sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Fernando Sabino

 

Encontros Impossíveis

 A sabedoria de quem quis morrer menino

 

O eterno menino retorna a um Leblon suspenso entre a neblina e a memória, trazendo a leveza de quem transformou a rotina em eternidade.

 

"No fim dá certo. Se não deu, é porque não chegou ao fim" — Fernando Sabino

 

Não estamos exatamente no Rio de Janeiro, mas na ideia que a saudade guardou dele. É uma cobertura no Leblon, mas as paredes parecem feitas de bruma e o mar lá embaixo se move em câmera lenta, sem som, como um espelho líquido suspenso no vácuo. O Pão de Açúcar flutua num horizonte dourado e imóvel, como numa fotografia antiga colorida à mão. É um fim de tarde eterno de domingo. Neste espaço onde a gravidade é mais leve, uma bateria de jazz toca sozinha — pratos e vassourinhas roçando o silêncio — num ritmo suave que só a alma escuta. O cheiro de pão de queijo e café não vem de uma cozinha física, mas emana do ambiente como uma "lembrança olfativa", densa e acolhedora.

Ele está lá, reclinado numa poltrona que parece tecida de nuvens e couro velho. Veste sua camisa de mangas dobradas, mas sua figura tem um contorno sutilmente luminoso, translúcido. Fernando Sabino sorri, e seu sorriso é a única coisa absolutamente nítida neste cenário difuso. Ele observa o entrevistador com a calma de quem já não tem pressa, pois o seu "encontro marcado" final já aconteceu, e agora só lhe resta a eternidade para contar causos.

 



SuperPauta: Mestre Fernando, vou começar do jeito que o mineiro gosta: devagarinho, pelas beiradas. Estamos aqui atravessando tempo, espaço e lógica sem pedir licença. O senhor, que é pai do Grande Mentecapto e especialista em absurdo, dá conta dessa nossa audácia ou acha que isso é só conversa fiada para tirar onda?

Fernando Sabino: (Ele solta uma risada curta, balançando o gelo no copo) Meu filho, a lógica é a coisa mais superestimada do mundo. Se a vida fosse lógica, seria uma chatice insuportável. Estar aqui conversando com você, quebrando essas regras de tempo e espaço, me parece a coisa mais natural do mundo. É como a história do Geraldo Viramundo: de tanto ser absurda, vira verdade. Se estamos conversando, é porque existe o encontro. E se existe o encontro, o resto é detalhe administrativo de São Pedro. Senta aí, aceita um pão de queijo?

 

SuperPauta: Aceito, claro. Antes de entrarmos na prosa, trago notícias do seu clã. Começo pelo seu sobrinho Saulo Diniz, irmão do meu amigo Domingos. O Saulo é conhecido por ser um cruzeirense doente, fanático. O senhor, que em O Menino no Espelho confessou sua paixão pelo América Mineiro, perdoa esse "desvio" futebolístico na família?

Fernando Sabino: (Ele ri com gosto, balançando a cabeça) Ah, o Saulo... Ninguém é perfeito, meu filho, mas ninguém escolhe o time do coração, ele é que escolhe a gente. Eu sou América. E ser América é quase uma filosofia: a gente aprende cedo que a glória é rara, mas o encanto é permanente. O América é como um velho amigo que não faz barulho, mas está sempre lá, com dignidade. Se o Saulo preferiu aquela tempestade azul, tudo bem. O importante é ter um time que faça o coração bater mais rápido. Mas eu lhe digo: torcer pelo América ensina a ter paciência, esperança… e um certo humor diante da vida. No fundo, é um exercício de ternura.

 

SuperPauta: Falemos sobre outros dois guardiões da sua memória. O Domingos Sabino seguiu seus passos na crônica, com aquela prosa saborosa de quem sabe contar um causo. E o Bernardo, seu filho, transformou a saudade em missão, dedicando a vida a cuidar do seu acervo e manter sua obra viva. Como o coração do pai e do tio vê esses dois caminhos?

Fernando Sabino: (O olhar dele se ilumina de uma ternura imensa. Sabino pousa o copo na mesa.) Você toca no meu ponto fraco. O Domingos... ah, eu já sabia. Eu vi esse menino começar a garimpar palavras desde cedo. A vocação dele nunca foi segredo para mim. Saber que ele seguiu firme na lida, que continuou a conversar com o leitor, é a prova de que a literatura é um vírus benigno na nossa família. O Domingos tem o "olhar". Ele vê a graça onde os outros só veem rotina. Isso me dá um orgulho danado. E o Bernardo... ah, o Bernardo. Sem ele, eu seria apenas livros parados numa estante empoeirada. O Bernardo me mantém vivo. Ele me leva para as escolas, para as praças, ele faz o meu "encontro marcado" acontecer de novo com cada novo leitor. É um ato de amor que eu não tenho nem como agradecer. Aproveito essa "fenda no tempo" para mandar um abraço apertado, aquele abraço de quebrar costela, para eles e para toda a minha família. Para a minha irmã Maria Conceição, mãe desses meninos de ouro, e para todos que carregam o sobrenome ou o afeto. Digam a eles que a saudade aqui é grande. Ela só não é maior que a paz.

 

SuperPauta: E já vou confessar outra ousadia, com a licença da intimidade: botei o senhor num verso de uma canção chamada “Liberdade, Liberdade”, parceria com o conterrâneo potiguar Geraldo Carvalho. Com ela disputamos um festival de música lá em Tiradentes. O verso diz: "A vida tem ganhos e perdas / Tem Romanos e Sabinos". O que o senhor acha dessa vizinhança poética com o Affonso Romano de Sant’Anna? É uma rua tranquila ou uma travessa perigosa?

Fernando Sabino: (Ele ri com gosto) "Romanos e Sabinos"! Mas olha que rima boa você arrumou! O Affonso é um grande companheiro, um poeta de mão cheia. Ficar vizinho dele num verso é uma honra, e além do mais, é uma vizinhança segura. O Affonso é gente finíssima, não vai fazer barulho depois das dez da noite. Gostei muito. É bom saber que a gente virou música. O cronista escreve para ser esquecido no dia seguinte, embrulhar peixe na feira. Virar letra de música é uma promoção e tanto!

 

SuperPauta: Eu conheci o senhor na biblioteca do meu pai, naquele quarto cheio de livros que tinha cheiro de coisa guardada com carinho. Ali estavam O Encontro Marcado, O Homem Nu... Ao ler seus livros, eu sentia que não estava lendo um "autor", mas conversando com um amigo da família. O senhor tinha consciência de que, ao escrever crônicas tão pessoais, estava entrando na casa e na vida das pessoas com essa intimidade toda?

Fernando Sabino: (Ele sorri, com um ar de gratidão humilde) Meu filho, que coisa bonita você me diz. Saber que eu morava na biblioteca do seu pai... isso é a maior honra que um escriba pode ter. Veja bem, eu nunca escrevi para "a posteridade" ou para os críticos. Eu escrevia para conversar. A crônica é isso: é uma conversa de papel. Eu sempre achei que o escritor é um sujeito solitário que grita em silêncio, esperando que alguém, do outro lado, escute. Se você e seu pai me escutaram, se me deixaram entrar na sala de estar e virar "de casa", então o milagre aconteceu. O livro só existe quando encontra o leitor. Antes disso, é só papel e tinta. Fico feliz de ter sido amigo do seu pai sem nunca ter apertado a mão dele.

 

SuperPauta: Falando em memória e em sentidos... Minha lembrança dos seus livros tem esse cheiro de infância e papel. Mas e a sua memória? Se o senhor fechar os olhos agora, qual é a primeira lembrança sensorial que lhe vem de Belo Horizonte? Um cheiro, um barulho de bonde, uma luz específica da tarde?

Fernando Sabino: (Ele fecha os olhos por um instante, respirando fundo) Ah, agora você me pegou... A primeira? É o cheiro de terra molhada. Belo Horizonte tinha um cheiro muito específico quando a chuva da tarde caía sobre o asfalto quente e a poeira vermelha subia. Aquele cheiro de "terra lavada". E o barulho... o barulho inconfundível dos bondes descendo a Avenida Afonso Pena. Aquele ranger metálico, clang-clung, que parecia o metrônomo da cidade. Era uma cidade que não tinha pressa, sabe? As montanhas em volta não prendiam a gente; elas eram um convite, uma moldura para a gente sonhar com o mar que não tinha.

 

SuperPauta: Seu pai, Domingos Sabino, era comerciante. O senhor aprendeu com ele essa arte de ir contando a vida como quem está vendendo uma história boa? E de Dona Odete, sua mãe — que pedaço da sua sensibilidade veio dela?

Fernando Sabino: Papai era uma figura. Ele vendia máquinas, vendia qualquer coisa, mas o que ele vendia mesmo era confiança, era prosa. Aprendi com ele que você precisa conquistar o ouvinte na primeira frase, senão ele fecha a porta. E mamãe... ah, Dona Odete tinha ternura, mas também tinha disciplina. Foi ela quem me ensinou que caráter é hábito. Se eu tenho algum olhar para o detalhe, para a dor escondida do outro, veio dela. E a minha irmã Maria Conceição, mãe dos seus amigos... era a minha cúmplice. O apelido "Nando"... quem me chamava assim eram os de casa. Ouvir "Nando" é ouvir a voz da minha infância.

 

SuperPauta: Todo mundo diz que o senhor ajudou a inventar essa tal "mineiridade" urbana. Então, o que é ser mineiro de verdade? É sofrer quieto? É rir por dentro? É reparar primeiro e agir depois? Ou é tudo isso junto, num silêncio bem calculado?

Fernando Sabino: Ser mineiro, meu filho, é não dizer tudo o que sabe e não fazer tudo o que pode. É a arte da contenção. O mineiro trabalha em silêncio, como as formigas. Quando você vê, a obra está pronta. É rir por dentro, sim. O mineiro acha graça da pretensão humana, mas tem educação demais para rir na cara do sujeito. A gente desconfia até da sombra, mas, depois que a sombra entra e toma um café, vira compadre para o resto da vida.

 

SuperPauta: Agora, o famoso quarteto: o senhor, Otto, Hélio e Paulo. Como começou essa amizade que virou lenda? Se o senhor tivesse que definir cada um com uma única palavra, qual seria?

Fernando Sabino: (Ele suspira, e o olhar fica distante, vagando pelo mar do Leblon) Ah... os quatro cavaleiros de um apocalipse íntimo. Começou em BH, na juventude, naqueles bares onde a gente consertava o Brasil e a literatura. Em uma palavra? O Otto (Lara Resende) era a Intensidade. Aquele olhar dele... parecia que ele via a sua alma e a radiografia do seu pulmão ao mesmo tempo. O Hélio (Pellegrino) era o Profeta. Era o psicanalista, o indignado, o homem que falava com Deus e brigava com Ele. E o Paulo (Mendes Campos)... o Paulo era a Poesia. O lirismo em estado puro, o homem que via o mundo meio de lado e achava beleza onde a gente só via cinza.

 

SuperPauta: E o senhor — era o quê da turma? O humor, o fôlego, o cronista da madrugada? Quando vocês desceram para o Rio, como foi?

Fernando Sabino: Eu? Eu era o Cronista. O secretário da ata. Eu era o sujeito que anotava tudo para não deixar a gente esquecer. Eu era o "Nando" que tentava botar ordem na bagunça genial dos outros três. Quando viemos para o Rio, foi uma invasão bárbara, mas pacífica. Não teve ciúme, não. A nossa amizade era maior que qualquer vaidade literária. A gente torcia um pelo outro. O que nos unia era uma angústia comum, uma fome de vida. Eu fui o último a apagar a luz, meu filho. Fiquei doze anos aqui — ou melhor, aí embaixo — sem eles. E vou lhe dizer: a falta que eles me fizeram naqueles anos finais foi uma coisa física. Era como se me faltassem pedaços do corpo. O Rio ficou muito vazio sem o Otto me ligando às seis da manhã para fofocar sobre o fim do mundo.

 

SuperPauta: Vamos falar do ofício. O senhor se sentia mais em casa no romance ou na crônica — aquela prosa curta que parece despretensiosa mas pega a gente pelo colarinho? O segredo de ver o extraordinário num dia qualquer, num porteiro, num cachorro... é dom ou é treino do olhar?

Fernando Sabino: Eu sou um "escritor bissexto", um "escritor de mão esquerda", como eu dizia. A crônica é o meu chinelo velho, é onde eu fico à vontade. O romance exige fôlego de maratonista, e eu sempre fui mais para o sprint do nadador de 100 metros. O segredo do olhar? É treino. É estar disponível. O milagre está na esquina, meu caro. Está no jeito que o porteiro cumprimenta a empregada, está no cachorro que late para o pneu. A maioria das pessoas passa pela vida sem ver, porque está ocupada demais sendo importante. O cronista é o sujeito desimportante que fica na janela.

 

SuperPauta: O jornalismo ajudou a afiar o texto ou deu vontade de largar tudo? E o Rubem Braga? Era mesmo o mestre de todo mundo, aquele tipo de amigo que ensina ficando calado?

Fernando Sabino: O jornalismo ensina a cortar adjetivo. Ensina que o leitor não tem tempo a perder. E o Rubem... o Rubem Braga era o sabiá-mor. O mestre absoluto. Ele ensinava calado, sim. Ele tinha uma sabedoria quieta, como quem sabe das coisas antes de falar. O Rubem escrevia como quem respira. A gente suava a camisa; ele só... existia.

 

SuperPauta: Vamos aos causos clássicos, que aqui a gente não perdoa. Muita gente conhece o título, mas não sabe a história. O "Homem Nu" no banheiro — um sujeito que vai pegar o pão, a porta bate e ele fica nu no corredor — aquilo aconteceu mesmo ou é mentira verdadeira das boas? E o elefante roubado no aniversário? Onde o leitor curioso encontra essas pérolas?

Fernando Sabino: (Gargalhadas) O "Homem Nu"... bem, a situação é o pesadelo universal, não é? Aquele sujeito que, nu em pelo, tenta resgatar a dignidade e o pãozinho. Aconteceu, sim, mas com um conhecido. O que eu fiz no livro "O Homem Nu" foi dar a ele um final... digamos, heroico e carnavalesco. Quem quiser saber como ele se salvou da polícia e da vergonha, vai ter que ler o livro. Eu garanto que o final vale o ingresso. Agora, o elefante... Ah, essa está no livro "A Companheira de Viagem", na crônica O Elefante. Aquilo foi loucura da nossa turma. A gente queria fazer uma surpresa numa festa de aniversário de criança, e resolvemos "tomar emprestado" um elefante de um circo que estava na cidade. O problema, meu filho, não é roubar o elefante. O problema é: onde você estaciona um elefante em Copacabana? Como você faz um paquiderme entrar num elevador social? (Ele ri muito) Digamos que o síndico não gostou nada da visita. A história completa está lá no livro, mas posso adiantar que devolver o bicho foi mais difícil do que roubar.

 

SuperPauta: O Grande Mentecapto demorou 30 anos para sair. Foi teimosia do livro ou perfeccionismo do autor? O Geraldo Viramundo é um Dom Quixote de boteco?

Fernando Sabino: Foi teimosia do personagem! O Viramundo não queria nascer. Ele ficou me rondando três décadas. Ele é o meu Dom Quixote, sim. É o sujeito que é tão bom, tão puro, que o mundo chama de louco. É a minha obra onde eu tentei dizer que a loucura do bem é a única salvação possível contra a sensatez do mal. Acho que é o livro que eu mais gosto, porque ele me deu mais trabalho e mais alegria.

 

SuperPauta: Seu Fernando, na biblioteca do meu pai eu também encontrei Zélia, uma paixão. Lembro que esse livro causou um terremoto. O senhor, um autor amado pelo Brasil inteiro, de repente escreveu um perfil apaixonado da Ministra Zélia Cardoso de Mello, a mulher que confiscou a poupança do país. A crítica caiu matando, chamaram de "o grande escorregão". Olhando de onde o senhor está agora: valeu a pena? Foi coragem de se expor ou foi uma "mentecaptice" do coração?

Fernando Sabino: (Ele suspira, franze a testa e mexe o gelo no copo, demonstrando um leve desconforto, mas sem perder a altivez) Ah, meu filho... você tocou na ferida. Veja bem, o escritor tem um defeito grave: ele se interessa por gente. E eu me encantei pela pessoa da Zélia, pela força, pela solidão dela no poder. Eu não estava escrevendo sobre economia, eu estava escrevendo sobre uma mulher num furacão. Na época, me bateram muito. Disseram que eu traí o povo, que eu fiquei cego. Pode ser. Mas o cronista é fiel ao seu sentimento do momento. Se foi um "escorregão"? Talvez tenha sido. Mas eu sempre preferi o risco de errar por afeto do que o de acertar por cálculo. Fui criticado, claro. Mas nunca tive vergonha de sentir o que senti. Se faria de novo? Não sei. Mas não renego o que escrevi. O livro é o retrato de um tempo e de um fascínio. E o fascínio, meu caro, não pede licença à lógica política.

 

SuperPauta: O senhor teve medo de envelhecer? Em O Fim de Tudo, o senhor encara a velhice com humor e dor. O que é a saudade — esse idioma que o mineiro fala desde pequeno?

Fernando Sabino: Medo? Não. Tive foi impaciência. A velhice é uma chateação. O corpo começa a reclamar, os amigos vão indo embora... Mas a alternativa é morrer jovem, e isso eu não queria. A saudade... ah, a saudade. O mineiro não sente saudade; o mineiro cultiva saudade. Saudade não é a falta. Saudade é a presença de quem não está. É quando o passado fica tão forte que vira presente. Eu sinto saudade do futuro que eu não vou ver, e sinto saudade do menino que fui em BH.

 

SuperPauta: Sobre O Encontro Marcado: quem era o Hugo? O senhor espelhado ou um personagem autônomo? Por que aquela angústia dos anos 60 ainda mora na gente hoje?

Fernando Sabino: O Hugo sou eu e não sou eu. Ele é o lado sombra, o lado que tinha medo, que buscava um sentido desesperadamente. Aquela angústia é humana, meu filho. É a angústia de saber que a gente vai morrer e ter que achar um motivo para viver no meio tempo. Os jovens de hoje sentem a mesma coisa, só mudaram o cenário. O "encontro marcado" é com nós mesmos, e a gente passa a vida tentando fugir desse encontro.

 

SuperPauta: O senhor pediu um epitáfio que é quase um mantra e que está lá, no seu túmulo: "Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino." O que isso significa? Foi a sua vitória final contra o tempo?

Fernando Sabino: Foi a minha teimosia final. Veja bem, a gente passa a vida inteira aprendendo a ser adulto, a ser sério, a pagar conta, a usar gravata. Mas a sabedoria... a sabedoria verdadeira está em recuperar o olhar da criança. O menino não julga, o menino descobre. O menino não tem passado, só tem presente. Eu quis que escrevessem isso para lembrar a Deus — caso Ele precisasse de um lembrete — de que, apesar das rugas e dos cabelos brancos, a minha alma continuou subindo em árvore e roubando goiaba. Morrer menino é o único jeito de não morrer de tédio.

 

SuperPauta: Mestre, suas crônicas vinham da rua, do bar, do telefone fixo. O que o senhor acha desse "encontro virtual" de hoje? A crônica cabe no TikTok? Pergunto o mesmo que perguntei a Ariano Suassuna: uma máquina, uma Inteligência Artificial, dá conta de ter "ironia fina"?

Fernando Sabino: (Ele franze a testa, divertido) Inteligência Artificial para fazer crônica? Duvido. A máquina é lógica demais. A crônica nasce do erro, do engano, da imperfeição. Uma máquina jamais entenderia a graça de um "homem nu" tentando pegar o pão. A máquina é lógica demais. E a vida — justamente — não é. A crônica cabe em qualquer lugar, até no tal do TikTok, desde que tenha alma humana por trás. Mas sinto falta do olho no olho. O encontro virtual é meio... "desencontro marcado".

 

SuperPauta: Para quem viveu ditadura, censura, e amou tanto a vida simples: o que é liberdade? E que conselho o senhor deixaria hoje pro seu sobrinho Domingos e para nós, que ficamos aqui tentando entender o mundo?

Fernando Sabino: Liberdade, como na sua música... Liberdade é a capacidade de escolher a sua própria prisão. Eu escolhi a prisão das palavras, e nela eu sou livre. Para o Domingos, para o Bernardo, para o Saulo, e para você, eu digo: não levem a vida tão a sério. Ela não leva vocês a sério. Escrevam. Contem histórias. Amem os amigos. E, se tudo der errado, façam como o mineiro: peçam um pão de queijo, passem um café e esperem a chuva passar. Porque ela passa.

 

SuperPauta: Para terminar, mestre Fernando: a vida tem sentido? Ou ela é, no fundo, só um causo bem contado por quem souber ouvir o silêncio entre uma frase e outra?

Fernando Sabino: (Ele termina o uísque, sorri e começa a batucar de leve na mesa, num ritmo de jazz, usando os dedos como baquetas) O sentido da vida... O sentido da vida é que ela não tem partitura, meu filho. É que nem o jazz. É improviso puro. A gente estuda, faz planos, tenta seguir o roteiro, mas na hora H, a vida muda o tom e você tem que se virar. O segredo não é acertar sempre. O segredo é que, se você desafinar ou perder o tempo, tem que continuar tocando com um sorriso no rosto, fingindo que foi de propósito. No fim, se a música foi boa, valeu a pena.

Agora, se me dá licença, acho que ouvi o telefone tocar. Deve ser o Otto. Ele detesta esperar.




Um comentário: