segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Encontros Impossíveis - Monteiro Lobato

 Encontros Impossíveis

O Brasil que ainda precisa acordar


Entre ecos de papel e faíscas de pensamento, o autor que deu voz ao Sítio do Picapau Amarelo retorna para conversar sobre livros, progresso e a infância de um país que ainda busca crescer

“Escrever é ato de fé: plantar ideias no chão duro da ignorância e esperar que brotem.” – Monteiro Lobato


Nem dia, nem noite — apenas uma luz difusa, como se o tempo respirasse. O ar cheira a papel antigo e a ideias em combustão. Há murmúrio de tipografia, como se letras se juntassem sozinhas no ar, formando frases impacientes por nascer. Nesse espaço sem chão nem teto, surge Monteiro Lobato. Não caminha: acende-se, como palavra que ganha corpo no instante em que é dita. O olhar é o mesmo de sempre — vivo, irônico, obstinado. O bigode parece carregar as histórias de todo um país que teima em não acordar. Ele fala e o som ecoa como martelo em oficina: cada frase uma faísca, cada pausa uma provocação. Aqui, onde o tempo se curva para ouvir, falamos sobre infância, livros, progresso e a eterna insônia do Brasil. Não há mesa nem gravador — apenas o rumor das ideias. Lobato não regressa do passado: ele permanece onde sempre esteve — no território inquieto das perguntas que não envelhecem.

 

No novo capítulo da série Encontros Impossíveis, Monteiro Lobato surge entre névoas de tinta e memória para uma conversa que atravessa séculos. Fala sobre a infância em Taubaté, o poder dos livros, a modernidade, o humor, o “politicamente correto” e a responsabilidade de um país que ainda precisa aprender a pensar. Com a verve afiada e o coração de educador, o criador do Sítio do Picapau Amarelo reafirma sua fé na leitura e na imaginação como motores da transformação. (Roberto Homem)


SuperPauta - Monteiro Lobato, como sua infância em Taubaté e o ambiente do interior paulista influenciaram sua visão de mundo e os temas que escolheu para sua literatura?

Lobato - Taubaté, sô, foi minha universidade. Tudo que aprendi de Brasil começou ali, no quintal cheio de formiga, nas histórias de assombração contadas debaixo do fogão à lenha, nas noites geladas com geada e café recém-passado. Era um  mundo de valores antigos e imaginação solta — a turma do interior não acreditava em promessa de político, mas sim no tempo que leva pra plantar e colher. Lá aprendi a desconfiar do milagre vendido na cidade grande e a dar valor ao suor. Crescer no mato é crescer com os pés na terra, não na lua, convivendo desde cedo com o silêncio e a conversa mole dos adultos que, mais tarde, virariam personagens. O ambiente doméstico e rural foi terreno fértil para a fantasia, a curiosidade, e o humor que me acompanharia para o resto da vida.

 

SuperPauta - Que papel tiveram sua mãe Olímpia, seu avô Visconde de Tremembé e o começo da alfabetização doméstica na formação do seu gosto pela leitura e escrita?

Lobato - Mamãe Olímpia foi minha primeira mestra — dessas que ensinam com rigor, mas nunca deixam faltar afeto. Ela me alfabetizou com capricho, entre o tamborilar da chuva no telhado e o cheiro do pão de queijo. Meu avô Visconde era bicho raro: misturava latim, plantação, crônica rural, conversa de gente sábia do campo e da cidade. O menino que aprende a ler na biblioteca velha vira adulto fã de livro novo: fui criado entre tomos empoeirados, clássicos portugueses e tratados franceses, tudo desfiado na chácara de Taubaté. Daí nunca mais larguei o vício da tinta impressa. Era bilhete, carta, jornal, conto, rabisco. Ler, pra mim, virou ato de respirar.

 

SuperPauta – O senhor se formou em Direito, mas preferiu dedicar-se à literatura. O que motivou essa transição — houve algum momento decisivo?

Lobato - Advogado serve pra ver o mundo pelado — sem fantasia. Foi escolha para dar estabilidade, pra não morrer de fome, mas logo vi que o papel carimbado me cansava. Os processos eram tão sem graça que, entre audiências, eu anotava ideias para contos críticos. Acabei trombando com a literatura porque nela, sim, podia falar a verdade com cara limpa e tinta forte. Brasil precisava de leitor — de gente capaz de pensar. Fui abduzido pelo chamamento da escrita; o resto foi somente consequência da insatisfação com os limites do foro e a vontade de chacoalhar o país.

 

SuperPauta - A experiência na promotoria e no contato com pequenas cidades moldou sua ideia do Brasil? O que mudou ali em seu olhar prático e crítico?

Lobato - A promotoria é escola de realidade. Você vê o Brasil no osso, sem verniz. Pequenas cidades são vitrines do país — têm muito compadrio, uma pitada generosa de ignorância geral, e uma resistência quase heroica em aprender, uma teimosia boa de valorizar. Descobri que educação, saúde, justiça são palavras de dicionário para quem está distante do centro. Ali notei que nada muda sem puxar conversa — a crítica quando bem feita, cutuca, assanha e faz pensar. Foi nesse chão que percebi as engrenagens lentas do Brasil e modelei o olhar vigilante sobre o atraso da terra natal.

 

SuperPauta - Urupês (1918) revolucionou sua carreira. Quem é o “caipira” nessa obra — símbolo, crítica ou caricatura?

Lobato – O tal Jeca Tatu, que botei em ‘Urupês’, não é só eito torto — é protesto de quem cansou de ver gente torcer o nariz pro povo simples. O caipira é símbolo mesmo: da miséria ensinada a gerações, não por alma ruim do brasileiro, mas por descaso dos doutores e dos donos do poder. É bronca, não caricatura. Jeca era denúncia contra o cabresto do atraso: maltrapilho, lento, saudável só quando lhe dão trato. O caipira é o Brasil real — muito distante daquelas idealizações urbanas que só servem para vender folhetim. Ele espanta quem nunca cruzou a porteira, mas acolhe quem tem tempo e olho atento.

 

SuperPauta - Em sua obra para adultos, qual era o papel do humor, sátira e ironia? Que importância dava à crítica social?

Lobato - Humor para mim nunca foi só adorno — é ferramenta de enxada, limpa o terreno para a verdade brotar. Uso sátira para acordar gente enfeitiçada por discurso bonito, governo meia-boca, intelectual que nunca viu a fome de perto. Ironia, essa só serve mesmo pra desenhar o que o politicamente correto prefere esconder debaixo do tapete. A crítica social, quando regada a humor e coragem, entra fácil: faz rir, mas também faz pensar. O escritor não pode ser só conselheiro — tem que ser provocador de mundo.

 

SuperPauta
- Como se relaciona o Lobato escritor infantil com o Lobato escritor adulto? O que une ou distancia essas duas vozes?

Lobato - O Lobato dos adultos é ácido, às vezes bravo e direto; o das crianças, encantador, edificante, até mágico. Parece outro, mas é o mesmo: mudo só o tom da prosa, visto outras roupas. O escritor infantil é mágico de circo, cheio de truque, alegria e personagem falastrão; o adulto é juiz do interior, desconfiado e sempre com uma bronca. Só que ambos querem ver o Brasil melhor, mais esperto, menos preguiçoso e mais solidário.

 

SuperPauta - Qual foi a missão educativa por trás do Sítio do Picapau Amarelo, Reinações de Narizinho e toda a turma do sítio?

Lobato - O Sítio foi obra de doutrinador disfarçado — ensino pelo riso, pela brincadeira bem tramada. Criança aprende brincando, aprendendo a se questionar, a responder sem medo. O Sítio é mistura fina: folclore, ciência, um tanto de humor, outra pitada de rebeldia da Emília, minha boneca boca-suja que nunca pediu licença pra ser protagonista. A missão era simples: formar leitor curioso e cidadão que não aceite resposta pronta.

 

SuperPauta - Misturava folclore, ciência e imaginação nas histórias. Para você, aprender brincando é essencial à infância?

Lobato - Sem dúvida, brincar e aprender acabam sendo a mesma mistura. O segredo é dar liberdade pra criança questionar, se divertir, construir fantasia. Ensino que não faz rir, não ensina. O Sítio sempre foi palco de experiências, debates e invenções malucas — folclore aqui não é só brincadeira, é método para aprender sobre o mundo e sobre si mesmo.

 

SuperPauta – Fui leitor de suas obras quando criança e também acompanhava religiosamente o seriado O Sítio do Picapau Amarelo. Mais tarde, como pai, incentivei meus filhos a ler essas mesmas obras. Seus livros foram fundamentais para minha formação cultural, sobretudo em adquirir o hábito da leitura. Você imaginava que sua literatura infantil teria esse poder de atravessar gerações e formar leitores fiéis, a ponto de pais e filhos lerem juntos as mesmas histórias?

Lobato - Rapaz, quem escreve pra criança planta lavoura em terra boa — nunca sabe até onde vão brotar as sementes. Confesso que sonhei sim, mas não com tantos frutos! O Sítio era minha república das letras, e ver gente grande lendo com os pequenos é o maior prêmio que se pode querer. Leitura é negócio sério: transforma o caipira em doutor, o doutor em curioso, e faz o país pensar. Ler é puxar conversa com o mundo. Se o Sítio fez alguém abrir o livro, já valeu a labuta — e se mais gente lê porque Emília tagarelou, melhor ainda. Que venha neto, bisneto, vizinho: livro bom é aquele que não tem idade nem prazo de validade!

 

SuperPauta - As crianças de hoje têm infância diferente — muito digital, conectada. O que mudaria no Sítio se o escrevesse hoje?

Lobato – Pois então, se o Sítio fosse plantado em solo de 2025, ia ser outra horta — dessas com fibra ótica no lugar da cerca de bambu. Emília teria um perfil nas redes sociais, seria influenciadora digital de primeira, capaz de viralizar uma boa confusão com hashtag e tudo. Visconde viraria pesquisador de algoritmos, enquanto Pedrinho jogaria videogame e talvez só largasse o tablet pra buscar Saci no mato virtual. Dona Benta daria aula online, e Tia Nastácia compartilharia receitas no YouTube, com direito a seguidores e comentários. O mundo mudou, mas o desafio continua: educar com encanto, não só com chips.

 

SuperPauta - E o que as crianças ganharam ou perderam nesse novo tempo?

Lobato - A infância conectada tem suas vantagens, claro: ganhou o mundo na palma da mão, faz amizade sem precisar atravessar rio nem enfrentar tempestade. Aprende mais rápido, descobre novidade todo dia, ganha um palco sem barreira territorial. Mas perdeu o cheiro do mato, o tempo de espera, o silêncio pra ouvir história, o gosto de correr descalço atrás de uma borboleta. Ganhou botão, perdeu chão. Criança hoje sabe deslizar o dedo na tela, mas às vezes desaprende a olhar céu direito. O Sítio novo seria mais barulhento e luminoso, mas talvez faltasse aquele sossego bom das tardes no terreiro — e é desse sossego que se faz leitor com alma. Por mais que mude a forma, a essência do aprendizado tem que preservar sempre o encanto da curiosidade e da descoberta. Que a infância nunca perca o direito de se perder na fantasia, seja na nuvem ou num pomar atrás da casa!

 

SuperPauta - Como editor e empresário pioneiro, encarava o livro como produto cultural e mercadoria nacional. Como vê sua luta pelo desenvolvimento do mercado editorial brasileiro?

Lobato - Livro é sobremesa disputada no Brasil — tentei fazer o brasileiro ler do mesmo jeito que faz fila na padaria: com fome e vontade. Editor é quem inventa o apetite — sem papel, sem país. Sem mercado editorial robusto, o autor fica igual peixe fora d’água. Lá se vai mais de século, e ainda sonho com prateleira cheia de autor nacional, menos de importado que só sabe brilhar na vitrine.

 

SuperPauta - Que critérios definiria para um “bom livro brasileiro”? Qual papel tem o editor?

Lobato - Bom livro brasileiro é o que conversa com a gente, fala de “nós”, sem medo de ser diferente. Não precisa ficar falando difícil, nem imitar importado feito burocrata de cidade. Editor bom é aquele que aposta em autor novo, sem medo de errar, que sabe filtrar os garimpos de talento e não foge da bronca de divulgar o que é bom de verdade.

 

SuperPauta
- Em tempos de ferro, petróleo e estradas, apostava nesse tripé como caminho do progresso brasileiro. Ainda faz sentido hoje?

Lobato - Ferro, petróleo e estrada — meu tripé sagrado do progresso. Seguraram o país, mas falta tratamento de raiz: que adianta ter petróleo se não tem escola pra ensinar pros filhos do povo, ferro sem ideia e estrada sem destino certo? Progresso não é só coisa de pedra e aço: demanda cabeça, sistema e vontade coletiva.

 

SuperPauta - Você foi muito atuante na luta pelo petróleo nacional. O que vê como avanço ou falha do país nesse campo desde sua época?

Lobato - A luta pelo petróleo foi briga de cachorro grande. Avançamos, mas ainda vendemos riqueza crua, exportando matéria-prima na esperança de importar produto acabado. Continuamos importando ideia junto com o motor. Brasil só será realmente grande e independente quando valorizar o chão que pisa e o cérebro do brasileiro — não só no subsolo, mas na cabeça e no coração.

 

SuperPauta - O papel das tecnologias do século XX e XXI (automóvel, rodovia, petróleo, startups, economia criativa) ainda dialoga com suas ideias de modernização? Qual inovação mais valorizaria hoje?

Lobato – Tecnologia é espinha dorsal do século — antes o orgulho era ter ferrovia, depois carro; hoje, chips, nuvem, inteligência artificial. Orgulharia-me de ver aqui gente criando coisa nova em vez de importar bugiganga, numa revolução que valorize inventividade nacional. Progresso, porém, é mão na massa, não papel assinado, é laboratório e oficina ao alcance do povo, não só escritório de executivo.

 

SuperPauta - Viveu embates históricos com Vargas e o Estado Novo. Sentia-se mais crítico ou revolucionário? Por quê?

Lobato - Nunca fui revolucionário de barricada, mas detesto miséria de espírito. Sempre critiquei, nunca engoli quieto... Estado Novo e modernistas europeus que me perdoem: brasileiro precisa aprender a andar com as próprias pernas, não copiar moda do estrangeiro. Crítica é brasa viva quando quer incendiar consciência — e sempre estive com fósforo.

 

SuperPauta - Sua crítica ao modernismo europeu tinha base no que chamou de “colonialismo intelectual”. Mantém essa posição para os novos movimentos de arte globalizada?

Lobato - Chamaram-me de conservador por implicar com Anita Malfatti, e continuo implicando com o que acho chantagem artística. Não gosto de mistificação: arte tem de ser negra de carvão, fedorenta, cheirando a chão da casa, não perfume francês de vitrines. O Brasil só crescerá quando encontrar sua voz, sem andar no estribilho alheio.

 

SuperPauta - Como enfrentaria os debates em torno do “politicamente correto”, atualização de linguagem e julgamentos sobre sua obra?

Lobato – ‘Politicamente correto’ não era coisa do meu tempo — e se o Brasil for julgar obra velha com regra de hoje, arrisca fazer terra arrasada de humor, de autenticidade e da coragem de dizer o que pensa. Prefiro polêmica a consenso morno: discussão é caldo de cultura, e mais vale debate acirrado do que silêncio conforme.

 

SuperPauta - Qual personagem seu expressa melhor sua personalidade — Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde…? E por quê?

Lobato – Tem muita gente que pensa que sou o Visconde, mas a verdade é que sou metade Pedrinho, metade Emília. Um caipira curioso, cheio de vontade de explorar o mundo, e outro rebelde de língua solta que não se cala. Misturo as duas coisas até hoje, equilibro a razão fria do Visconde e a imaginação solta da Emília.

 

SuperPauta – Qual foi o livro mais difícil de escrever, seja por resistência editorial ou autocobrança?

Lobato - O livro mais difícil foi sempre o próximo. Escrever dói, é jogo duro. Editor exige prazo, leitor exige prosa boa, crítico só reclama mas nunca ajuda a carregar a carroça. Cada livro é filho que quer nascer perfeito, mas parto nunca é fácil.

 

SuperPauta - Alguma carta, ensaio ou livro seu você considera subestimado? Que texto gostaria de ver revalorizado?

Lobato - Vejo que o povo gosta mesmo é dos folguedos da Emília, das traquinagens do Pedrinho — e faz bem em gostar, pois foi pra isso que plantei o Sítio. Porém, há livros meus que passaram feito sombra de árvore numa tarde quente, pouca gente quer folhear. Digo sempre: ‘O Presidente Negro’ — romance futurista sobre raça e poder — ficou para poucos. ‘Negrinha’ e ‘Cidades Mortas’ denunciam miséria social que o Brasil encobre. Entre ensaios e cartas, há bronca, conselho e cutucada republicana que mereciam mais o bisturi do leitor curioso. Queria que lessem minha prosa adulta, de cabo a rabo. Lá está tanto da alma nacional quanto numa roda de conversa na varanda do Sítio. O Brasil precisa ler o que desconforta, não só o que consola.

 

SuperPauta - Houve críticas severas a algumas obras infantis — especialmente sobre racismo e eugenia. Como responde hoje a essas discussões?

Lobato - Já fui chamado de gênio e de infame, coisa que levo como elogio das duas formas. Essas críticas sobre racismo e eugenia não nego, o tempo muda, o mundo muda, e o escritor, que é bicho do agora, tropeça nos próprios limites da época em que viveu. Reler, criticar, perguntar é tudo parte do jogo, da história que não se acanha. Quem se incomoda com debate sério devia plantar abóbora, não livro. Minha obra leva o que tinha para dizer, mas isso não quer dizer que cada palavra valha para sempre sem questionamento.

 

SuperPauta - Qual foi a reação mais forte do público ou da crítica às suas obras? Como se sentiu e como reagiu emocionalmente?

Lobato - O público é bicho mutante: tem dia que te ama, noutro que te odeia. Reação forte é melhor que apatia. Já levei varada, já dei umas porradas verbais, mas tudo isso só endurece a couraça e dá vontade de escrever ainda mais longe do feitiço do gosto fácil. Não sou menino de correr de crítica, mas confesso que dor no coração todo escritor sente.

 

SuperPauta - Qual foi seu maior erro enquanto escritor ou editor — o que faria diferente?

Lobato - Erros, cometi aos montes. Queria ter ouvido menos o bolso e mais a intuição, essa voz que sopra quando ninguém vê. Mas o escritor que nunca erra é inventado, é máquina sem alma. Acabei aprendendo que o segredo é resistir e continuar botando a cara a tapa.

 

SuperPauta – O senhor herdou fazenda, foi fazendeiro e depois migrou para a cidade. Como esses dois mundos dialogam em sua obra?

Lobato - Fui menino da roça, adulto da cidade. Vivi entre fogo de chão e trilho de bonde. Esses dois mundos são como dois rios que se juntam no mesmo oceano — o Brasil. O escritor brasileiro tem que beber das duas fontes para entender a alma do povo: o rural, que carrega a raiz, e o urbano, que traz a promessa de futuro. Não adianta sonhar só na metrópole e esquecer do cerrado e da caatinga.

 

SuperPauta - Que valores o senhor viu no Brasil de 1920 que resistem até hoje e que outros desapareceram?

Lobato - Valores, menino, mudaram muito ao longo desses cem anos — e mudar é parte do jogo da vida. O Brasil que conheci em 1920 era um país cheio de esperança, dono de uma vontade braba de crescer, de trabalhar duro, de vencer as dificuldades que a gente sabe que são muitas. Era um tempo de sonho e suor, de gente que acreditava no amanhã mesmo que o presente apertasse. Hoje, o Brasil já viu muita coisa — tropeço, queda, renascimento. Quem não aprende a levantar é que fica pra trás; e eu digo que “quem quer, serve, quem chora, fica”. Tem certos valores que persistem, a teimosia boa do brasileiro, aquela criatividade que dá um jeitinho em tudo, seja coisa boa ou ruim. Isso é um caráter forte, um tempero que não se perde fácil. Por outro lado, vejo sumir as paciências antigas, a conversa mansa que desarmava o ódio, o respeito pelo tempo das coisas — a calma para esperar pela boa colheita, para ouvir até o fim o argumento do vizinho, para admirar o processo lento do aprendizado. O mundo virou carnaval elétrico, tocado por pressa e inflação de distração. Mas insisto que a alma brasileira, essa mistura de esperança e desafio, continua valente e brava. Essa alma é que me alimenta até hoje — é a mesma que quero que descubram nas minhas palavras.

 

SuperPauta - Qual seria sua visão da identidade nacional no Brasil de hoje, século XXI, globalizado e híbrido?

Lobato - Identidade nacional, menino, é mistura boa de Emília tagarela, um tantão de Jeca Tatu na tristeza e uma fome de progresso que nunca se sacia. A gente veste roupa nova, fala idioma da internet, mas o espírito é o mesmo, arredio e sonhador. Identidade é raiz que aceita enxerto sem perder a seiva.

 

SuperPauta - Qual o papel da literatura infantil e dos personagens do Sítio nos tempos de polarização política e cancelamento digital?

Lobato - O Sítio foi trincheira, quero crer, literatura para povo dividido, para criança entender que questionar é crescer — mesmo que em tempos doidos dê trabalho ouvir. Na era do cancelamento, a Emília seria bloqueada em cinco minutos, sumiria da tela, mas continuaria tagarelando no coração das crianças. Personagem que não provoca, que não pergunta, morre no mesmo dia que nasce.

 

SuperPauta - Se estivesse vivo hoje, entraria nas redes sociais? Que conteúdo faria — educativo, provocativo, divertido?

Lobato - Entraria, não fosse o cheiro de tipografia faltar no ar das redes. Publicaria polêmica, história, sátira, e não teria dó nem piedade. Um bocado de verdade comedida, umas broncas de vez em sempre, e piada de ponta a ponta — que no Brasil, rir de si mesmo é quase ato de coragem.

 

SuperPauta - Se escrevesse uma “Carta ao Brasil de 2050”, que mensagem deixaria para o país e para os novos leitores?

Lobato - Se tivesse só cinco minutos para escrever ao Brasil de 2050, diria: ‘Não seja besta. Preserve o mato, leia, fale alto, crie. Um povo que esquece o passado vira personagem do livro alheio — e assim vai perdendo a caneta para contar sua própria história.’ A vida é leitura e ação, não só leitura e espera. Escrevam com as mãos, com a cabeça e com o coração. Assim, o Brasil nunca perde sua voz.




Um comentário:

  1. Estou extasiado!
    Não conhecia a Superpauta e tive a felicidade de ler, praticamente de um só fôlego, a entrevista Encontros Impossíveis – Monteiro Lobato.
    Que sacada espetacular! Parabéns, Roberto Homem — essa ideia de Encontros Impossíveis poderia até surgir em muitas cabeças, mas só alguém com o seu cabedal seria capaz de levá-la adiante com tamanha maestria.
    O texto é tão vivo e inteligente que parece mesmo que o próprio Monteiro Lobato lhe concedeu essa exclusiva.
    Obrigado pela oportunidade!



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