Encontros
Impossíveis
O Canto do Irmão Sol
São Francisco retorna com a humildade que desarmou lobos e reis, mantendo esta conversa imaginária com o SuperPauta sobre a alegria na pobreza, a fraternidade universal e a força que nasce da simplicidade do coração
“Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas.” — São Francisco de Assis
O
ar na sala parecia vibrar em uma harmonia suave, como a quietude após a oração.
Em meio à luz baixa, a figura de São Francisco de Assis se materializou. Não
havia pompa, apenas o tecido grosseiro de seu hábito e um sorriso que
desarmava. Não havia pompa, apenas o tecido áspero do hábito e um sorriso que
desarmava. Seu olhar — que, embora cego nos últimos dias, via além das formas —
irradiava uma luz serena. Moveu-se com a graça de quem encontrou a paz
interior. Ao sentar-se, fez a cadeira simples parecer um trono, não pela
vaidade, mas pela humildade que o revestia. Com um leve aceno de cabeça,
abençoou o ambiente e deu início à conversa. Sua voz era terna, mas firme, com
a ressonância de quem sempre buscou viver o Evangelho: "Pregue o Evangelho
em todo tempo. Se necessário, use palavras."
A
sugestão de trazer São Francisco de Assis para esta série partiu do amigo
Florian Madruga, nascido a 4 de outubro – dia consagrado ao santo. Neste novo
encontro imaginário, São Francisco, de quem Florian é devoto, conta como
abandonou a vida de luxo para abraçar a pobreza, fala sobre o poder do abraço
no leproso que mudou tudo, e ensina que a verdadeira alegria não está nos
milagres, mas na paciência diante das ofensas. Ele recorda o momento em que
recebeu as marcas de Cristo — os estigmas — no Monte Alverne, dois anos antes
de morrer, e explica que toda a Criação é sua família. Por fim, deixa um recado
sobre a importância de viver o Evangelho com a vida, não apenas com palavras, e
mostra que a simplicidade é o único caminho seguro. (Roberto Homem)
SuperPauta: A voz que você ouviu na Capela de São Damião
— “Francisco, reconstrói a minha Igreja” — foi interpretada literalmente no
início. Saiu pedindo pedra pra reformar o prédio. Você demorou a perceber que
Deus falava de uma reconstrução espiritual?
São
Francisco:
(Inclina o corpo ligeiramente para a frente, em um gesto de humildade) Ah,
irmão, como somos lentos para entender as coisas do Espírito! Quando ouvi
aquela voz, pensei nas paredes quebradas, no telhado caído, na argamassa que
faltava. Recolhi pedras com as mãos e mendiguei tijolos pelas ruas, achando que
fazia a vontade do Altíssimo. Mas o Senhor, paciente, sorriu da minha
simplicidade. Ele sabia que, ao reconstruir uma capela, eu aprenderia o que é
erguer um coração. Com o tempo, percebi: a Igreja que Ele queria restaurar era
viva, feita de almas cansadas e corações em ruína. E cada pedra que eu colocava
na parede de São Damião me ensinava sobre o tijolo invisível da fé. Assim é
Deus: fala-nos com palavras humanas para nos levar a compreender o divino.
SuperPauta: A experiência dos Estigmas, as marcas das chagas de Jesus Cristo em suas mãos, pés e lado. Ela aconteceu no Monte Alverne e marcou você como um outro Cristo. Como foi esse encontro com o Serafim Crucificado?
São Francisco: (A voz diminui de tom, em profunda veneração, e ele junta as mãos que um dia tiveram chagas) Meu irmão, há coisas que não se descrevem, apenas se vivem em silêncio. Estava recolhido no Monte Alverne, em oração, pedindo a Jesus que me deixasse sentir um pouco do amor que o fez morrer por nós. E Ele me atendeu com uma ternura que queimava. O Serafim veio como luz e ferida ao mesmo tempo. As chagas apareceram, mas o que mais doía era o amor — aquele fogo suave que não destrói, mas consome o orgulho. Na dor encontrei doçura; no sofrimento, paz. Não foi glória, foi cruz. As chagas me lembravam que o caminho de Cristo é feito de entrega. E eu compreendi que só é verdadeiramente cristão quem carrega no corpo e na alma os sinais do amor.
SuperPauta: E essa sua fama de conversar com os bichos? O episódio do Irmão Lobo de Gúbio é o mais famoso. Como se fala com um lobo feroz?
São Francisco:
(Acaricia a manga do hábito, como se tocasse uma criatura) É preciso primeiro
calar o ruído dentro de si. Quando o coração está em paz, até o rugido se torna
oração. O Irmão Lobo estava faminto, e o medo o tornava cruel. Eu não o
enfrentei com gritos nem com armas, mas com mansidão. Falei com ele como quem
fala com um irmão: “Vem, em nome de Cristo, e faz comigo um pacto de paz.” Ele
baixou a cabeça, e nos entendemos — porque o amor fala uma língua que todo ser
compreende. Depois disso, o povo o alimentava e ele jamais voltou a atacar. O
milagre não foi amansar a fera, mas reconciliar a natureza ferida com o coração
humano. Quando o homem reencontrar o lobo que há dentro dele, o mundo voltará a
ser jardim.
SuperPauta: Você foi um dos primeiros a buscar o diálogo com o mundo islâmico, indo falar com o Sultão Al-Kamil no Egito. Numa época de guerra e Cruzadas, o que você queria dizer para eles?
São Francisco: A guerra me feriu por dentro. Eu a vi de
perto, e desde então entendi que a espada nunca leva ninguém ao céu. Fui ao
sultão não como pregador, mas como irmão menor, com o desejo de compreender e
ser compreendido. Levei o Evangelho, mas levei também o coração aberto. O
sultão era um homem sábio e me acolheu com respeito. Conversamos sobre Deus,
sobre o amor e sobre a paz. Ele não se converteu ao cristianismo, mas nós dois
nos aproximamos do mesmo Deus, que é amor. E ali aprendi que a caridade é uma
ponte que atravessa até os desertos da intolerância. O diálogo é a mais alta
forma de fé.
SuperPauta: Você não era muito ligado aos estudos. Como
veria o nosso tempo, com tanta informação, internet e vaidade?
São Francisco: (Fecha os olhos por um instante, como em
oração) A letra mata, o Espírito vivifica. Não é o saber que destrói o homem, é
o orgulho do saber. O conhecimento é dom de Deus, mas se o usamos para nos
exaltar, ele vira pedra no coração. Se a palavra escrita servir à caridade,
será bênção. Mas se for usada para humilhar ou confundir, será veneno. Vejo que
vocês vivem rodeados de vozes e ruídos, e muitas palavras sem amor. Transformem
essa tal “internet” num instrumento de bondade: um novo cântico das criaturas,
onde cada postagem seja uma semente de paz. A sabedoria verdadeira é a que se
curva, não a que se impõe.
SuperPauta: Você viu o mundo mudar muito — de uma vida
de fidalguia para a pobreza extrema. Qual seria o seu recado mais urgente para
o nosso mundo de hoje, que vive uma crise grande na natureza e tanta
desigualdade?
São Francisco:
O mundo enriqueceu por fora e empobreceu por dentro. O homem acumulou bens, mas
perdeu o sentido do bem. Quando deixei as roupas finas e o ouro de meu pai, não
abandonei só o luxo — deixei o medo de ser simples. Aprendi que a pobreza não é
miséria: é liberdade. Quem tem pouco, ama mais. Quem quer tudo, vive inquieto. Hoje,
muitos falam de liberdade, mas continuam cativos das próprias vontades: minha
casa, minha glória, meu poder. E enquanto o homem pensa ser dono das coisas, as
coisas o possuem. A Minoridade — ser o menor — é o remédio. Ela ensina a viver
com alegria o que é suficiente, a dividir, a servir. O mundo se curaria se
trocasse o verbo ter pelo verbo ser. A verdadeira riqueza é o coração
desapegado que se abre para o outro.
SuperPauta: E o que diria aos jovens que buscam sentido e reconhecimento?
São
Francisco:
(O olhar se enche de uma compaixão profunda) Coração, meu filho! Os jovens
correm atrás de muitas coisas, mas esquecem que a alegria verdadeira é simples.
Não se encontra nas telas, nos aplausos nem na pressa. Encontra-se no silêncio,
no serviço, no amor que não espera retorno. O mundo diz “seja o primeiro”;
Cristo diz “seja o menor”. Não tenham medo de ser diferentes. A pureza é a
coragem de andar contra a corrente. E lembrem-se: o Amor não é amado. Por isso,
que cada um de vocês seja um grito vivo de amor ao Amor.
SuperPauta: E qual é o seu desejo final, seu desejo de
peregrino, para a sua Ordem e para a sua Igreja que tanto ama?
São Francisco: Que meus irmãos e irmãs sigam a Regra e o
Testamento sem torcer o sentido das palavras. Que vivam o Evangelho com os pés
no chão e os olhos no céu. Que o Espírito do Senhor repouse sobre todos e os
faça servidores, não senhores. E que, quando a Morte vier — essa irmã fiel que
me levou ao Pai —, ela os encontre sorrindo. Porque quem vive em paz não teme o
fim. A Minoridade, ser o menor de todos, é o maior privilégio que podemos ter.







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