Encontros Impossíveis
O eterno menino retorna a um Leblon suspenso entre a neblina e a memória, trazendo a leveza de quem transformou a rotina em eternidade.
"No fim dá
certo. Se não deu, é porque não chegou ao fim" — Fernando Sabino
Ele está lá, reclinado numa poltrona que parece tecida de nuvens e couro
velho. Veste sua camisa de mangas dobradas, mas sua figura tem um contorno
sutilmente luminoso, translúcido. Fernando Sabino sorri, e seu sorriso é a
única coisa absolutamente nítida neste cenário difuso. Ele observa o
entrevistador com a calma de quem já não tem pressa, pois o seu "encontro
marcado" final já aconteceu, e agora só lhe resta a eternidade para contar
causos.
SuperPauta: Mestre Fernando, vou começar do jeito que o mineiro gosta: devagarinho, pelas beiradas. Estamos aqui atravessando tempo, espaço e lógica sem pedir licença. O senhor, que é pai do Grande Mentecapto e especialista em absurdo, dá conta dessa nossa audácia ou acha que isso é só conversa fiada para tirar onda?
Fernando Sabino: (Ele solta
uma risada curta, balançando o gelo no copo) Meu filho, a lógica é a coisa mais
superestimada do mundo. Se a vida fosse lógica, seria uma chatice insuportável.
Estar aqui conversando com você, quebrando essas regras de tempo e espaço, me
parece a coisa mais natural do mundo. É como a história do Geraldo Viramundo:
de tanto ser absurda, vira verdade. Se estamos conversando, é porque existe o
encontro. E se existe o encontro, o resto é detalhe administrativo de São
Pedro. Senta aí, aceita um pão de queijo?
SuperPauta: Aceito, claro. Antes de entrarmos na prosa, trago notícias do seu clã. Começo pelo seu sobrinho Saulo Diniz, irmão do meu amigo Domingos. O Saulo é conhecido por ser um cruzeirense doente, fanático. O senhor, que em O Menino no Espelho confessou sua paixão pelo América Mineiro, perdoa esse "desvio" futebolístico na família?
Fernando Sabino: (Ele ri com
gosto, balançando a cabeça) Ah, o Saulo... Ninguém é perfeito, meu filho, mas ninguém
escolhe o time do coração, ele é que escolhe a gente. Eu sou América. E ser
América é quase uma filosofia: a gente aprende cedo que a glória é rara, mas o
encanto é permanente. O América é como um velho amigo que não faz barulho, mas
está sempre lá, com dignidade. Se o Saulo preferiu aquela tempestade azul, tudo
bem. O importante é ter um time que faça o coração bater mais rápido. Mas eu
lhe digo: torcer pelo América ensina a ter paciência, esperança… e um certo
humor diante da vida. No fundo, é um exercício de ternura.
SuperPauta: Falemos
sobre outros dois guardiões da sua memória. O Domingos Sabino seguiu seus
passos na crônica, com aquela prosa saborosa de quem sabe contar um causo. E o
Bernardo, seu filho, transformou a saudade em missão, dedicando a vida a cuidar
do seu acervo e manter sua obra viva. Como o coração do pai e do tio vê esses
dois caminhos?
Fernando Sabino: (O olhar dele se ilumina de uma ternura imensa. Sabino pousa o copo na
mesa.) Você toca no meu ponto fraco. O Domingos... ah, eu já sabia. Eu vi esse
menino começar a garimpar palavras desde cedo. A vocação dele nunca foi segredo
para mim. Saber que ele seguiu firme na lida, que continuou a conversar com o
leitor, é a prova de que a literatura é um vírus benigno na nossa família. O
Domingos tem o "olhar". Ele vê a graça onde os outros só veem rotina.
Isso me dá um orgulho danado. E o Bernardo... ah, o Bernardo. Sem ele, eu seria
apenas livros parados numa estante empoeirada. O Bernardo me mantém vivo. Ele
me leva para as escolas, para as praças, ele faz o meu "encontro
marcado" acontecer de novo com cada novo leitor. É um ato de amor que eu
não tenho nem como agradecer. Aproveito essa "fenda no tempo" para
mandar um abraço apertado, aquele abraço de quebrar costela, para eles e para
toda a minha família. Para a minha irmã Maria Conceição, mãe desses meninos de
ouro, e para todos que carregam o sobrenome ou o afeto. Digam a eles que a
saudade aqui é grande. Ela só não é maior que a paz.
SuperPauta: E já vou confessar outra ousadia, com a licença da intimidade: botei o
senhor num verso de uma canção chamada “Liberdade, Liberdade”, parceria com o conterrâneo
potiguar Geraldo Carvalho. Com ela disputamos um festival de música lá em
Tiradentes. O verso diz: "A vida tem ganhos e perdas / Tem Romanos e
Sabinos". O que o senhor acha dessa vizinhança poética com o Affonso
Romano de Sant’Anna? É uma rua tranquila ou uma travessa perigosa?
Fernando Sabino: (Ele ri com
gosto) "Romanos e Sabinos"! Mas olha que rima boa você arrumou! O
Affonso é um grande companheiro, um poeta de mão cheia. Ficar vizinho dele num
verso é uma honra, e além do mais, é uma vizinhança segura. O Affonso é gente
finíssima, não vai fazer barulho depois das dez da noite. Gostei muito. É bom
saber que a gente virou música. O cronista escreve para ser esquecido no dia
seguinte, embrulhar peixe na feira. Virar letra de música é uma promoção e
tanto!
SuperPauta: Eu conheci o senhor na biblioteca do meu pai, naquele quarto cheio de
livros que tinha cheiro de coisa guardada com carinho. Ali estavam O Encontro
Marcado, O Homem Nu... Ao ler seus livros, eu sentia que não estava lendo um
"autor", mas conversando com um amigo da família. O senhor tinha
consciência de que, ao escrever crônicas tão pessoais, estava entrando na casa
e na vida das pessoas com essa intimidade toda?
Fernando Sabino: (Ele sorri,
com um ar de gratidão humilde) Meu filho, que coisa bonita você me diz. Saber
que eu morava na biblioteca do seu pai... isso é a maior honra que um escriba
pode ter. Veja bem, eu nunca escrevi para "a posteridade" ou para os
críticos. Eu escrevia para conversar. A crônica é isso: é uma conversa de
papel. Eu sempre achei que o escritor é um sujeito solitário que grita em
silêncio, esperando que alguém, do outro lado, escute. Se você e seu pai me
escutaram, se me deixaram entrar na sala de estar e virar "de casa",
então o milagre aconteceu. O livro só existe quando encontra o leitor. Antes
disso, é só papel e tinta. Fico feliz de ter sido amigo do seu pai sem nunca
ter apertado a mão dele.
SuperPauta: Falando em memória e em sentidos... Minha lembrança dos seus livros tem esse cheiro de infância e papel. Mas e a sua memória? Se o senhor fechar os olhos agora, qual é a primeira lembrança sensorial que lhe vem de Belo Horizonte? Um cheiro, um barulho de bonde, uma luz específica da tarde?
Fernando Sabino: (Ele fecha os olhos por um
instante, respirando fundo) Ah, agora você me pegou... A primeira? É o cheiro
de terra molhada. Belo Horizonte tinha um cheiro muito específico quando a
chuva da tarde caía sobre o asfalto quente e a poeira vermelha subia. Aquele
cheiro de "terra lavada". E o barulho... o barulho inconfundível dos
bondes descendo a Avenida Afonso Pena. Aquele ranger metálico, clang-clung, que
parecia o metrônomo da cidade. Era uma cidade que não tinha pressa, sabe? As
montanhas em volta não prendiam a gente; elas eram um convite, uma moldura para
a gente sonhar com o mar que não tinha.
SuperPauta: Seu pai, Domingos Sabino, era comerciante. O senhor aprendeu com ele essa
arte de ir contando a vida como quem está vendendo uma história boa? E de Dona
Odete, sua mãe — que pedaço da sua sensibilidade veio dela?
Fernando Sabino: Papai era
uma figura. Ele vendia máquinas, vendia qualquer coisa, mas o que ele vendia
mesmo era confiança, era prosa. Aprendi com ele que você precisa conquistar o
ouvinte na primeira frase, senão ele fecha a porta. E mamãe... ah, Dona Odete tinha
ternura, mas também tinha disciplina. Foi ela quem me ensinou que caráter é
hábito. Se eu tenho algum olhar para o detalhe, para a dor escondida do outro,
veio dela. E a minha irmã Maria Conceição, mãe dos seus amigos... era a minha
cúmplice. O apelido "Nando"... quem me chamava assim eram os de casa.
Ouvir "Nando" é ouvir a voz da minha infância.
SuperPauta: Todo mundo diz que o senhor ajudou a inventar essa tal "mineiridade" urbana. Então, o que é ser mineiro de verdade? É sofrer quieto? É rir por dentro? É reparar primeiro e agir depois? Ou é tudo isso junto, num silêncio bem calculado?
Fernando Sabino: Ser
mineiro, meu filho, é não dizer tudo o que sabe e não fazer tudo o que pode. É
a arte da contenção. O mineiro trabalha em silêncio, como as formigas. Quando
você vê, a obra está pronta. É rir por dentro, sim. O mineiro acha graça da
pretensão humana, mas tem educação demais para rir na cara do sujeito. A gente
desconfia até da sombra, mas, depois que a sombra entra e toma um café, vira
compadre para o resto da vida.
SuperPauta: Agora, o famoso quarteto: o senhor, Otto, Hélio e Paulo. Como começou
essa amizade que virou lenda? Se o senhor tivesse que definir cada um com uma
única palavra, qual seria?
Fernando Sabino: (Ele
suspira, e o olhar fica distante, vagando pelo mar do Leblon) Ah... os quatro
cavaleiros de um apocalipse íntimo. Começou em BH, na juventude, naqueles bares
onde a gente consertava o Brasil e a literatura. Em uma palavra? O Otto (Lara Resende) era a Intensidade. Aquele olhar dele...
parecia que ele via a sua alma e a radiografia do seu pulmão ao mesmo tempo. O Hélio (Pellegrino) era o Profeta. Era o psicanalista, o
indignado, o homem que falava com Deus e brigava com Ele. E o Paulo (Mendes Campos)... o Paulo era a
Poesia. O lirismo em estado
puro, o homem que via o mundo meio de lado e achava beleza onde a gente só via
cinza.
SuperPauta: E o senhor — era o quê da turma? O humor, o fôlego, o cronista da
madrugada? Quando vocês desceram para o Rio, como foi?
Fernando Sabino: Eu? Eu era
o Cronista. O secretário da ata. Eu era o sujeito que anotava tudo para não
deixar a gente esquecer. Eu era o "Nando" que tentava botar ordem na
bagunça genial dos outros três. Quando viemos para o Rio, foi uma invasão
bárbara, mas pacífica. Não teve ciúme, não. A nossa amizade era maior que
qualquer vaidade literária. A gente torcia um pelo outro. O que nos unia era
uma angústia comum, uma fome de vida. Eu fui o último a apagar a luz, meu
filho. Fiquei doze anos aqui — ou melhor, aí embaixo — sem eles. E vou lhe
dizer: a falta que eles me fizeram naqueles anos finais foi uma coisa física.
Era como se me faltassem pedaços do corpo. O Rio ficou muito vazio sem o Otto
me ligando às seis da manhã para fofocar sobre o fim do mundo.
SuperPauta: Vamos falar do ofício. O senhor se sentia mais em casa no romance ou na
crônica — aquela prosa curta que parece despretensiosa mas pega a gente pelo
colarinho? O segredo de ver o extraordinário num dia qualquer, num porteiro,
num cachorro... é dom ou é treino do olhar?
Fernando Sabino: Eu sou um
"escritor bissexto", um "escritor de mão esquerda", como eu
dizia. A crônica é o meu chinelo velho, é onde eu fico à vontade. O romance
exige fôlego de maratonista, e eu sempre fui mais para o sprint do
nadador de 100 metros. O segredo do olhar? É treino. É estar disponível. O
milagre está na esquina, meu caro. Está no jeito que o porteiro cumprimenta a
empregada, está no cachorro que late para o pneu. A maioria das pessoas passa
pela vida sem ver, porque está ocupada demais sendo importante. O cronista é o
sujeito desimportante que fica na janela.
SuperPauta: O jornalismo ajudou a afiar o texto ou deu vontade de largar tudo? E o Rubem Braga? Era mesmo o mestre de todo mundo, aquele tipo de amigo que ensina ficando calado?
Fernando Sabino: O
jornalismo ensina a cortar adjetivo. Ensina que o leitor não tem tempo a
perder. E o Rubem... o Rubem Braga era o sabiá-mor. O mestre absoluto. Ele
ensinava calado, sim. Ele tinha uma sabedoria quieta, como quem sabe das coisas
antes de falar. O Rubem escrevia como quem respira. A gente suava a camisa; ele
só... existia.
SuperPauta: Vamos aos causos clássicos, que aqui a gente não perdoa. Muita gente
conhece o título, mas não sabe a história. O "Homem Nu" no banheiro —
um sujeito que vai pegar o pão, a porta bate e ele fica nu no corredor — aquilo
aconteceu mesmo ou é mentira verdadeira das boas? E o elefante roubado no
aniversário? Onde o leitor curioso encontra essas pérolas?
Fernando Sabino: (Gargalhadas)
O "Homem Nu"... bem, a situação é o pesadelo universal, não é? Aquele
sujeito que, nu em pelo, tenta resgatar a dignidade e o pãozinho. Aconteceu,
sim, mas com um conhecido. O que eu fiz no livro "O Homem Nu" foi dar
a ele um final... digamos, heroico e carnavalesco. Quem quiser saber como ele se
salvou da polícia e da vergonha, vai ter que ler o livro. Eu garanto que o
final vale o ingresso. Agora, o elefante... Ah, essa está no livro "A
Companheira de Viagem", na crônica O Elefante. Aquilo foi loucura da nossa
turma. A gente queria fazer uma surpresa numa festa de aniversário de criança,
e resolvemos "tomar emprestado" um elefante de um circo que estava na
cidade. O problema, meu filho, não é roubar o elefante. O problema é: onde você
estaciona um elefante em Copacabana? Como você faz um paquiderme entrar num
elevador social? (Ele ri muito) Digamos que o síndico não gostou nada da
visita. A história completa está lá no livro, mas posso adiantar que devolver o
bicho foi mais difícil do que roubar.
SuperPauta: O Grande Mentecapto
demorou 30 anos para sair. Foi teimosia do livro ou perfeccionismo do autor? O
Geraldo Viramundo é um Dom Quixote de boteco?
Fernando Sabino: Foi
teimosia do personagem! O Viramundo não queria nascer. Ele ficou me rondando
três décadas. Ele é o meu Dom Quixote, sim. É o sujeito que é tão bom, tão
puro, que o mundo chama de louco. É a minha obra onde eu tentei dizer que a
loucura do bem é a única salvação possível contra a sensatez do mal. Acho que é
o livro que eu mais gosto, porque ele me deu mais trabalho e mais alegria.
SuperPauta: Seu Fernando, na biblioteca do meu pai eu também encontrei Zélia, uma paixão. Lembro que esse livro causou um terremoto. O senhor, um autor amado pelo Brasil inteiro, de repente escreveu um perfil apaixonado da Ministra Zélia Cardoso de Mello, a mulher que confiscou a poupança do país. A crítica caiu matando, chamaram de "o grande escorregão". Olhando de onde o senhor está agora: valeu a pena? Foi coragem de se expor ou foi uma "mentecaptice" do coração?
Fernando Sabino: (Ele
suspira, franze a testa e mexe o gelo no copo, demonstrando um leve
desconforto, mas sem perder a altivez) Ah, meu filho... você tocou na ferida.
Veja bem, o escritor tem um defeito grave: ele se interessa por gente. E eu me
encantei pela pessoa da Zélia, pela força, pela solidão dela no poder. Eu não
estava escrevendo sobre economia, eu estava escrevendo sobre uma mulher num
furacão. Na época, me bateram muito. Disseram que eu traí o povo, que eu fiquei
cego. Pode ser. Mas o cronista é fiel ao seu sentimento do momento. Se foi um
"escorregão"? Talvez tenha sido. Mas eu sempre preferi o risco de
errar por afeto do que o de acertar por cálculo. Fui criticado, claro. Mas
nunca tive vergonha de sentir o que senti. Se faria de novo? Não sei. Mas não
renego o que escrevi. O livro é o retrato de um tempo e de um fascínio. E o
fascínio, meu caro, não pede licença à lógica política.
SuperPauta: O senhor teve medo de envelhecer? Em O Fim de Tudo, o senhor
encara a velhice com humor e dor. O que é a saudade — esse idioma que o mineiro
fala desde pequeno?
Fernando Sabino: Medo? Não.
Tive foi impaciência. A velhice é uma chateação. O corpo começa a reclamar, os
amigos vão indo embora... Mas a alternativa é morrer jovem, e isso eu não
queria. A saudade... ah, a saudade. O mineiro não sente saudade; o
mineiro cultiva saudade. Saudade não é a falta. Saudade é a presença de
quem não está. É quando o passado fica tão forte que vira presente. Eu sinto
saudade do futuro que eu não vou ver, e sinto saudade do menino que fui em BH.
SuperPauta: Sobre O Encontro Marcado: quem era o Hugo? O senhor espelhado ou um personagem autônomo? Por que aquela angústia dos anos 60 ainda mora na gente hoje?
Fernando Sabino: O Hugo sou
eu e não sou eu. Ele é o lado sombra, o lado que tinha medo, que buscava um sentido
desesperadamente. Aquela angústia é humana, meu filho. É a angústia de saber
que a gente vai morrer e ter que achar um motivo para viver no meio tempo. Os
jovens de hoje sentem a mesma coisa, só mudaram o cenário. O "encontro
marcado" é com nós mesmos, e a gente passa a vida tentando fugir desse
encontro.
SuperPauta: O senhor pediu um epitáfio que é quase um mantra e que está lá, no seu
túmulo: "Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino." O
que isso significa? Foi a sua vitória final contra o tempo?
Fernando Sabino: Foi a minha
teimosia final. Veja bem, a gente passa a vida inteira aprendendo a ser adulto,
a ser sério, a pagar conta, a usar gravata. Mas a sabedoria... a sabedoria
verdadeira está em recuperar o olhar da criança. O menino não julga, o menino
descobre. O menino não tem passado, só tem presente. Eu quis que escrevessem
isso para lembrar a Deus — caso Ele precisasse de um lembrete — de que, apesar
das rugas e dos cabelos brancos, a minha alma continuou subindo em árvore e
roubando goiaba. Morrer menino é o único jeito de não morrer de tédio.
SuperPauta: Mestre, suas crônicas vinham da rua, do bar, do telefone fixo. O que o senhor acha desse "encontro virtual" de hoje? A crônica cabe no TikTok? Pergunto o mesmo que perguntei a Ariano Suassuna: uma máquina, uma Inteligência Artificial, dá conta de ter "ironia fina"?
Fernando Sabino: (Ele franze
a testa, divertido) Inteligência Artificial para fazer crônica? Duvido. A
máquina é lógica demais. A crônica nasce do erro, do engano, da imperfeição.
Uma máquina jamais entenderia a graça de um "homem nu" tentando pegar
o pão. A máquina é lógica demais. E a vida — justamente — não é. A crônica cabe
em qualquer lugar, até no tal do TikTok, desde que tenha alma humana por trás.
Mas sinto falta do olho no olho. O encontro virtual é meio... "desencontro
marcado".
SuperPauta: Para quem viveu ditadura, censura, e amou tanto a vida simples: o que é
liberdade? E que conselho o senhor deixaria hoje pro seu sobrinho Domingos e
para nós, que ficamos aqui tentando entender o mundo?
Fernando Sabino: Liberdade,
como na sua música... Liberdade é a capacidade de escolher a sua própria
prisão. Eu escolhi a prisão das palavras, e nela eu sou livre. Para o Domingos,
para o Bernardo, para o Saulo, e para você, eu digo: não levem a vida tão a
sério. Ela não leva vocês a sério. Escrevam. Contem histórias. Amem os amigos.
E, se tudo der errado, façam como o mineiro: peçam um pão de queijo, passem um
café e esperem a chuva passar. Porque ela passa.
SuperPauta: Para terminar, mestre Fernando: a vida tem sentido? Ou ela é, no fundo,
só um causo bem contado por quem souber ouvir o silêncio entre uma frase e
outra?
Fernando Sabino: (Ele
termina o uísque, sorri e começa a batucar de leve na mesa, num ritmo de jazz,
usando os dedos como baquetas) O sentido da vida... O sentido da vida é que ela
não tem partitura, meu filho. É que nem o jazz. É improviso puro. A gente
estuda, faz planos, tenta seguir o roteiro, mas na hora H, a vida muda o tom e
você tem que se virar. O segredo não é acertar sempre. O segredo é que, se você
desafinar ou perder o tempo, tem que continuar tocando com um sorriso no rosto,
fingindo que foi de propósito. No fim, se a música foi boa, valeu a pena.
Agora, se me dá licença, acho que ouvi o telefone
tocar. Deve ser o Otto. Ele detesta esperar.










Bela homenagem!💖
ResponderExcluir