Encontros Impossíveis
O Evangelho do Bacamarte
Virgulino Ferreira retorna com a fúria e a astúcia que impuseram uma nova lei ao sertão, mantendo esta conversa imaginária com o SuperPauta sobre a vingança que o forjou, a derrota histórica em Mossoró e o código de honra que, em sua visão, o separa do banditismo moderno.
"Eu sou
cangaceiro pela maldade dos outros" – Lampião
O ar não se move. O encontro se dá numa caatinga
suspensa no tempo, onde o sol não castiga, mas a luz é branca e dura, como cal.
O cheiro não é de flor de mandacaru, mas de poeira seca, couro curtido e
pólvora fria. Ele não surge como um fantasma; ele simplesmente está lá,
sentado numa pedra, como se nos esperasse há 70 anos. Virgulino Ferreira da
Silva não é uma assombração; é um fato. Veste o gibão de couro bordado, os
anéis brilham, e o chapéu de abas largas sombreia os olhos que, diziam,
enxergavam no escuro. A voz não é um grito. É um trovão baixo, arrastado pelo
sol, acostumado a dar ordens que não podem ser desobedecidas. Cada palavra tem
o peso de uma bala.
Nesta conversa impossível, Lampião fala sobre a
vaidade que o fez ser fotografado por Benjamin Abrahão, a estratégia militar
que humilhou as volantes e a tática dos coiteiros. Ele detalha, pela primeira
vez, sua maior derrota militar: a invasão de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Ele relembra a crueldade de ambos os lados, a morte de Jararaca, o amor por
Maria Bonita e a traição final em Angicos. No clímax do encontro, o "Rei
do Cangaço" analisa o crime moderno, renegando o "Novo Cangaço"
e o Comando Vermelho. (Roberto Homem)
SuperPauta: Como prefere ser chamado? Virgulino, Capitão ou Lampião? A propósito, de
onde veio o apelido "Lampião"?
Lampião: (Ele ajeita
o chapéu, os anéis brilhando contra o couro). Virgulino era o menino. Capitão é
o respeito que ganhei. Mas Lampião... Lampião é o nome da guerra. Pode me
chamar de Capitão. O apelido veio da rapidez, meu filho. O rifle na minha mão,
de noite, atirando sem parar... os "cabras" diziam que parecia um candeeiro,
um lampião clareando a escuridão. E clareou mesmo. Clareou o sertão e mostrou
quem mandava.
SuperPauta: O senhor era vaidoso. Usava perfume francês, anéis, lenço bordado, chapéu enfeitado. De onde vinha esse gosto pelo belo no meio de tanta dureza?
Lampião: (Ele sorri,
um sorriso fino, quase orgulhoso). O sertanejo é bonito. O vaqueiro, quando vai
pra festa, bota a melhor roupa de couro. Eu vivia em festa. Vivia em guerra, o
que dá no mesmo. A dureza tá por fora, no sol, na pedra. Mas por dentro, o
homem gosta do que é bom. O perfume? (Ele cheira o próprio punho, por
instinto). Era pra sentir cheiro de gente, não de poeira. O chapéu bordado, as
moedas, os anéis... era a minha farda. Era a coroa. Um Rei tem que se
apresentar como Rei. A volante, quando me via de longe, não via um homem; via o
Lampião.
SuperPauta: Um dos homens mais fotografados do Sertão no seu tempo, o que sentia ao ver sua imagem imortalizada pelas máquinas de Benjamin Abrahão?
Lampião: Eu gostava.
(Ele fala com simplicidade). Aquele rapaz, o Benjamin, ele não era meu
prisioneiro. Ele era meu... (procura a palavra) ...meu cronista. Ele estava
mostrando ao mundo quem nós éramos. O governo mandava jornal dizer que éramos
bichos, monstros. As fotos mostravam o contrário: mostravam homens fortes,
mulheres bonitas, bem-vestidos, armados, rezando. As fotos mostravam a ordem
do cangaço. Eu estava posando era pra História, não era pra jornal.
SuperPauta: O senhor se via como um "justiceiro" ou como um
"bandido"? O que não perdoava de jeito nenhum?
Lampião: Bandido?
Bandido era a volante, que matava pai de família na frente dos filhos, queimava
casa de pobre. Bandido era o governo, que só lembrava do sertão pra cobrar
imposto. O governo dizia quem era o bandido. Mas no sertão, quem dizia o que
era a justiça era eu. Eu fui a resposta. Eu fui a justiça que o
sertanejo não tinha. Se me faziam o mal, eu devolvia o mal. Se me faziam o bem,
eu devolvia o bem. O que eu não perdoo? (A voz fica dura). Duas coisas: traição e covardia. O homem que trai um amigo, ou que ataca um indefeso...
esse não merece o ar que respira.
SuperPauta: Vamos voltar ao início. Como era o menino Virgulino, filho de
"Seu" Zé Ferreira?
Lampião: (Ele olha
para o horizonte de cal). Era um menino quieto. Um menino que gostava de
trabalhar no couro, de fazer alpercata. "Seu" Zé, meu pai, era um
homem direito, respeitado. Não era rico, mas não devia nada a ninguém. Era uma
vida de trabalho, de roça, de carregar frete. Uma vida dura, mas uma vida honrada.
Eu era um menino que sabia o meu lugar.
SuperPauta: O senhor trabalhava como vaqueiro na roça do seu pai, antes de entrar no cangaço. Como era a vida naquele tempo? Quais eram seus sonhos? Sente falta daquela vida antes do cangaço?
Lampião: Vaqueiro
não. Eu era almocreve, levava carga nos burros. E mexia com couro, que era o
que eu gostava. A vida era... (ele pensa) ...era limpa. O sonho era ter
meu pedaço de terra, meu gado, minha família. O sonho era ser um homem como meu
pai. (Ele faz uma pausa longa). Se eu sinto falta? Eu sinto falta da paz. Eu
sinto falta de Virgulino. Mas o Virgulino mataram junto com meu pai.
SuperPauta: A morte do seu pai, assassinado pela polícia, foi a faísca que acendeu o
Lampião? Foi vingança que o moveu? Se o seu pai não tivesse morrido daquele
jeito, o senhor acha que Virgulino teria entrado no cangaço?
Lampião: (Ele bate o
punho na pedra, uma única vez. O som é seco). Foi. A polícia... a volante de Zé
Lucena... matou meu pai de graça. Um homem bom, um velho, que nunca fez mal. A
"justiça" não fez nada. O governo não fez nada. Então, se o governo
não me dava justiça, eu ia fazer a minha. Foi vingança, sim. Se meu pai
tivesse morrido de velho, na cama dele, Virgulino hoje era um coronel, um homem
de terra, respeitado lá em Serra Talhada. Mas a polícia não deixou. A polícia me
fez. Lampião é filho da covardia da volante.
SuperPauta: O senhor é considerado um grande estrategista de guerrilha do Brasil. Como conseguia enganar centenas de "volantes" (policiais) comandando um grupo bem menor?
Lampião: (Ele sorri,
agora com astúcia). A volante era burra. Eram homens de cidade, com bota
pesada, que não conheciam o chão que pisavam. Eu... eu era a caatinga. Meus
cabras eram a caatinga. A gente sabia onde a água brotava, onde a pedra dava
esconderijo. Eu dividia o bando. Eles procuravam um grupo de cinquenta, eu dava
a eles cinco grupos de dez. Quando eles chegavam, eu já tinha ido. E a volante
andava com fome, com sede. Meu bando, não. Onde eu chegava, tinha água, tinha
comida. Porque eu tinha a segunda coisa: a informação.
SuperPauta: Como funcionava a sua rede de "coiteiros"? Eles o ajudavam por
medo ou por admiração? O senhor confiava em muita gente? Como era a sua relação
com os Coronéis? O senhor era empregado deles ou eles eram seus
"sócios"?
Lampião: O coiteiro
ajudava pelos dois motivos. Uns tinham medo, sim. Sabiam que se me traíssem, a
resposta era o fogo. Mas muito, muito coiteiro me ajudava por gosto, por
admiração. Porque quando a volante tomava o bode de um pobre, eu ia lá e
tomava dez vacas do coronel que mandou a volante. Eu era a justiça deles.
Confiar? (Ele ri, um som seco). Confiava em poucos. Em Corisco, em Maria, em
Antônio [irmão]. De resto, a gente vigiava. E Coronel... (Ele cospe de
lado). Coronel não é amigo, é negócio. Eu nunca fui empregado. Eu era
sócio. Eu limpava uma área pra ele, ele me dava munição, me dava proteção. Era
uma troca. No dia que o negócio acabava, a amizade também.
SuperPauta: De onde vinha a imensa fé que o fazia rezar terços, respeitar Padre
Cícero... Como explicava a Deus os crimes que cometia e as mortes que causava?
Lampião: Crime? Eu
não cometi crime. Eu cometi justiça. O terço na mão, meu filho, era pra
me proteger da bala inimiga, da traição. A minha fé é a do sertanejo: Deus é
bom, mas é justo. Deus castiga. Eu era só a ferramenta. A volante que matava
inocente, o coronel que roubava terra de viúva... esses sim, tinham que se
explicar com Deus. Eu só apressava o encontro.
SuperPauta: Vamos falar do Rio Grande do Norte. O senhor passeou por sete estados,
mas o RN lhe foi amargo. Por que o senhor decidiu atacar Mossoró em 1927? Achou
que a cidade ia se render fácil? Que iam pagar os 400 contos de réis que o
senhor pediu?
Lampião: (A
expressão dele muda. Fica séria, analítica). Mossoró. Foi. Aquele foi um dia...
diferente. A gente decidiu atacar porque a cidade era rica. Tinha banco, tinha
algodão. O plano era o de sempre: cercar, mandar o bilhete, pegar o dinheiro do
imposto e ir embora. 400 contos. Achei que iam pagar, sim. Toda cidade pagava.
Era melhor pagar a mim do que pagar ao governo.
SuperPauta: O senhor subestimou o povo de Mossoró? Esperava encontrar uma cidade inteira armada, com o prefeito de trincheira, pronta para a guerra?
Lampião: (Ele
assente, lentamente. A primeira admissão de erro). Subestimei. Foi o meu erro.
Eu esperava encontrar um prefeito com medo, um coronel querendo negociar. Eu
não esperava encontrar o Prefeito Rodolfo Fernandes de rifle na mão, gritando
na trincheira. O povo de Mossoró foi cabra-macho. Eles não me esperaram
bater na porta. Eles me esperaram na janela.
SuperPauta: Fale-me daquele dia 13 de junho. O que deu errado no seu plano de ataque?
Lembra do tiro que matou o cangaceiro "Colchete", ali na torre da
Igreja de São Vicente? Foi ali que o senhor viu que a batalha estava perdida?
Lampião: O plano era
bom. O ataque foi dividido. Mas eles estavam prontos. Eles sabiam onde a
gente ia entrar. O tiro que pegou Colchete na torre... (Ele estreita os olhos).
Aquilo foi um sinal. Aquele tiro não foi de um medroso. Foi de um atirador bom.
Quando Colchete caiu, eu vi que o buraco era mais embaixo. A gente atirava, e
eles respondiam de cada casa. Não era uma volante; era a cidade
inteira atirando. A batalha não estava perdida, mas ia custar muito caro. Ia
custar mais homem do que o dinheiro pagava.
SuperPauta: O senhor perdeu homens importantes. "Jararaca" foi capturado e,
dizem, enterrado vivo. Aquele nível de crueldade da polícia o chocou? Ficou com
ódio de Mossoró? Por que o senhor nunca mais tentou voltar ao Rio Grande do
Norte?
Lampião: Jararaca.
(A voz dele baixa). Um homem valente. O que a polícia fez com ele... (Ele
balança a cabeça). Enterraram o homem vivo, depois de quebrar a clavícula dele.
Isso choca? Não. Isso confirma o que eu sempre disse. A polícia era mais
cruel do que eu. Eles me chamavam de monstro, mas quem enterrava homem vivo era
eles. (Ele pondera). Ódio de Mossoró? Não. Respeito. Ódio eu tinha da
volante. De Mossoró, eu tive respeito. Não voltei ao Rio Grande do Norte porque
não valia a pena. O povo de lá era unido. Era um vespeiro que não se mexe à
toa.
SuperPauta: Olhando daqui onde está, o que Mossoró tinha que as outras centenas de
cidades que o senhor tomou não tinham? O que o senhor diria hoje ao povo de
Mossoró?
Lampião: Tinha...
(ele busca a palavra) ...tinha orgulho. As outras cidades tinham medo.
Mossoró tinha orgulho. O Prefeito preferiu lutar a pagar. Isso eu entendo. O
que eu diria a eles? (Ele dá um meio-sorriso). Diria que eles foram bons. Que
naquele dia, eles defenderam o que era deles. E que tiveram sorte que eu decidi
que o dinheiro não valia o sangue.
SuperPauta: Capitão, o senhor não imagina, mas eu criei uma
espécie de ‘musical’ com esse episódio de Mossoró. O nome é “Sangue no Sertão –
A Saga de Mossoró”.
Lampião: (Ele ergue uma sobrancelha, curioso e
desconfiado). Musical? Feito aqueles de padre? História minha com música? (Ele
parece intrigado). E o que diz essa... "saga"?
SuperPauta: Na história, Capitão, eu inventei um personagem.
Um rapaz chamado Antônio, de Mossoró, que entra pro seu bando. Mas ele não
entra por vingança, nem por justiça. Ele foi para o cangaço "por
desilusão", por causa de uma moça chamada Clara. O que o senhor acha de um
homem que vira cangaceiro por... "dor de cotovelo"? O senhor aceitava
esse tipo de "cabra" no seu bando?
Lampião: (Ele me encara por um longo tempo, depois solta
uma risada curta, seca. É puro desprezo). Dor de cotovelo? (Ele cospe no chão).
Um homem que pega num rifle, que deixa a vida de cidadão, que bota a cara no
sol quente... por causa de mulher que não quis ele? (Ele balança a cabeça).
Isso é história de poeta. Isso não é história de homem. No meu bando, entrava
quem tinha sido injustiçado pela polícia, quem tinha o sangue do pai pra
vingar, quem não tinha mais o que comer. Se um "cabra" desses
chegasse pra mim, eu mandava ele de volta pra barra da saia da mãe. O cangaço
não era lugar pra menino chorando por amor.
SuperPauta: Mas a história piora, Capitão. Na hora do ataque
a Mossoró, Antônio ouve o povo da cidade resistindo e decide desertar. A letra
diz: "Eu vou sair do cangaço / Mossoró é meu lugar". Ele abandona o
bando no meio da luta para defender a cidade. O que o senhor fazia com um
desertor?
Lampião: (A expressão dele muda instantaneamente. O
divertimento some. O olhar fica frio como aço). O quê? (A voz é baixa,
ameaçadora). Ele o quê? (Ele se inclina para frente). Desertar. No meio do
fogo? Trocar o bando, que deu comida e arma a ele, pela cidade que a gente tava
atacando? (Ele fala devagar, como se explicasse o óbvio). O que eu fazia? O
senhor sabe o que eu fazia. A primeira lei do cangaço é a lealdade. A segunda é
a coragem. Quem quebra as duas... (Ele passa o polegar na unha do indicador,
como se testasse uma faca). Esse aí não morria de tiro. Morria de exemplo.
Tinha o destino de traidor. Na sua história, esse rapaz pode ser o herói. No
meu bando, ele era um homem morto antes do sol se pôr.
SuperPauta: Nessa saga também escrevi músicas como se fosse o
senhor cantando. Em uma delas, "Sou Lampião", o senhor diz: "Não
quero glória, vou vingar meu algoz" e "Padim Ciço, escudo da minha
sina". Nesses dois versos eu acertei?
Lampião: (Ele relaxa um pouco, a vaidade voltando. Ele
assente com a cabeça, satisfeito). Acertou. (Um meio-sorriso). Aí o poeta teve
juízo. É isso mesmo. Eu não queria glória, eu queria vingança. A vingança do
meu pai, Zé Ferreira. E o Padim Ciço... (Ele instintivamente toca numa medalha
imaginária no peito). ...esse era o meu escudo. O homem que tem a bênção do
Padim de Juazeiro não teme "macaco", não teme bala. O corpo fecha. O
senhor entendeu a minha fé.
SuperPauta: Mas tem outra música, Capitão... (pausa)... Ela
se chama "Lamento de Lampião" . O senhor não me queira mal, é ficção,
mas nela eu o imagino dizendo, depois da derrota em Mossoró: "Oh, sertão,
eu me perdi / Na sede da minha ambição / Quis roubar fama e poder / Só ganhei
desilusão". E termina o senhor dizendo "Sou só um homem que
errou". Capitão... o senhor se arrependeu? O senhor "errou" ao
atacar Mossoró?
Lampião: (Ele me fuzila com os olhos. A raiva voltou, mas
é uma raiva fria, ofendida). O quê? "Lamento"? "Homem que
errou"? (Ele ri, mas sem humor algum). Que besteira. Que conversa mole!
(Ele se ajeita na pedra, irritado). Eu nunca me perdi. Eu sempre soube o meu
caminho. "Ambição"? Eu cobrava o imposto que o governo roubava!
"Desilusão"? Eu saí de Mossoró porque o negócio não valia o preço.
Foi uma decisão de chefe, não foi um "lamento" de beato! (Ele aponta
o dedo para mim). Escute bem, moço. Eu nunca me arrependi de Mossoró. Eu
respeitei o povo de lá, que foi valente. Mas arrependimento? Erro? Isso é
palavra de homem fraco. Isso é o que o senhor quer que eu diga. Eu fui o
Capitão Virgulino. Eu não me arrependi de nada. Eu fiz.
SuperPauta: Mudemos, então, de assunto. A chegada de Maria Bonita mudou o cangaço? Como o senhor a conheceu? Foi amor de verdade? Ela era valente como dizem? Atirava, lutava?
Lampião: (A
expressão suaviza pela primeira vez. Ele olha para as próprias mãos). Maria.
Maria de Déa. Ela mudou foi a mim. O cangaço ganhou uma Rainha. Eu a
conheci na casa do pai dela. E foi amor, sim. Amor de verdade, amor de sertão,
que é fundo e não se acaba. Ela era mais valente que muito homem que eu
conheci. Atirava? Atirava, sim. Lutava. Morreu lutando. Ela não era uma mulher
que seguia o bando; ela era uma mulher que liderava comigo.
SuperPauta: A presença de mulheres no bando, como Maria Bonita e Dadá, "amoleceu" os cangaceiros ou deu mais força? O senhor era um homem ciumento?
Lampião: Deu força.
Deu família. O cabra que tinha a mulher dele ali, lutava com mais
vontade. Lutava por ele e por ela. Amoleceu? (Ele ri). Fez foi o contrário. Fez
o bando ter mais regra. E ciumento? (Ele me olha, sério). Um homem tem que
zelar pelo que é seu. Minha mulher era minha. E eu era dela. Ninguém olhava
torto.
SuperPauta: E sua filha, Expedita? O senhor se arrepende de não a ter visto crescer?
O senhor era um homem carinhoso com Maria, longe das vistas do bando?
Lampião: (Ele desvia
o olhar. Este é o ponto fraco). Isso... isso é o que pesa. Deixar minha
filha... foi o sacrifício. Mas foi pra salvar ela. A vida de cangaço não é vida
pra criança. Eu me arrependo de não ter visto. Mas foi o jeito. (Ele se
recupera). Com Maria... longe dos outros... (um suspiro quase inaudível). Eu
era Virgulino. Só Virgulino.
SuperPauta: Capitão, sua fama é de crueldade. O senhor marcou homens com ferro
quente, sangrou soldados, cortou orelhas. Por quê? Era para dar o exemplo? Para
espalhar o terror? O senhor se arrepende de alguma morte específica? Alguma que
o senhor fez e que hoje vê que foi um erro, uma injustiça?
Lampião: (O olhar
volta a ser aço). O mundo entende a força. O sertão entende a marca. A volante
não entendia bilhete bonito. Ela entendia o exemplo. Eu marquei traidor,
sim. Eu sangrei volante, sim. Era a minha imprensa. Quando um homem via
a marca, ele sabia: "Aqui passou Lampião, e ele não perdoa traição".
O terror é uma ferramenta. Se eu me arrependo? (Ele pensa). Me arrependo de
inocente que morreu no fogo cruzado. Isso acontece na guerra. Mas de volante?
De traidor? (Ele nega com a cabeça). Nenhuma. Eu fui o remédio amargo que o
sertão precisava.
SuperPauta: Dizem que o senhor era o "Robin Hood do Sertão". O senhor
roubava dos ricos e dava aos pobres? Ou o senhor roubava dos ricos e dava... ao
seu bando?
Lampião: (Ele ri,
divertido). Isso é história de livro. Eu não era São Francisco, não. Eu roubava
do rico, sim. De coronel que explorava o povo, de armazém grande. Mas eu tinha
um exército pra manter. Eu tinha mais de 50, 80 bocas pra alimentar. Eu
comprava munição, comprava remédio, comprava pano, pagava coiteiro. O dinheiro
era pra máquina funcionar. Se sobrava, eu ajudava uma viúva aqui, um
pobre ali. Mas não era a minha primeira regra. A minha primeira regra era sobreviver.
SuperPauta: O senhor se via como um "vingador social" ou como um homem
cuidando da sua própria vida e dos seus? O povo do sertão... eles o amavam ou o
temiam?
Lampião: Eu comecei
como um vingador pessoal. A morte do meu pai. Mas no caminho, eu vi a
fome, eu vi a injustiça. Virei vingador do povo. O povo? (Ele sorri). Os dois.
O povo precisa ter medo pra poder respeitar. E precisa de respeito pra poder
amar. Eles me temiam o suficiente para não me trair, e me amavam o suficiente
para me esconder.
SuperPauta: Quem foi seu maior inimigo? A polícia? Zé Rufino? Ou os coronéis que o
traíam?
Lampião: A polícia
era o meu trabalho. Zé Rufino era só um cão de caça bom. Meu inimigo de
verdade, o que me roía por dentro, era a traição. O coronel que me dava a mão e me entregava pelas costas.
O coiteiro que comia do meu prato e me vendia por dez tostões. A bala da
volante eu via chegar. A traição, não.
SuperPauta: Vamos para 28 de julho de 1938. Angicos, em Sergipe. O senhor se sentia seguro ali? O senhor foi traído? O coiteiro Pedro de Cândido o entregou? O senhor relaxou na segurança? Foi pego dormindo?
Lampião: (Ele fecha
os olhos por um segundo). Angicos. A gente estava seguro. Era um lugar bom.
(Ele abre os olhos, e eles estão frios). Fomos traídos. O coiteiro. Vendeu a
gente. A gente não relaxou. A gente... (ele hesita) ...confiou. O bando estava
grande, pesado. Com as mulheres, com as coisas. A gente parou um dia a mais.
Foi o erro. Não fomos pegos dormindo. Fomos pegos acordando.
SuperPauta: O que o senhor pensou quando ouviu o primeiro tiro da "volante"
de Zé Rufino, usando as metralhadoras? Foi uma luta justa? O senhor foi o
primeiro a cair? O senhor viu Maria Bonita morrer?
Lampião: (A voz dele
é um sussurro grave). Eu pensei: "Acabou". Aquilo não era tiro de
rifle. Era uma máquina. (Ele cospe). Luta justa? De jeito nenhum. Aquilo
foi um massacre. Eles não vieram pra prender. Vieram pra matar. Eu caí
primeiro. Um tiro aqui. (Ele aponta para o peito/barriga). Foi rápido. Não vi
Maria cair. Graças a Deus, não vi.
SuperPauta: O que o senhor sentiu ao ver suas cabeças cortadas, expostas em praça
pública? O cangaço morreu com o senhor? Se não tivesse ocorrido o episódio em
Angicos, qual seria o seu fim? O senhor se entregaria um dia?
Lampião: O que eu
senti foi nojo. Os "civilizados", os "doutores", fizeram
pior que o bicho. Mostraram as cabeças como troféu. Isso é coisa de covarde. O
cangaço não morreu ali. Morreu quando o mundo mudou. Getúlio [Vargas] estava
mudando o Brasil. Veio o rádio, a estrada, o caminhão. O sertão estava ficando pequeno.
O cangaço não tinha mais onde se esconder. Meu fim? (Ele olha o rifle
imaginário). Meu fim era de bala. Um homem como eu não morre de velho na cama.
Se entregar? (Ele ri). Jamais.
SuperPauta: Capitão, o senhor virou lenda. O "Rei do Cangaço" também virou
música de Luiz Gonzaga, filme, livro. O senhor gosta dessa fama? O senhor se vê
como um herói ou um vilão, olhando para a história?
Lampião: Gosto. Diferente
de você, o Gonzagão me entendeu. Ele cantou o homem, não o bandido. A
história... (ele dá de ombros) ...a história é escrita pelo vencedor. Eu perdi
a guerra, mas ganhei a fama. Herói? Vilão? Isso é palavra de doutor. Eu
fui um homem do meu tempo. Fui o que a vida e a polícia me obrigaram a
ser.
SuperPauta: O sertão de hoje mudou. Tem luz, asfalto, internet. O cangaço como o seu
seria possível hoje? O sertão de hoje ainda precisa de um Lampião? A justiça
melhorou por lá?
Lampião: Hoje? (Ele
ri alto). De jeito nenhum. Um "drone" desses me achava em dez
minutos. Um telefone entregava meu esconderijo na mesma hora. Impossível. Se o
sertão precisa de um Lampião? Não. O sertão precisa de justiça. (Ele
fica sério). A justiça melhorou? Melhorou o asfalto, a luz chegou. Mas a
balança do homem rico ainda pesa mais que a do pobre. A justiça ainda é torta.
SuperPauta: A pedido do leitor Marconi Lima, de Icapuí, Ceará, eu pergunto: Capitão,
hoje em dia existem outros tipos de "cangaço". Nos morros do Rio de
Janeiro, há grupos armados, como o tal "Comando Vermelho", que
desafiam o Estado. Eles controlam territórios, assim como o senhor fazia.
Olhando de onde está, o senhor vê alguma semelhança?
Lampião: (Ele franze
o cenho. O desprezo é visível). Eu vejo a semelhança no desafio. Eles mandam no
morro, eu mandava na caatinga. O Estado não entra. A semelhança para aí.
SuperPauta: A "lei" desses morros é diferente da lei do Governo. Mas o
senhor acha que a honra é a mesma? O que o senhor acha desses homens que vendem
"pó" (drogas) e atiram em moradores?
Lampião: Honra? Que
honra? (Ele cospe no chão seco). Meu cangaço era pela terra, pela vingança,
pela palavra. A gente não mexia com mulher de família. A gente não
matava por vício. Esse povo de hoje briga por um pó que mata a alma, que
destrói a juventude. Eles vendem veneno pro próprio povo. Eles atiram em
morador? No meu tempo, quem me ajudava era sagrado. Isso não é cangaço. Isso é podridão.
SuperPauta: O senhor reconhece o "Novo Cangaço" como seus
"netos"? Eles usam o seu nome, Capitão? Eles sujam a sua história? O
que o senhor diria a um jovem pobre do sertão de hoje que pensa em virar
bandido?
Lampião: Netos meus?
(Ele se levanta, irritado pela primeira vez). De jeito nenhum! Bando de covarde!
Invadem cidade, explodem banco e botam o povo na frente, de escudo! Eu
botava era o meu peito na frente dos meus cabras! Eles são ladrões de dinheiro.
Ladrões comuns. Eles sujam meu nome, sim. Eles não têm honra. (Ele se vira para
a câmera imaginária). Ao jovem? Eu digo: Estude. Aprenda um ofício. Seja mais
esperto que o sistema. Não pegue num rifle. O rifle é uma ferramenta maldita.
Ele só tem um fim: o buraco. Ou a vergonha. Use a cabeça. A cabeça é a melhor
arma que Deus lhe deu.
SuperPauta: O que o senhor quer que o Brasil se lembre sobre Virgulino Ferreira da
Silva?
Lampião: (Ele volta
a se sentar, ajeita o chapéu, a calma retornando). Quero que se lembrem de
Virgulino. O homem que foi feito de pedra pela injustiça, mas que tinha
palavra. O homem que amou uma mulher, que defendeu os seus. Quero que lembrem
que eu não baixei a cabeça pra governo nenhum. Eu fui... o Rei. E no meu reino,
a minha lei era a honra.







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