quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Ariano Suassuna

Encontros Impossíveis

A última aula-espetáculo

 

Ariano retorna com a mesma solenidade que o levou à Academia e a mesma graça que criou João Grilo. Nesta aula-espetáculo impossível, ele conversa com o SuperPauta sobre a morte do pai, a guerra contra o "ok" dos "pasteurizadores", o pavor de avião e o diabo, tudo sob o sol de pedra de seu Sertão mítico.

 

 

"Não sou ateu graças a Deus" – Ariano Suassuna

 

 

O encontro não se dá no céu, nem no inferno. Ariano Suassuna não estaria à vontade em nenhum dos dois. O inferno, diria ele, é "muito mal iluminado" e "cheio de gente que fala inglês". O céu, talvez "correto demais". Nosso encontro acontece em um teatro de pedra, em algum lugar entre a caatinga de Taperoá e o cosmos. A luz é dourada, como o fim de tarde no sertão, e a poeira que dança no ar parece carregar histórias milenares. Ele está lá, no centro do palco, não como um espectro, mas como uma força. Veste o terno de linho que o imortalizou, o inseparável colete vermelho e a gravata. (Ele ajeita a abotoadura, com a solenidade de quem se prepara para uma batalha). Seus olhos, vivos e iluminados, medem o entrevistador com uma mistura de curiosidade e desafio. Ariano Suassuna está pronto para sua última "aula-espetáculo".

 

O ar vibra com a expectativa. É o homem que dedicou a vida a provar que o Brasil profundo, o sertão "onde o diabo perdeu as botas", era o palco da tragédia e da comédia mais universais que existem. Nesta conversa impossível, Mestre Ariano fala sobre a honra e a tragédia que marcaram sua infância, a criação do Auto da Compadecida, o diabo, Deus e os "falsos profetas" da tecnologia. Ele defende o Brasil contra o que chama de "pasteurização" cultural e, claro, exalta as virtudes do Sport Club do Recife.


 

SuperPauta: Mestre Ariano, que honra! Estamos em um lugar que parece saído de um romance seu. Como o senhor descreveria onde estamos?

Ariano: (Ele olha ao redor, com um sorriso astuto) Meu caro, estamos no único lugar possível: o território da imaginação. Mais especificamente, estamos no meu território. (Aponta para o chão de pedra) Isso aqui é o Sertão. O Sertão não é um lugar geográfico, é um lugar mítico. É o palco onde o ser humano é testado nos seus limites: a fome, a sede, a fé, a violência e, principalmente, a capacidade de rir da própria desgraça. É o único lugar onde a beleza, por ser tão rara, se torna essencial.

 

SuperPauta: A sombra do assassinato do seu pai é muito presente na sua obra. Mas e a sua mãe, Dona Rita? Qual é o papel da mulher do Sertão, da matriarca, na formação do homem que o senhor foi?

Ariano: (O olhar dele suaviza instantaneamente. O tom de "espetáculo" dá lugar a uma ternura reverente.) Você tocou num ponto... sagrado. O Sertão é tido como um lugar de homens brutos, de coronéis, de cangaço. Um mundo masculino e violento. E é. Mas quem segura esse mundo para que ele não despenque no inferno é a mulher. Meu pai foi a minha tragédia. Minha mãe, Dona Rita, foi a minha força. Quando meu pai foi assassinado, ela ficou sozinha com nove filhos. Nove. Naquela secura, naquela violência. Ela não se dobrou. Ela nos criou a todos com a força de uma rainha. A Compadecida, a Virgem Maria que salva João Grilo, não é uma invenção minha. É o retrato da minha mãe. É o retrato de toda mãe sertaneja, que tem que ter a misericórdia de Deus, a teimosia da caatinga e a astúcia de João Grilo, tudo ao mesmo tempo, só para garantir o pão do dia seguinte. Minha obra é trágica por causa do meu pai, mas ela é esperançosa por causa da minha mãe.

 

SuperPauta: E dessa tragédia, dessa força, nasceu sua obra. Mas foi o assassinato do seu pai (João Suassuna), que definiu sua visão de mundo?

Ariano: Olhe... (A voz baixa por um momento, recuperando a gravidade) Eu sou um homem marcado pela tragédia. Eu tinha três anos, mas a sombra daquele evento... a morte de meu pai... definiu tudo. Minha obra não é outra coisa senão uma tentativa de... vingança. Mas não a vingança de sangue, que meu pai, se pudesse, me proibiria de fazer. É a vingança pela beleza. Eu decidi que vingaria a morte dele criando uma obra de arte tão bela, tão profundamente brasileira, que ela se tornaria inesquecível. Minha literatura, meu teatro, meu Movimento Armorial... tudo isso é para dizer aos assassinos, aos brutos, aos que desprezam este país: vocês mataram o homem, mas não mataram a alma dele. A alma dele está aqui, na beleza que eu crio.

 

SuperPauta: E dessa dor nasceu o riso. Como o senhor explica que a sua obra mais conhecida, o "Auto da Compadecida", seja uma comédia?

Ariano: Ah, mas aí é que está a sabedoria do povo! (Ele se anima, gesticulando como um regente) O povo do Sertão, o povo brasileiro, sabe que a tragédia é tão absurda, mas tão absurda, que só nos resta rir dela. O que é João Grilo? João Grilo é o retrato do brasileiro: fraco, oprimido, sem poder, sem dinheiro, mas que tem a única arma que o poderoso não pode lhe tirar: a inteligência. João Grilo é o anti-herói. Ele mente, ele engana... mas ele engana quem? O bispo, o padeiro rico, o major... ele engana os poderosos que o oprimem! E, no fim, ele engana o diabo! (Dá uma gargalhada) O Auto é uma história de fé. É a minha declaração de que, mesmo no meio da maior miséria, a compaixão da Mãe de Deus e a astúcia do fraco podem vencer o diabo, o coronel e o capital.

 

SuperPauta: Falamos muito de João Grilo, mas e o seu "Dom Pedro Quaderna", de A Pedra do Reino? O senhor disse que o Auto é 'o circo' e A Pedra é 'a tragédia'. O Brasil de hoje está mais para a chanchada de Grilo ou para a loucura trágica de Quaderna?

Ariano: (Ele fica sério, como um professor diante de sua grande tese.) Que pergunta... extraordinária. Veja bem. João Grilo é o povo. Ele é a sobrevivência. Ele é o realismo. Ele sabe que o mundo é cruel e usa a arma que tem: a esperteza. Quaderna... ah, Quaderna é o poeta. Ele é o Dom Quixote do Sertão. Ele não aceita a realidade! Ele olha para a miséria, para a pedra bruta, e quer ver ali um reino encantado. Ele é o homem que acredita no sonho, mesmo que o sonho o leve à loucura e à morte. O Brasil... (suspira) O Brasil é os dois. Nós somos João Grilo no dia a dia, na fila do banco, no imposto de renda, tentando enganar a morte e o diabo com um sorriso amarelo. Mas nós somos Quaderna na nossa alma. Nós somos esse povo que, mesmo esmagado, ainda acredita no impossível, ainda sonha com um "Quinto Império" de beleza. O Brasil é essa esquizofrenia: uma chanchada que se sonha uma tragédia grega.

 

SuperPauta: O senhor sempre foi um católico fervoroso, mas um católico muito particular, que parecia gostar mais do diabo do que de muitos padres...

Ariano: (Risos) Eu nunca escondi que acho o diabo um personagem fascinante! Na literatura, claro. Na vida real, quero distância dele. Mas veja bem, o meu catolicismo é o catolicismo do Sertão. É o catolicismo barroco, ibérico, que entende que o sagrado e o profano andam de mãos dadas. Eu sou um homem dividido entre a fé e a dúvida, entre o sagrado e o carnal. O diabo, na minha obra, não é essa figura de Hollywood. Ele é... um burocrata. Ele é o tentador. Mas ele tem um problema terrível: ele é lógico. E a fé não é lógica! A fé é um salto no escuro. O diabo não entende a graça, não entende o perdão, não entende a misericórdia da Compadecida. Por isso, ele sempre perde para João Grilo e para a Virgem Maria.

 

SuperPauta: Vamos falar do Movimento Armorial. O senhor queria criar uma arte erudita a partir da cultura popular. Hoje, muitos dizem que o senhor era elitista, que queria "corrigir" o povo.

Ariano: (Ele bate o pé no chão, indignado. A voz sobe.) Elitista?! Elitista é quem despreza a cultura do seu povo! Elitista é quem acha que o rock and roll americano é "cultura" e que o repente do violeiro é "folclore". Que disparate! O que eu fiz foi o oposto. Eu olhei para o romanceiro popular, para os folhetos de cordel, para a xilogravura, para os cantadores, e disse: isto é o nosso ouro! Isto tem a mesma dignidade da música de câmara de Bach, da tapeçaria medieval. O Movimento Armorial foi a minha guerra de independência. Foi dizer: não precisamos da bênção de Nova Iorque ou de Paris para sermos universais. O Sertão é universal! Shakespeare era universal porque era profundamente inglês. Eu sou universal porque sou profundamente nordestino. Elitista é quem tem vergonha de ser brasileiro!

 

SuperPauta: Mestre, falando em Armorial, o senhor criou o movimento para defender a rabeca e a viola. Hoje, o que domina o Brasil é o "sertanejo universitário" e o funk. O senhor acha que essa é a vitória final da "pasteurização" que o senhor tanto temia? Perdemos a guerra?

Ariano: (Ele coloca a mão na testa, num gesto de desespero teatral.) Meu caro, isso não é nem "pasteurização", isso é a desalmação! Isso é um desastre sônico! (Ele se levanta, agitado) Veja bem, eu não tenho nada contra a alegria do povo. Mas o que fizeram? Pegaram o que há de mais pobre na cultura americana, aquele "bate-estaca" eletrônico, e misturaram com letras de uma pobreza que faria o diabo corar! Não tem melodia, não tem harmonia, não tem poesia! É uma batida. Uma só. Parece uma goteira. Tum, tum, tum. Ou então é uma gritaria que parece um atentado aos tímpanos! Não, a guerra não está perdida. Porque enquanto um violeiro afinar sua viola no Sertão, enquanto um Quinteto Armorial tocar, a beleza resiste. Mas que estamos sofrendo um bombardeio cultural, ah, isso estamos. É a vitória do "ok" sobre a poesia.

 

SuperPauta: O senhor sempre foi um crítico feroz da "pasteurização" cultural, do "ok" substituindo o "oxente". O senhor tem uma anedota famosa sobre sua aversão ao inglês...

Ariano: (Os olhos brilham de bom humor) Tenho várias! Contarei uma. Certa vez, eu estava no Rio de Janeiro, num desses eventos cheios de gente importante. E uma senhora muito elegante, muito... "cosmopolita"... veio falar comigo. Ela disse: "Professor Suassuna, eu admiro muito sua obra, mas tenho uma crítica construtiva. O senhor não acha que, se o senhor traduzisse seus livros para o inglês, o senhor ganharia o Prêmio Nobel?". Eu parei, olhei para ela com a maior seriedade que pude, e disse: "Minha senhora, eu acho o contrário. Eu acho que se o pessoal da Academia Sueca aprendesse a falar português, eu já teria ganhado o Nobel há muito tempo!". (Gargalhadas)

 

SuperPauta: O senhor odeia o inglês, mas por que o senhor ama tanto a Língua Portuguesa? O que ela tem de especial?

Ariano: Ah, minha pátria é minha língua! A língua portuguesa é a mais bela e a mais complexa das ferramentas. O que os americanos fazem? Eles simplificam tudo. 'Love'. Para eles, 'love' é 'love'. Para nós... ah, para nós existe o amor, a paixão, o afeto, o carinho, a ternura, o aconchego, a saudade! Como se diz 'saudade' em inglês? Não se diz! A nossa língua é a língua de Camões e a língua de João Grilo. Ela tem a solenidade da tragédia e a malícia da comédia. Ela tem o "vossa excelência" e tem o "oxente". É uma língua barroca, cheia de curvas, de mistérios, de sombras e de luzes. É a língua perfeita para a alma brasileira.

 

SuperPauta: Mestre, o senhor era conhecido pelo pavor de avião. É verdade que o senhor preferia ir de carro do Recife a São Paulo, e que isso gerava situações cômicas?

Ariano: Meu amigo, eu não tenho medo de altura. Eu tenho medo é de cair da altura! (Risos) É verdade. Eu sou um homem de terra firme. Deus fez o homem para andar no chão e o peixe para nadar. Avião é uma invenção do diabo, com certeza. Uma vez, me convenceram a pegar um avião para uma palestra. O voo foi terrível, uma turbulência medonha. O sujeito do meu lado, para me acalmar, disse: "Calma, professor, isso é normal. E olhe, avião é o transporte mais seguro do mundo". Eu olhei para ele e disse: "Meu filho, o transporte mais seguro do mundo é o seguinte: eu, sentado na minha cadeira de balanço, na minha casa em Recife, com os dois pés bem firmes no chão. E olhe lá, que às vezes a cadeira balança e eu quase caio!".

 

SuperPauta: O senhor trocou a cátedra sisuda pela 'aula-espetáculo', quase um teatro de repente. Por que essa necessidade de transformar a aula em palco? O senhor acha que o acadêmico brasileiro ficou... chato demais?

Ariano: (Ele abre um sorriso largo, de quem foi pego em flagrante.) Mas é claro que ficou! Chato é pouco! Ficou cinzento, ficou fúnebre! O acadêmico brasileiro pegou a mania francesa de falar difícil sobre coisas simples. É uma solenidade de dar sono. Eu descobri o seguinte: quem disse que para ser profundo precisa ser chato? Quem disse que o riso é inimigo da sabedoria? O oposto! O riso é a forma mais alta de inteligência. Jesus Cristo, o maior de todos, ensinava como? Com parábolas! Com histórias! Ele era um contador de histórias. Minha aula-espetáculo é a minha missa. Eu sou um palhaço. Mas um palhaço a serviço da beleza e da verdade. Se o sujeito ri, ele abre a alma. E quando ele abre a alma, eu aproveito e... zapt!... coloco a poesia lá dentro.

 

SuperPauta: O seu pavor de avião é notório. Mas dizem que sua briga com a tecnologia ia além, e o senhor tinha um 'causo' famoso com o computador...

Ariano: (Ele se ajeita na cadeira, preparando o "causo") É verdade. Eu escrevi minha vida inteira à mão ou na minha velha máquina de escrever. Um dia, minha família, com a melhor das intenções, me deu um desses computadores. Uma caixa luminosa. E me disseram: "Professor, o senhor tem que usar o mouse". Eu olhei para aquilo e disse: "Como é o nome?". "Mouse". E eu disse: "Mouse', em inglês, quer dizer 'rato'. Eu, Ariano Suassuna, com oitenta anos nas costas, que nunca tive medo de onça no Sertão, vou agora ter que botar a mão num rato?!". (Gargalhadas) Disseram que era para "clicar". Eu disse: "Eu não 'clico', eu escrevo!". Para mim, a tecnologia insuperável, a mais alta que o homem já inventou, é esta aqui: (Ele tira um lápis simples do bolso do colete) O lápis! Com ele, eu crio reinos, eu derroto diabos e eu faço a minha vingança.

 

SuperPauta: Falando em modernidade, o senhor nos deixou em 2014. O mundo de hoje é dominado por coisas que o senhor combatia: redes sociais, "influencers", uma cultura do cancelamento...

Ariano: (Ele suspira, e o tom fica sério.) Eu vejo isso... com imensa preocupação. Não sou contra a técnica. Sou contra a tecnolatria, que é a adoração da técnica. Vocês trocaram a praça pública, onde o cantador tinha que olhar no olho do povo, por essa... "rede". Uma rede que, em vez de pescar peixes, pesca almas. E as pesca na solidão. As pessoas nunca estiveram tão "conectadas" e, ao mesmo tempo, tão sozinhas e tão furiosas.

 

SuperPauta: Mestre, o senhor se definiu como socialista, mas um socialista que vinha do Evangelho, não de Marx. O senhor foi Secretário de Cultura. Vendo o Brasil de hoje... essa briga, essa corrupção... O senhor se arrepende de ter entrado na política?

Ariano: (Ele balança a cabeça, com uma ironia triste.) Arrepender... não. Mas eu saí de lá mais escaldado do que João Grilo. O meu socialismo é o de Cristo, o da partilha do pão. O Auto da Compadecida é a peça mais socialista que eu escrevi: o pobre vence o rico e o padre avarento vai para o inferno. Mas a política... a política dos homens, a de Brasília, é o reino do diabo-burocrata. É o reino da mentira sem graça. Porque João Grilo mente, mas mente para sobreviver e com uma graça danada! O político mente para roubar, e com uma chatice... Eu não sou um político. Eu sou um poeta. A política quer o poder. Eu quero o reino. E o meu reino é o da beleza. Minha trincheira sempre foi, e sempre será, a arte.

 

SuperPauta: Mestre, o senhor fala da arte como sua trincheira. Mas e se essa trincheira também estiver sendo atacada pela "tecnolatria" que o senhor condena? Vemos hoje a tal da Inteligência Artificial. Já existem programas que "criam" música no estilo de Luiz Gonzaga, ou que "escrevem" como Machado de Assis. Isso é a morte da alma?

Ariano: Isso não é criar. Isso é macular. Isso é profanar. (Ele se levanta, agitado) Uma máquina pode imitar o estilo. Ela pode pegar mil poemas de cordel, misturar e cuspir um verso. Mas a máquina não tem o principal. A máquina não teve um pai assassinado. A máquina não sentiu fome no Sertão. A máquina não olhou nos olhos da mulher amada. A máquina não sentiu o arrepio da fé diante do mistério da morte. A máquina não tem dor. E a arte, meu caro, a arte de verdade, nasce da dor. Nasce da falha humana, da imperfeição, do desejo de eternidade. O que essa máquina faz é uma caricatura. É o "ok" levado à última potência. É a morte da alma.

 

SuperPauta: O que o senhor diria, então, à juventude brasileira de hoje, que nasceu mergulhada nessa tecnologia e que, muitas vezes, desconhece o Brasil profundo que o senhor tanto defendeu?

Ariano: Eu diria: leiam! Mas não leiam essas bobagens rápidas que piscam na tela. Peguem um livro. Leiam Euclides da Cunha, para entenderem o que é o Sertão. Leiam Machado de Assis, para entenderem a ironia da alma brasileira. Leiam Guimarães Rosa. E eu diria mais: tenham coragem. Coragem de ser quem vocês são. Não tenham vergonha do sotaque de vocês. Não tenham vergonha da cor da pele de vocês. Não tenham vergonha da história de vocês. Desconfiem de tudo que é muito fácil, muito rápido e muito brilhante. O Brasil é um país trágico, mas é um país de uma beleza incomparável. Não entreguem essa beleza em troca de um punhado de... barulho eletrônico.

 

SuperPauta: O senhor foi um defensor ferrenho do Sport. O que é o futebol na sua visão de Brasil?

Ariano: Ah, agora você tocou no ponto certo! (Um sorriso largo rasga seu rosto) O futebol é a última tragédia grega encenada para o povo. E o Sport Club do Recife... bem, o Sport não é um time. É uma religião. Ser rubro-negro é entender que a glória e o sofrimento andam juntos. É saber que, mesmo quando tudo parece perdido, um gol no último minuto pode mudar o destino. O Sport é o João Grilo em campo! É a prova de que, com astúcia, raça e um pouco de sorte divina, o fraco pode, sim, derrotar o gigante. O título de 87 é nosso, e ai de quem disser o contrário! (Ele ri, triunfante)

 

SuperPauta: O senhor viu a tragédia de perto, a brutalidade política tirou seu pai. Hoje, olhamos para o mundo e vemos a guerra televisionada, a barbárie em tempo real. O ser humano é uma causa perdida? Aprendemos alguma coisa, ou estamos apenas repetindo a mesma história de Caim e Abel, só que com armas mais modernas?

Ariano: (Ele para por um longo momento. A voz, quando volta, é mais baixa e densa.) A história de Caim e Abel não é uma história do passado. É a história de hoje. O homem não mudou em nada. A arma é mais moderna, como você disse, mas o coração é o mesmo. O ódio do irmão contra o irmão é o motor da História. Eu dediquei minha vida a isso. A vingar meu pai com a beleza. Por quê? Porque a beleza é a única coisa que pode, talvez, redimir o homem. A política não redime. A ciência não redime... a ciência, aliás, deu ao homem armas mais rápidas e mais eficientes para matar o irmão! Se o ser humano é uma causa perdida? Pelas mãos do homem, sim. Se dependesse só de nós, já teríamos nos destruído há muito tempo. O que nos salva, meu caro, não é a nossa bondade. É a teimosia da graça. É a Misericórdia de Deus, que insiste em nós, apesar de nós. É o que eu disse na minha obra: o homem é essa mistura de palhaço, que é João Grilo, e de Caim. O que nos impede de sermos só Caim é a esperança de que a Compadecida, no fim, interceda por nós.

 

SuperPauta: Mestre, o senhor é um homem do Sertão, forjado na seca, que é a luta diária do homem contra a natureza. Hoje, vemos o mundo em guerra contra a natureza: a Amazônia queimando, o próprio Sertão virando deserto. O senhor acha que é a 'seca' da alma humana, a falta de beleza, que está secando o mundo?

Ariano: (Ele se inclina, com uma seriedade de sermão.) Meu caro, você fez uma distinção fundamental. Uma coisa é a seca. A seca do Sertão é trágica, mas ela é... divina. Ela é a mão de Deus testando a fé do homem, provando seus limites. O sertanejo não odeia a seca, ele a respeita. Ele reza por chuva. O que vocês estão vivendo agora não é a seca de Deus. É a seca do diabo. É a ganância. É o homem que se acha mais esperto que a criação. É o mesmo homem que troca o 'oxente' pelo 'ok', que acha que um trator é mais bonito que uma árvore, que uma máquina de calcular vale mais que a poesia de um rio. Sim. É a 'seca da alma'. O homem 'pasteurizado' não tem mais reverência. Ele não olha para uma árvore e vê Deus; ele vê 'madeira'. Ele não olha para um rio e vê a vida; ele vê 'potencial hidrelétrico'. Quando o homem perde a capacidade de ver o sagrado na criação, ele a destrói. O que estão fazendo com a Amazônia não é progresso, é um sacrilégio. É a desalmação em ação.

 

SuperPauta: Mestre Ariano, o que é ser lembrado? O que é a imortalidade para o senhor?

Ariano: (Ele se senta novamente, pensativo, e junta as mãos.) Eu entrei para a Academia Brasileira de Letras. Sou um "imortal". Mas isso é vaidade. A vaidade dos homens. A imortalidade verdadeira não está na cadeira da Academia. A imortalidade verdadeira é... (Ele para, como se buscasse a palavra exata) ...é quando um menino, lá no interior do Piauí, pega um violão e, sem nunca ter me lido, canta um verso que rima com a mesma dor e a mesma esperança que eu senti. É quando uma trupe de teatro amador, numa escola pública de periferia, decide montar o Auto da Compadecida com três tábuas e duas lonas, e o povo ri e chora.

A imortalidade é isso. É a certeza de que a beleza que eu tentei criar, aquela vingança pela morte de meu pai, continua viva, pulsando no coração do povo brasileiro. Se isso acontecer, eu não morri. Eu virei Sertão.

 

SuperPauta: Para terminar, qual a sua mensagem final? O que Ariano Suassuna diria a Deus, ou ao Diabo, se os encontrasse agora?

Ariano: (Ele se levanta, como se fosse dar início a uma aula-espetáculo final. Ajusta o colete e encara o horizonte de pedra.) Ao Diabo, eu diria: "Meu caro, você perdeu. Você tentou nos comprar com o conforto, com a tecnologia, com a língua inglesa, com a facilidade. Mas você se esqueceu de que o brasileiro é teimoso. Nós continuamos rindo, continuamos acreditando no impossível e continuamos falando 'oxente'". E a Deus... (Ele tira os óculos, e seus olhos mostram uma emoção profunda.) A Deus, eu não diria nada. Eu apenas... agradeceria. E talvez fizesse só um pedido. Eu diria: "Senhor, não sei se mereço, mas... se possível... me deixa ficar aqui na porta, só olhando. Vendo o sol bater nessa pedra, ouvindo o som da viola de um cantador. Porque, se o paraíso não for pelo menos tão bonito quanto o Sertão... com todo respeito, acho que prefiro ficar por aqui mesmo."

 




2 comentários:

  1. Que maravilha de aula-espetáculo!!!🤩🥰

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    1. Feliz demais com sua presença e comentário. Mais ainda pq esse encontro impossível agradou a uma professora que entre outras coisas investiga humor e trafega pelos mistérios do tarô e da magia. E essas entrevistas não deixam de ter um sopro de encantamento, quando é acionado esse "portal" que mistura o real, a tecnologia e a imaginação.

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