaidade?

São Francisco: (Fecha os olhos por um instante, como em oração) A letra mata, o Espírito vivifica. Não é o saber que destrói o homem, é o orgulho do saber. O conhecimento é dom de Deus, mas se o usamos para nos exaltar, ele vira pedra no coração. Se a palavra escrita servir à caridade, será bênção. Mas se for usada para humilhar ou confundir, será veneno. Vejo que vocês vivem rodeados de vozes e ruídos, e muitas palavras sem amor. Transformem essa tal “internet” num instrumento de bondade: um novo cântico das criaturas, onde cada postagem seja uma semente de paz. A sabedoria verdadeira é a que se curva, não a que se impõe.

 

SuperPauta: Você viu o mundo mudar muito — de uma vida de fidalguia para a pobreza extrema. Qual seria o seu recado mais urgente para o nosso mundo de hoje, que vive uma crise grande na natureza e tanta desigualdade?

São Francisco: O mundo enriqueceu por fora e empobreceu por dentro. O homem acumulou bens, mas perdeu o sentido do bem. Quando deixei as roupas finas e o ouro de meu pai, não abandonei só o luxo — deixei o medo de ser simples. Aprendi que a pobreza não é miséria: é liberdade. Quem tem pouco, ama mais. Quem quer tudo, vive inquieto. Hoje, muitos falam de liberdade, mas continuam cativos das próprias vontades: minha casa, minha glória, meu poder. E enquanto o homem pensa ser dono das coisas, as coisas o possuem. A Minoridade — ser o menor — é o remédio. Ela ensina a viver com alegria o que é suficiente, a dividir, a servir. O mundo se curaria se trocasse o verbo ter pelo verbo ser. A verdadeira riqueza é o coração desapegado que se abre para o outro.

 

SuperPauta: O mundo de hoje vive uma crise ambiental e tantas guerras. Que mensagem você deixaria? 
São Francisco: O mundo geme como uma criatura ferida. A terra, nossa irmã, sofre porque o homem esqueceu que foi feito para cuidar, não dominar. Diz amar a vida, mas fere as fontes de onde ela brota. Corta as árvores, seca os rios, envenena o ar — e depois pergunta por que está doente. O planeta é espelho da alma humana: quando o coração endurece, a terra também se torna árida. O Senhor nos chamou à Minoridade para sermos guardiões do que é frágil, não senhores do que passa. Enquanto buscarmos poder e posse, teremos fome e guerra. A paz começa no coração que renuncia a mandar e se dispõe a servir. Hoje, o necessário é amar: amar o irmão e amar a irmã Terra, porque ambos sangram da mesma ferida. E se cada um cuidar do pedaço que lhe cabe, o mundo inteiro voltará a cantar o Cântico das Criaturas.

SuperPauta: E o que diria aos jovens que buscam sentido e reconhecimento?

São Francisco: (O olhar se enche de uma compaixão profunda) Coração, meu filho! Os jovens correm atrás de muitas coisas, mas esquecem que a alegria verdadeira é simples. Não se encontra nas telas, nos aplausos nem na pressa. Encontra-se no silêncio, no serviço, no amor que não espera retorno. O mundo diz “seja o primeiro”; Cristo diz “seja o menor”. Não tenham medo de ser diferentes. A pureza é a coragem de andar contra a corrente. E lembrem-se: o Amor não é amado. Por isso, que cada um de vocês seja um grito vivo de amor ao Amor.

 

SuperPauta: E qual é o seu desejo final, seu desejo de peregrino, para a sua Ordem e para a sua Igreja que tanto ama?

São Francisco: Que meus irmãos e irmãs sigam a Regra e o Testamento sem torcer o sentido das palavras. Que vivam o Evangelho com os pés no chão e os olhos no céu. Que o Espírito do Senhor repouse sobre todos e os faça servidores, não senhores. E que, quando a Morte vier — essa irmã fiel que me levou ao Pai —, ela os encontre sorrindo. Porque quem vive em paz não teme o fim. A Minoridade, ser o menor de todos, é o maior privilégio que podemos ter.


(O frei se levanta. O hábito se agita suavemente. Faz o sinal da cruz com serenidade e, pouco a pouco, a luz ao redor se dissipa. Fica apenas o perfume das flores silvestres — e a sensação de que a terra, por um instante, respirou em paz.)



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