quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Lampião

Encontros Impossíveis

O Evangelho do Bacamarte

 

Virgulino Ferreira retorna com a fúria e a astúcia que impuseram uma nova lei ao sertão, mantendo esta conversa imaginária com o SuperPauta sobre a vingança que o forjou, a derrota histórica em Mossoró e o código de honra que, em sua visão, o separa do banditismo moderno.

 

"Eu sou cangaceiro pela maldade dos outros" – Lampião

 

O ar não se move. O encontro se dá numa caatinga suspensa no tempo, onde o sol não castiga, mas a luz é branca e dura, como cal. O cheiro não é de flor de mandacaru, mas de poeira seca, couro curtido e pólvora fria. Ele não surge como um fantasma; ele simplesmente está lá, sentado numa pedra, como se nos esperasse há 70 anos. Virgulino Ferreira da Silva não é uma assombração; é um fato. Veste o gibão de couro bordado, os anéis brilham, e o chapéu de abas largas sombreia os olhos que, diziam, enxergavam no escuro. A voz não é um grito. É um trovão baixo, arrastado pelo sol, acostumado a dar ordens que não podem ser desobedecidas. Cada palavra tem o peso de uma bala.

 

Nesta conversa impossível, Lampião fala sobre a vaidade que o fez ser fotografado por Benjamin Abrahão, a estratégia militar que humilhou as volantes e a tática dos coiteiros. Ele detalha, pela primeira vez, sua maior derrota militar: a invasão de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ele relembra a crueldade de ambos os lados, a morte de Jararaca, o amor por Maria Bonita e a traição final em Angicos. No clímax do encontro, o "Rei do Cangaço" analisa o crime moderno, renegando o "Novo Cangaço" e o Comando Vermelho. (Roberto Homem)

 

 

SuperPauta: Como prefere ser chamado? Virgulino, Capitão ou Lampião? A propósito, de onde veio o apelido "Lampião"?

Lampião: (Ele ajeita o chapéu, os anéis brilhando contra o couro). Virgulino era o menino. Capitão é o respeito que ganhei. Mas Lampião... Lampião é o nome da guerra. Pode me chamar de Capitão. O apelido veio da rapidez, meu filho. O rifle na minha mão, de noite, atirando sem parar... os "cabras" diziam que parecia um candeeiro, um lampião clareando a escuridão. E clareou mesmo. Clareou o sertão e mostrou quem mandava.

 

SuperPauta: O senhor era vaidoso. Usava perfume francês, anéis, lenço bordado, chapéu enfeitado. De onde vinha esse gosto pelo belo no meio de tanta dureza?

Lampião: (Ele sorri, um sorriso fino, quase orgulhoso). O sertanejo é bonito. O vaqueiro, quando vai pra festa, bota a melhor roupa de couro. Eu vivia em festa. Vivia em guerra, o que dá no mesmo. A dureza tá por fora, no sol, na pedra. Mas por dentro, o homem gosta do que é bom. O perfume? (Ele cheira o próprio punho, por instinto). Era pra sentir cheiro de gente, não de poeira. O chapéu bordado, as moedas, os anéis... era a minha farda. Era a coroa. Um Rei tem que se apresentar como Rei. A volante, quando me via de longe, não via um homem; via o Lampião.

 

SuperPauta: Um dos homens mais fotografados do Sertão no seu tempo, o que sentia ao ver sua imagem imortalizada pelas máquinas de Benjamin Abrahão?

Lampião: Eu gostava. (Ele fala com simplicidade). Aquele rapaz, o Benjamin, ele não era meu prisioneiro. Ele era meu... (procura a palavra) ...meu cronista. Ele estava mostrando ao mundo quem nós éramos. O governo mandava jornal dizer que éramos bichos, monstros. As fotos mostravam o contrário: mostravam homens fortes, mulheres bonitas, bem-vestidos, armados, rezando. As fotos mostravam a ordem do cangaço. Eu estava posando era pra História, não era pra jornal.

 

SuperPauta: O senhor se via como um "justiceiro" ou como um "bandido"? O que não perdoava de jeito nenhum?

Lampião: Bandido? Bandido era a volante, que matava pai de família na frente dos filhos, queimava casa de pobre. Bandido era o governo, que só lembrava do sertão pra cobrar imposto. O governo dizia quem era o bandido. Mas no sertão, quem dizia o que era a justiça era eu. Eu fui a resposta. Eu fui a justiça que o sertanejo não tinha. Se me faziam o mal, eu devolvia o mal. Se me faziam o bem, eu devolvia o bem. O que eu não perdoo? (A voz fica dura). Duas coisas: traição e covardia. O homem que trai um amigo, ou que ataca um indefeso... esse não merece o ar que respira.

 

SuperPauta: Vamos voltar ao início. Como era o menino Virgulino, filho de "Seu" Zé Ferreira?

Lampião: (Ele olha para o horizonte de cal). Era um menino quieto. Um menino que gostava de trabalhar no couro, de fazer alpercata. "Seu" Zé, meu pai, era um homem direito, respeitado. Não era rico, mas não devia nada a ninguém. Era uma vida de trabalho, de roça, de carregar frete. Uma vida dura, mas uma vida honrada. Eu era um menino que sabia o meu lugar.

 

SuperPauta: O senhor trabalhava como vaqueiro na roça do seu pai, antes de entrar no cangaço. Como era a vida naquele tempo? Quais eram seus sonhos? Sente falta daquela vida antes do cangaço?

Lampião: Vaqueiro não. Eu era almocreve, levava carga nos burros. E mexia com couro, que era o que eu gostava. A vida era... (ele pensa) ...era limpa. O sonho era ter meu pedaço de terra, meu gado, minha família. O sonho era ser um homem como meu pai. (Ele faz uma pausa longa). Se eu sinto falta? Eu sinto falta da paz. Eu sinto falta de Virgulino. Mas o Virgulino mataram junto com meu pai.

 

SuperPauta: A morte do seu pai, assassinado pela polícia, foi a faísca que acendeu o Lampião? Foi vingança que o moveu? Se o seu pai não tivesse morrido daquele jeito, o senhor acha que Virgulino teria entrado no cangaço?

Lampião: (Ele bate o punho na pedra, uma única vez. O som é seco). Foi. A polícia... a volante de Zé Lucena... matou meu pai de graça. Um homem bom, um velho, que nunca fez mal. A "justiça" não fez nada. O governo não fez nada. Então, se o governo não me dava justiça, eu ia fazer a minha. Foi vingança, sim. Se meu pai tivesse morrido de velho, na cama dele, Virgulino hoje era um coronel, um homem de terra, respeitado lá em Serra Talhada. Mas a polícia não deixou. A polícia me fez. Lampião é filho da covardia da volante.

 

SuperPauta: O senhor é considerado um grande estrategista de guerrilha do Brasil. Como conseguia enganar centenas de "volantes" (policiais) comandando um grupo bem menor?

Lampião: (Ele sorri, agora com astúcia). A volante era burra. Eram homens de cidade, com bota pesada, que não conheciam o chão que pisavam. Eu... eu era a caatinga. Meus cabras eram a caatinga. A gente sabia onde a água brotava, onde a pedra dava esconderijo. Eu dividia o bando. Eles procuravam um grupo de cinquenta, eu dava a eles cinco grupos de dez. Quando eles chegavam, eu já tinha ido. E a volante andava com fome, com sede. Meu bando, não. Onde eu chegava, tinha água, tinha comida. Porque eu tinha a segunda coisa: a informação.

 

SuperPauta: Como funcionava a sua rede de "coiteiros"? Eles o ajudavam por medo ou por admiração? O senhor confiava em muita gente? Como era a sua relação com os Coronéis? O senhor era empregado deles ou eles eram seus "sócios"?

Lampião: O coiteiro ajudava pelos dois motivos. Uns tinham medo, sim. Sabiam que se me traíssem, a resposta era o fogo. Mas muito, muito coiteiro me ajudava por gosto, por admiração. Porque quando a volante tomava o bode de um pobre, eu ia lá e tomava dez vacas do coronel que mandou a volante. Eu era a justiça deles. Confiar? (Ele ri, um som seco). Confiava em poucos. Em Corisco, em Maria, em Antônio [irmão]. De resto, a gente vigiava. E Coronel... (Ele cospe de lado). Coronel não é amigo, é negócio. Eu nunca fui empregado. Eu era sócio. Eu limpava uma área pra ele, ele me dava munição, me dava proteção. Era uma troca. No dia que o negócio acabava, a amizade também.

 

SuperPauta: O senhor se arrepende de ter aceitado a patente de Capitão do "Batalhão Patriótico" de Padre Cícero para caçar a Coluna Prestes? Se sentiu usado pelo Governo naquela história? O que teria acontecido se os dois "capitães", o senhor e Prestes, tivessem se encontrado?

Lampião: Arrependo, não. Eu fui por causa do "Padrinho". O Padim Ciço era um santo, e pedido de santo a gente não nega. Mas que o governo me usou, usou. Deram patente, deram arma, e depois me chamaram de bandido de novo. Governo é assim mesmo, não tem palavra. (Ele coça o queixo). Se eu encontro esse Prestes? (Ele ri). Era bala. Eu não sei o que esse homem queria, com esse negócio de comunismo. Mas ele estava contra o governo, e eu também. Talvez a gente até conversasse. Mas no fim, o sertão só tem espaço para um Capitão. Era ele ou eu.

 

SuperPauta: De onde vinha a imensa fé que o fazia rezar terços, respeitar Padre Cícero... Como explicava a Deus os crimes que cometia e as mortes que causava?

Lampião: Crime? Eu não cometi crime. Eu cometi justiça. O terço na mão, meu filho, era pra me proteger da bala inimiga, da traição. A minha fé é a do sertanejo: Deus é bom, mas é justo. Deus castiga. Eu era só a ferramenta. A volante que matava inocente, o coronel que roubava terra de viúva... esses sim, tinham que se explicar com Deus. Eu só apressava o encontro.

 

SuperPauta: Vamos falar do Rio Grande do Norte. O senhor passeou por sete estados, mas o RN lhe foi amargo. Por que o senhor decidiu atacar Mossoró em 1927? Achou que a cidade ia se render fácil? Que iam pagar os 400 contos de réis que o senhor pediu?

Lampião: (A expressão dele muda. Fica séria, analítica). Mossoró. Foi. Aquele foi um dia... diferente. A gente decidiu atacar porque a cidade era rica. Tinha banco, tinha algodão. O plano era o de sempre: cercar, mandar o bilhete, pegar o dinheiro do imposto e ir embora. 400 contos. Achei que iam pagar, sim. Toda cidade pagava. Era melhor pagar a mim do que pagar ao governo.

 

SuperPauta: O senhor subestimou o povo de Mossoró? Esperava encontrar uma cidade inteira armada, com o prefeito de trincheira, pronta para a guerra?

Lampião: (Ele assente, lentamente. A primeira admissão de erro). Subestimei. Foi o meu erro. Eu esperava encontrar um prefeito com medo, um coronel querendo negociar. Eu não esperava encontrar o Prefeito Rodolfo Fernandes de rifle na mão, gritando na trincheira. O povo de Mossoró foi cabra-macho. Eles não me esperaram bater na porta. Eles me esperaram na janela.

 

SuperPauta: Fale-me daquele dia 13 de junho. O que deu errado no seu plano de ataque? Lembra do tiro que matou o cangaceiro "Colchete", ali na torre da Igreja de São Vicente? Foi ali que o senhor viu que a batalha estava perdida?

Lampião: O plano era bom. O ataque foi dividido. Mas eles estavam prontos. Eles sabiam onde a gente ia entrar. O tiro que pegou Colchete na torre... (Ele estreita os olhos). Aquilo foi um sinal. Aquele tiro não foi de um medroso. Foi de um atirador bom. Quando Colchete caiu, eu vi que o buraco era mais embaixo. A gente atirava, e eles respondiam de cada casa. Não era uma volante; era a cidade inteira atirando. A batalha não estava perdida, mas ia custar muito caro. Ia custar mais homem do que o dinheiro pagava.

 

SuperPauta: O senhor perdeu homens importantes. "Jararaca" foi capturado e, dizem, enterrado vivo. Aquele nível de crueldade da polícia o chocou? Ficou com ódio de Mossoró? Por que o senhor nunca mais tentou voltar ao Rio Grande do Norte?

Lampião: Jararaca. (A voz dele baixa). Um homem valente. O que a polícia fez com ele... (Ele balança a cabeça). Enterraram o homem vivo, depois de quebrar a clavícula dele. Isso choca? Não. Isso confirma o que eu sempre disse. A polícia era mais cruel do que eu. Eles me chamavam de monstro, mas quem enterrava homem vivo era eles. (Ele pondera). Ódio de Mossoró? Não. Respeito. Ódio eu tinha da volante. De Mossoró, eu tive respeito. Não voltei ao Rio Grande do Norte porque não valia a pena. O povo de lá era unido. Era um vespeiro que não se mexe à toa.

 

SuperPauta: Olhando daqui onde está, o que Mossoró tinha que as outras centenas de cidades que o senhor tomou não tinham? O que o senhor diria hoje ao povo de Mossoró?

Lampião: Tinha... (ele busca a palavra) ...tinha orgulho. As outras cidades tinham medo. Mossoró tinha orgulho. O Prefeito preferiu lutar a pagar. Isso eu entendo. O que eu diria a eles? (Ele dá um meio-sorriso). Diria que eles foram bons. Que naquele dia, eles defenderam o que era deles. E que tiveram sorte que eu decidi que o dinheiro não valia o sangue.

 

SuperPauta: Capitão, o senhor não imagina, mas eu criei uma espécie de ‘musical’ com esse episódio de Mossoró. O nome é “Sangue no Sertão – A Saga de Mossoró”.

Lampião: (Ele ergue uma sobrancelha, curioso e desconfiado). Musical? Feito aqueles de padre? História minha com música? (Ele parece intrigado). E o que diz essa... "saga"?

 

SuperPauta: Na história, Capitão, eu inventei um personagem. Um rapaz chamado Antônio, de Mossoró, que entra pro seu bando. Mas ele não entra por vingança, nem por justiça. Ele foi para o cangaço "por desilusão", por causa de uma moça chamada Clara. O que o senhor acha de um homem que vira cangaceiro por... "dor de cotovelo"? O senhor aceitava esse tipo de "cabra" no seu bando?

Lampião: (Ele me encara por um longo tempo, depois solta uma risada curta, seca. É puro desprezo). Dor de cotovelo? (Ele cospe no chão). Um homem que pega num rifle, que deixa a vida de cidadão, que bota a cara no sol quente... por causa de mulher que não quis ele? (Ele balança a cabeça). Isso é história de poeta. Isso não é história de homem. No meu bando, entrava quem tinha sido injustiçado pela polícia, quem tinha o sangue do pai pra vingar, quem não tinha mais o que comer. Se um "cabra" desses chegasse pra mim, eu mandava ele de volta pra barra da saia da mãe. O cangaço não era lugar pra menino chorando por amor.

 

SuperPauta: Mas a história piora, Capitão. Na hora do ataque a Mossoró, Antônio ouve o povo da cidade resistindo e decide desertar. A letra diz: "Eu vou sair do cangaço / Mossoró é meu lugar". Ele abandona o bando no meio da luta para defender a cidade. O que o senhor fazia com um desertor?

Lampião: (A expressão dele muda instantaneamente. O divertimento some. O olhar fica frio como aço). O quê? (A voz é baixa, ameaçadora). Ele o quê? (Ele se inclina para frente). Desertar. No meio do fogo? Trocar o bando, que deu comida e arma a ele, pela cidade que a gente tava atacando? (Ele fala devagar, como se explicasse o óbvio). O que eu fazia? O senhor sabe o que eu fazia. A primeira lei do cangaço é a lealdade. A segunda é a coragem. Quem quebra as duas... (Ele passa o polegar na unha do indicador, como se testasse uma faca). Esse aí não morria de tiro. Morria de exemplo. Tinha o destino de traidor. Na sua história, esse rapaz pode ser o herói. No meu bando, ele era um homem morto antes do sol se pôr.

 

SuperPauta: Nessa saga também escrevi músicas como se fosse o senhor cantando. Em uma delas, "Sou Lampião", o senhor diz: "Não quero glória, vou vingar meu algoz" e "Padim Ciço, escudo da minha sina". Nesses dois versos eu acertei?

Lampião: (Ele relaxa um pouco, a vaidade voltando. Ele assente com a cabeça, satisfeito). Acertou. (Um meio-sorriso). Aí o poeta teve juízo. É isso mesmo. Eu não queria glória, eu queria vingança. A vingança do meu pai, Zé Ferreira. E o Padim Ciço... (Ele instintivamente toca numa medalha imaginária no peito). ...esse era o meu escudo. O homem que tem a bênção do Padim de Juazeiro não teme "macaco", não teme bala. O corpo fecha. O senhor entendeu a minha fé.

 

SuperPauta: Mas tem outra música, Capitão... (pausa)... Ela se chama "Lamento de Lampião" . O senhor não me queira mal, é ficção, mas nela eu o imagino dizendo, depois da derrota em Mossoró: "Oh, sertão, eu me perdi / Na sede da minha ambição / Quis roubar fama e poder / Só ganhei desilusão". E termina o senhor dizendo "Sou só um homem que errou". Capitão... o senhor se arrependeu? O senhor "errou" ao atacar Mossoró?

Lampião: (Ele me fuzila com os olhos. A raiva voltou, mas é uma raiva fria, ofendida). O quê? "Lamento"? "Homem que errou"? (Ele ri, mas sem humor algum). Que besteira. Que conversa mole! (Ele se ajeita na pedra, irritado). Eu nunca me perdi. Eu sempre soube o meu caminho. "Ambição"? Eu cobrava o imposto que o governo roubava! "Desilusão"? Eu saí de Mossoró porque o negócio não valia o preço. Foi uma decisão de chefe, não foi um "lamento" de beato! (Ele aponta o dedo para mim). Escute bem, moço. Eu nunca me arrependi de Mossoró. Eu respeitei o povo de lá, que foi valente. Mas arrependimento? Erro? Isso é palavra de homem fraco. Isso é o que o senhor quer que eu diga. Eu fui o Capitão Virgulino. Eu não me arrependi de nada. Eu fiz.

 

SuperPauta: Mudemos, então, de assunto. A chegada de Maria Bonita mudou o cangaço? Como o senhor a conheceu? Foi amor de verdade? Ela era valente como dizem? Atirava, lutava?

Lampião: (A expressão suaviza pela primeira vez. Ele olha para as próprias mãos). Maria. Maria de Déa. Ela mudou foi a mim. O cangaço ganhou uma Rainha. Eu a conheci na casa do pai dela. E foi amor, sim. Amor de verdade, amor de sertão, que é fundo e não se acaba. Ela era mais valente que muito homem que eu conheci. Atirava? Atirava, sim. Lutava. Morreu lutando. Ela não era uma mulher que seguia o bando; ela era uma mulher que liderava comigo.

 

SuperPauta: A presença de mulheres no bando, como Maria Bonita e Dadá, "amoleceu" os cangaceiros ou deu mais força? O senhor era um homem ciumento?

Lampião: Deu força. Deu família. O cabra que tinha a mulher dele ali, lutava com mais vontade. Lutava por ele e por ela. Amoleceu? (Ele ri). Fez foi o contrário. Fez o bando ter mais regra. E ciumento? (Ele me olha, sério). Um homem tem que zelar pelo que é seu. Minha mulher era minha. E eu era dela. Ninguém olhava torto.

 

SuperPauta: E sua filha, Expedita? O senhor se arrepende de não a ter visto crescer? O senhor era um homem carinhoso com Maria, longe das vistas do bando?

Lampião: (Ele desvia o olhar. Este é o ponto fraco). Isso... isso é o que pesa. Deixar minha filha... foi o sacrifício. Mas foi pra salvar ela. A vida de cangaço não é vida pra criança. Eu me arrependo de não ter visto. Mas foi o jeito. (Ele se recupera). Com Maria... longe dos outros... (um suspiro quase inaudível). Eu era Virgulino. Só Virgulino.

 

SuperPauta: Capitão, sua fama é de crueldade. O senhor marcou homens com ferro quente, sangrou soldados, cortou orelhas. Por quê? Era para dar o exemplo? Para espalhar o terror? O senhor se arrepende de alguma morte específica? Alguma que o senhor fez e que hoje vê que foi um erro, uma injustiça?

Lampião: (O olhar volta a ser aço). O mundo entende a força. O sertão entende a marca. A volante não entendia bilhete bonito. Ela entendia o exemplo. Eu marquei traidor, sim. Eu sangrei volante, sim. Era a minha imprensa. Quando um homem via a marca, ele sabia: "Aqui passou Lampião, e ele não perdoa traição". O terror é uma ferramenta. Se eu me arrependo? (Ele pensa). Me arrependo de inocente que morreu no fogo cruzado. Isso acontece na guerra. Mas de volante? De traidor? (Ele nega com a cabeça). Nenhuma. Eu fui o remédio amargo que o sertão precisava.

 

SuperPauta: Dizem que o senhor era o "Robin Hood do Sertão". O senhor roubava dos ricos e dava aos pobres? Ou o senhor roubava dos ricos e dava... ao seu bando?

Lampião: (Ele ri, divertido). Isso é história de livro. Eu não era São Francisco, não. Eu roubava do rico, sim. De coronel que explorava o povo, de armazém grande. Mas eu tinha um exército pra manter. Eu tinha mais de 50, 80 bocas pra alimentar. Eu comprava munição, comprava remédio, comprava pano, pagava coiteiro. O dinheiro era pra máquina funcionar. Se sobrava, eu ajudava uma viúva aqui, um pobre ali. Mas não era a minha primeira regra. A minha primeira regra era sobreviver.

 

SuperPauta: O senhor se via como um "vingador social" ou como um homem cuidando da sua própria vida e dos seus? O povo do sertão... eles o amavam ou o temiam?

Lampião: Eu comecei como um vingador pessoal. A morte do meu pai. Mas no caminho, eu vi a fome, eu vi a injustiça. Virei vingador do povo. O povo? (Ele sorri). Os dois. O povo precisa ter medo pra poder respeitar. E precisa de respeito pra poder amar. Eles me temiam o suficiente para não me trair, e me amavam o suficiente para me esconder.

 

SuperPauta: Quem foi seu maior inimigo? A polícia? Zé Rufino? Ou os coronéis que o traíam?

Lampião: A polícia era o meu trabalho. Zé Rufino era só um cão de caça bom. Meu inimigo de verdade, o que me roía por dentro, era a traição. O coronel que me dava a mão e me entregava pelas costas. O coiteiro que comia do meu prato e me vendia por dez tostões. A bala da volante eu via chegar. A traição, não.

 

SuperPauta: Vamos para 28 de julho de 1938. Angicos, em Sergipe. O senhor se sentia seguro ali? O senhor foi traído? O coiteiro Pedro de Cândido o entregou? O senhor relaxou na segurança? Foi pego dormindo?

Lampião: (Ele fecha os olhos por um segundo). Angicos. A gente estava seguro. Era um lugar bom. (Ele abre os olhos, e eles estão frios). Fomos traídos. O coiteiro. Vendeu a gente. A gente não relaxou. A gente... (ele hesita) ...confiou. O bando estava grande, pesado. Com as mulheres, com as coisas. A gente parou um dia a mais. Foi o erro. Não fomos pegos dormindo. Fomos pegos acordando.

 

SuperPauta: O que o senhor pensou quando ouviu o primeiro tiro da "volante" de Zé Rufino, usando as metralhadoras? Foi uma luta justa? O senhor foi o primeiro a cair? O senhor viu Maria Bonita morrer?

Lampião: (A voz dele é um sussurro grave). Eu pensei: "Acabou". Aquilo não era tiro de rifle. Era uma máquina. (Ele cospe). Luta justa? De jeito nenhum. Aquilo foi um massacre. Eles não vieram pra prender. Vieram pra matar. Eu caí primeiro. Um tiro aqui. (Ele aponta para o peito/barriga). Foi rápido. Não vi Maria cair. Graças a Deus, não vi.

 

SuperPauta: O que o senhor sentiu ao ver suas cabeças cortadas, expostas em praça pública? O cangaço morreu com o senhor? Se não tivesse ocorrido o episódio em Angicos, qual seria o seu fim? O senhor se entregaria um dia?

Lampião: O que eu senti foi nojo. Os "civilizados", os "doutores", fizeram pior que o bicho. Mostraram as cabeças como troféu. Isso é coisa de covarde. O cangaço não morreu ali. Morreu quando o mundo mudou. Getúlio [Vargas] estava mudando o Brasil. Veio o rádio, a estrada, o caminhão. O sertão estava ficando pequeno. O cangaço não tinha mais onde se esconder. Meu fim? (Ele olha o rifle imaginário). Meu fim era de bala. Um homem como eu não morre de velho na cama. Se entregar? (Ele ri). Jamais.

 

SuperPauta: Capitão, o senhor virou lenda. O "Rei do Cangaço" também virou música de Luiz Gonzaga, filme, livro. O senhor gosta dessa fama? O senhor se vê como um herói ou um vilão, olhando para a história?

Lampião: Gosto. Diferente de você, o Gonzagão me entendeu. Ele cantou o homem, não o bandido. A história... (ele dá de ombros) ...a história é escrita pelo vencedor. Eu perdi a guerra, mas ganhei a fama. Herói? Vilão? Isso é palavra de doutor. Eu fui um homem do meu tempo. Fui o que a vida e a polícia me obrigaram a ser.

 

SuperPauta: O sertão de hoje mudou. Tem luz, asfalto, internet. O cangaço como o seu seria possível hoje? O sertão de hoje ainda precisa de um Lampião? A justiça melhorou por lá?

Lampião: Hoje? (Ele ri alto). De jeito nenhum. Um "drone" desses me achava em dez minutos. Um telefone entregava meu esconderijo na mesma hora. Impossível. Se o sertão precisa de um Lampião? Não. O sertão precisa de justiça. (Ele fica sério). A justiça melhorou? Melhorou o asfalto, a luz chegou. Mas a balança do homem rico ainda pesa mais que a do pobre. A justiça ainda é torta.

 

SuperPauta: A pedido do leitor Marconi Lima, de Icapuí, Ceará, eu pergunto: Capitão, hoje em dia existem outros tipos de "cangaço". Nos morros do Rio de Janeiro, há grupos armados, como o tal "Comando Vermelho", que desafiam o Estado. Eles controlam territórios, assim como o senhor fazia. Olhando de onde está, o senhor vê alguma semelhança?

Lampião: (Ele franze o cenho. O desprezo é visível). Eu vejo a semelhança no desafio. Eles mandam no morro, eu mandava na caatinga. O Estado não entra. A semelhança para aí.

 

SuperPauta: A "lei" desses morros é diferente da lei do Governo. Mas o senhor acha que a honra é a mesma? O que o senhor acha desses homens que vendem "pó" (drogas) e atiram em moradores?

Lampião: Honra? Que honra? (Ele cospe no chão seco). Meu cangaço era pela terra, pela vingança, pela palavra. A gente não mexia com mulher de família. A gente não matava por vício. Esse povo de hoje briga por um que mata a alma, que destrói a juventude. Eles vendem veneno pro próprio povo. Eles atiram em morador? No meu tempo, quem me ajudava era sagrado. Isso não é cangaço. Isso é podridão.

 

SuperPauta: O senhor reconhece o "Novo Cangaço" como seus "netos"? Eles usam o seu nome, Capitão? Eles sujam a sua história? O que o senhor diria a um jovem pobre do sertão de hoje que pensa em virar bandido?

Lampião: Netos meus? (Ele se levanta, irritado pela primeira vez). De jeito nenhum! Bando de covarde! Invadem cidade, explodem banco e botam o povo na frente, de escudo! Eu botava era o meu peito na frente dos meus cabras! Eles são ladrões de dinheiro. Ladrões comuns. Eles sujam meu nome, sim. Eles não têm honra. (Ele se vira para a câmera imaginária). Ao jovem? Eu digo: Estude. Aprenda um ofício. Seja mais esperto que o sistema. Não pegue num rifle. O rifle é uma ferramenta maldita. Ele só tem um fim: o buraco. Ou a vergonha. Use a cabeça. A cabeça é a melhor arma que Deus lhe deu.

 

SuperPauta: O que o senhor quer que o Brasil se lembre sobre Virgulino Ferreira da Silva?

Lampião: (Ele volta a se sentar, ajeita o chapéu, a calma retornando). Quero que se lembrem de Virgulino. O homem que foi feito de pedra pela injustiça, mas que tinha palavra. O homem que amou uma mulher, que defendeu os seus. Quero que lembrem que eu não baixei a cabeça pra governo nenhum. Eu fui... o Rei. E no meu reino, a minha lei era a honra.

 



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