quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Encontros Impossíveis – São Francisco de Assis

Encontros Impossíveis

O Canto do Irmão Sol

São Francisco retorna com a humildade que desarmou lobos e reis, mantendo esta conversa imaginária com o SuperPauta sobre a alegria na pobreza, a fraternidade universal e a força que nasce da simplicidade do coração

Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas.” — São Francisco de Assis


 

O ar na sala parecia vibrar em uma harmonia suave, como a quietude após a oração. Em meio à luz baixa, a figura de São Francisco de Assis se materializou. Não havia pompa, apenas o tecido grosseiro de seu hábito e um sorriso que desarmava. Não havia pompa, apenas o tecido áspero do hábito e um sorriso que desarmava. Seu olhar — que, embora cego nos últimos dias, via além das formas — irradiava uma luz serena. Moveu-se com a graça de quem encontrou a paz interior. Ao sentar-se, fez a cadeira simples parecer um trono, não pela vaidade, mas pela humildade que o revestia. Com um leve aceno de cabeça, abençoou o ambiente e deu início à conversa. Sua voz era terna, mas firme, com a ressonância de quem sempre buscou viver o Evangelho: "Pregue o Evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras."

A sugestão de trazer São Francisco de Assis para esta série partiu do amigo Florian Madruga, nascido a 4 de outubro – dia consagrado ao santo. Neste novo encontro imaginário, São Francisco, de quem Florian é devoto, conta como abandonou a vida de luxo para abraçar a pobreza, fala sobre o poder do abraço no leproso que mudou tudo, e ensina que a verdadeira alegria não está nos milagres, mas na paciência diante das ofensas. Ele recorda o momento em que recebeu as marcas de Cristo — os estigmas — no Monte Alverne, dois anos antes de morrer, e explica que toda a Criação é sua família. Por fim, deixa um recado sobre a importância de viver o Evangelho com a vida, não apenas com palavras, e mostra que a simplicidade é o único caminho seguro. (Roberto Homem)


 

SuperPauta: Frei Francisco, o pessoal de Assis te conhecia como Giovanni, o filho do rico Pietro Bernardone, que vivia na farra e sonhava ser um cavaleiro famoso. O que o fez trocar aquela “vida boa” e a roupa de luxo por esse hábito simples que você usa?
São Francisco: A paz e o bem, irmão. É verdade: durante muitos anos eu me deixei seduzir pelas festas, pelos banquetes, pelas canções e pelas roupas caras. Queria ser alguém admirado, um cavaleiro vitorioso, um homem de glória e aplausos. Mas Deus, em sua bondade, me esperava na curva da estrada. Ele me visitou na doença, quando meu corpo enfraqueceu, e me fez provar a fragilidade das forças humanas. Depois, veio a guerra, e nela entendi o quanto é inútil a ambição quando a alma está vazia. Mas o verdadeiro chamado não veio de trombetas nem de vozes do céu — veio de um encontro: o leproso. Aquele abraço foi o momento em que a luz atravessou as minhas sombras. Eu, que antes desviava o olhar e o nariz, senti, naquele instante, uma doçura que não era deste mundo. Percebi que o Cristo estava escondido nos desprezados. E compreendi que a pobreza, que o mundo teme, é na verdade a liberdade dos que amam. Ali, nasceu o Francisco — o irmão menor.

 

SuperPauta: A voz que você ouviu na Capela de São Damião — “Francisco, reconstrói a minha Igreja” — foi interpretada literalmente no início. Saiu pedindo pedra pra reformar o prédio. Você demorou a perceber que Deus falava de uma reconstrução espiritual?

São Francisco: (Inclina o corpo ligeiramente para a frente, em um gesto de humildade) Ah, irmão, como somos lentos para entender as coisas do Espírito! Quando ouvi aquela voz, pensei nas paredes quebradas, no telhado caído, na argamassa que faltava. Recolhi pedras com as mãos e mendiguei tijolos pelas ruas, achando que fazia a vontade do Altíssimo. Mas o Senhor, paciente, sorriu da minha simplicidade. Ele sabia que, ao reconstruir uma capela, eu aprenderia o que é erguer um coração. Com o tempo, percebi: a Igreja que Ele queria restaurar era viva, feita de almas cansadas e corações em ruína. E cada pedra que eu colocava na parede de São Damião me ensinava sobre o tijolo invisível da fé. Assim é Deus: fala-nos com palavras humanas para nos levar a compreender o divino.

SuperPauta: O Cântico das Criaturas, seu hino mais famoso, é considerado o início da poesia italiana. O senhor estava quase cego e sofrendo muito quando o escreveu, chamando o sol, a água e até a morte de “irmãos” e “irmãs”. Como veio essa inspiração num momento tão difícil? 
São Francisco: (Seus olhos fixam um ponto distante, como se visse a cena) Ah, meu filho, quando os olhos da carne se fecham, os da alma se abrem. A inspiração não veio do corpo, mas do coração que já enxergava o céu dentro da dor. Eu sofria, sim, mas cada coisa me falava de Deus: o vento que passava era o sopro do Espírito, o sol que queimava era o calor do amor divino, a água fresca era o batismo da terra. Chamar o fogo, a lua e a morte de irmãos não era metáfora — era reconhecimento. Tudo o que existe é dom, e todo dom é sinal da ternura do Criador. A irmã Água é pura e humilde; o irmão Fogo, forte e alegre; a Irmã Morte, inevitável e libertadora. O Cântico foi um louvor em meio à agonia, um grito de gratidão de um corpo ferido, mas de uma alma livre. É a canção do homem que, mesmo cego, ainda vê Deus em tudo.

SuperPauta: A experiência dos Estigmas, as marcas das chagas de Jesus Cristo em suas mãos, pés e lado. Ela aconteceu no Monte Alverne e marcou você como um outro Cristo. Como foi esse encontro com o Serafim Crucificado?

São Francisco: (A voz diminui de tom, em profunda veneração, e ele junta as mãos que um dia tiveram chagas) Meu irmão, há coisas que não se descrevem, apenas se vivem em silêncio. Estava recolhido no Monte Alverne, em oração, pedindo a Jesus que me deixasse sentir um pouco do amor que o fez morrer por nós. E Ele me atendeu com uma ternura que queimava. O Serafim veio como luz e ferida ao mesmo tempo. As chagas apareceram, mas o que mais doía era o amor — aquele fogo suave que não destrói, mas consome o orgulho. Na dor encontrei doçura; no sofrimento, paz. Não foi glória, foi cruz. As chagas me lembravam que o caminho de Cristo é feito de entrega. E eu compreendi que só é verdadeiramente cristão quem carrega no corpo e na alma os sinais do amor.

 

SuperPauta: Você contou ao Frei Leão sobre a “alegria perfeita”, que não está em fazer milagres, mas em suportar as humilhações com paciência. Essa história é verdadeira?
São Francisco: (Um riso terno e melancólico escapa, acompanhado de um aceno de cabeça) Ah, sim, é verdadeira. Frei Leão era minha ovelhinha, sempre curioso com as coisas do espírito. Um dia, caminhávamos sob chuva e frio, e ele me perguntou onde estava a alegria. Eu lhe disse: “Se chegarmos a um convento e nos deixarem do lado de fora, com fome e desprezo, e ainda assim agradecermos a Deus — aí estará a alegria perfeita.” Porque a verdadeira alegria não vem das vitórias, mas das feridas que aceitamos por amor. Não é fácil sorrir diante da humilhação, mas é nesse sorriso que o demônio se confunde e o céu se abre. A alegria perfeita é o segredo dos pobres de espírito — os que não têm nada, mas possuem tudo, porque têm paz.

 

SuperPauta: E essa sua fama de conversar com os bichos? O episódio do Irmão Lobo de Gúbio é o mais famoso. Como se fala com um lobo feroz? 

São Francisco: (Acaricia a manga do hábito, como se tocasse uma criatura) É preciso primeiro calar o ruído dentro de si. Quando o coração está em paz, até o rugido se torna oração. O Irmão Lobo estava faminto, e o medo o tornava cruel. Eu não o enfrentei com gritos nem com armas, mas com mansidão. Falei com ele como quem fala com um irmão: “Vem, em nome de Cristo, e faz comigo um pacto de paz.” Ele baixou a cabeça, e nos entendemos — porque o amor fala uma língua que todo ser compreende. Depois disso, o povo o alimentava e ele jamais voltou a atacar. O milagre não foi amansar a fera, mas reconciliar a natureza ferida com o coração humano. Quando o homem reencontrar o lobo que há dentro dele, o mundo voltará a ser jardim.

SuperPauta: Você foi um dos primeiros a buscar o diálogo com o mundo islâmico, indo falar com o Sultão Al-Kamil no Egito. Numa época de guerra e Cruzadas, o que você queria dizer para eles?

São Francisco: A guerra me feriu por dentro. Eu a vi de perto, e desde então entendi que a espada nunca leva ninguém ao céu. Fui ao sultão não como pregador, mas como irmão menor, com o desejo de compreender e ser compreendido. Levei o Evangelho, mas levei também o coração aberto. O sultão era um homem sábio e me acolheu com respeito. Conversamos sobre Deus, sobre o amor e sobre a paz. Ele não se converteu ao cristianismo, mas nós dois nos aproximamos do mesmo Deus, que é amor. E ali aprendi que a caridade é uma ponte que atravessa até os desertos da intolerância. O diálogo é a mais alta forma de fé.

 

SuperPauta: Alguns diziam que sua ideia de pobreza evangélica era exagerada. Você se sentiu incompreendido pela Igreja?
São Francisco: (Lentamente, ele ergue a mão direita, com a palma voltada para cima) A Igreja é nossa Mãe. Ela tem feridas, sim, mas é dela que recebemos a Eucaristia, o pão do céu. Eu jamais quis me afastar dela. A pobreza que defendi não era miséria, mas liberdade: o desapego de tudo que pesa na alma. Alguns me chamaram de sonhador, outros de louco. Mas eu dizia: melhor ser louco por Cristo do que sábio aos olhos do mundo. Eu só queria seguir o Evangelho sem glosa, como está escrito. Ser pobre é estar desarmado diante de Deus, para que Ele seja tudo em nós. E se o mundo não entende, é porque ainda confunde riqueza com segurança. A verdadeira segurança é o amor.

 

SuperPauta: Você não era muito ligado aos estudos. Como veria o nosso tempo, com tanta informação, internet e vaidade?

São Francisco: (Fecha os olhos por um instante, como em oração) A letra mata, o Espírito vivifica. Não é o saber que destrói o homem, é o orgulho do saber. O conhecimento é dom de Deus, mas se o usamos para nos exaltar, ele vira pedra no coração. Se a palavra escrita servir à caridade, será bênção. Mas se for usada para humilhar ou confundir, será veneno. Vejo que vocês vivem rodeados de vozes e ruídos, e muitas palavras sem amor. Transformem essa tal “internet” num instrumento de bondade: um novo cântico das criaturas, onde cada postagem seja uma semente de paz. A sabedoria verdadeira é a que se curva, não a que se impõe.

 

SuperPauta: Você viu o mundo mudar muito — de uma vida de fidalguia para a pobreza extrema. Qual seria o seu recado mais urgente para o nosso mundo de hoje, que vive uma crise grande na natureza e tanta desigualdade?

São Francisco: O mundo enriqueceu por fora e empobreceu por dentro. O homem acumulou bens, mas perdeu o sentido do bem. Quando deixei as roupas finas e o ouro de meu pai, não abandonei só o luxo — deixei o medo de ser simples. Aprendi que a pobreza não é miséria: é liberdade. Quem tem pouco, ama mais. Quem quer tudo, vive inquieto. Hoje, muitos falam de liberdade, mas continuam cativos das próprias vontades: minha casa, minha glória, meu poder. E enquanto o homem pensa ser dono das coisas, as coisas o possuem. A Minoridade — ser o menor — é o remédio. Ela ensina a viver com alegria o que é suficiente, a dividir, a servir. O mundo se curaria se trocasse o verbo ter pelo verbo ser. A verdadeira riqueza é o coração desapegado que se abre para o outro.

 

SuperPauta: O mundo de hoje vive uma crise ambiental e tantas guerras. Que mensagem você deixaria? 
São Francisco: O mundo geme como uma criatura ferida. A terra, nossa irmã, sofre porque o homem esqueceu que foi feito para cuidar, não dominar. Diz amar a vida, mas fere as fontes de onde ela brota. Corta as árvores, seca os rios, envenena o ar — e depois pergunta por que está doente. O planeta é espelho da alma humana: quando o coração endurece, a terra também se torna árida. O Senhor nos chamou à Minoridade para sermos guardiões do que é frágil, não senhores do que passa. Enquanto buscarmos poder e posse, teremos fome e guerra. A paz começa no coração que renuncia a mandar e se dispõe a servir. Hoje, o necessário é amar: amar o irmão e amar a irmã Terra, porque ambos sangram da mesma ferida. E se cada um cuidar do pedaço que lhe cabe, o mundo inteiro voltará a cantar o Cântico das Criaturas.

SuperPauta: E o que diria aos jovens que buscam sentido e reconhecimento?

São Francisco: (O olhar se enche de uma compaixão profunda) Coração, meu filho! Os jovens correm atrás de muitas coisas, mas esquecem que a alegria verdadeira é simples. Não se encontra nas telas, nos aplausos nem na pressa. Encontra-se no silêncio, no serviço, no amor que não espera retorno. O mundo diz “seja o primeiro”; Cristo diz “seja o menor”. Não tenham medo de ser diferentes. A pureza é a coragem de andar contra a corrente. E lembrem-se: o Amor não é amado. Por isso, que cada um de vocês seja um grito vivo de amor ao Amor.

 

SuperPauta: E qual é o seu desejo final, seu desejo de peregrino, para a sua Ordem e para a sua Igreja que tanto ama?

São Francisco: Que meus irmãos e irmãs sigam a Regra e o Testamento sem torcer o sentido das palavras. Que vivam o Evangelho com os pés no chão e os olhos no céu. Que o Espírito do Senhor repouse sobre todos e os faça servidores, não senhores. E que, quando a Morte vier — essa irmã fiel que me levou ao Pai —, ela os encontre sorrindo. Porque quem vive em paz não teme o fim. A Minoridade, ser o menor de todos, é o maior privilégio que podemos ter.


(O frei se levanta. O hábito se agita suavemente. Faz o sinal da cruz com serenidade e, pouco a pouco, a luz ao redor se dissipa. Fica apenas o perfume das flores silvestres — e a sensação de que a terra, por um instante, respirou em paz.)



segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Encontros Impossíveis - Monteiro Lobato

 Encontros Impossíveis

O Brasil que ainda precisa acordar


Entre ecos de papel e faíscas de pensamento, o autor que deu voz ao Sítio do Picapau Amarelo retorna para conversar sobre livros, progresso e a infância de um país que ainda busca crescer

“Escrever é ato de fé: plantar ideias no chão duro da ignorância e esperar que brotem.” – Monteiro Lobato


Nem dia, nem noite — apenas uma luz difusa, como se o tempo respirasse. O ar cheira a papel antigo e a ideias em combustão. Há murmúrio de tipografia, como se letras se juntassem sozinhas no ar, formando frases impacientes por nascer. Nesse espaço sem chão nem teto, surge Monteiro Lobato. Não caminha: acende-se, como palavra que ganha corpo no instante em que é dita. O olhar é o mesmo de sempre — vivo, irônico, obstinado. O bigode parece carregar as histórias de todo um país que teima em não acordar. Ele fala e o som ecoa como martelo em oficina: cada frase uma faísca, cada pausa uma provocação. Aqui, onde o tempo se curva para ouvir, falamos sobre infância, livros, progresso e a eterna insônia do Brasil. Não há mesa nem gravador — apenas o rumor das ideias. Lobato não regressa do passado: ele permanece onde sempre esteve — no território inquieto das perguntas que não envelhecem.

 

No novo capítulo da série Encontros Impossíveis, Monteiro Lobato surge entre névoas de tinta e memória para uma conversa que atravessa séculos. Fala sobre a infância em Taubaté, o poder dos livros, a modernidade, o humor, o “politicamente correto” e a responsabilidade de um país que ainda precisa aprender a pensar. Com a verve afiada e o coração de educador, o criador do Sítio do Picapau Amarelo reafirma sua fé na leitura e na imaginação como motores da transformação. (Roberto Homem)


SuperPauta - Monteiro Lobato, como sua infância em Taubaté e o ambiente do interior paulista influenciaram sua visão de mundo e os temas que escolheu para sua literatura?

Lobato - Taubaté, sô, foi minha universidade. Tudo que aprendi de Brasil começou ali, no quintal cheio de formiga, nas histórias de assombração contadas debaixo do fogão à lenha, nas noites geladas com geada e café recém-passado. Era um  mundo de valores antigos e imaginação solta — a turma do interior não acreditava em promessa de político, mas sim no tempo que leva pra plantar e colher. Lá aprendi a desconfiar do milagre vendido na cidade grande e a dar valor ao suor. Crescer no mato é crescer com os pés na terra, não na lua, convivendo desde cedo com o silêncio e a conversa mole dos adultos que, mais tarde, virariam personagens. O ambiente doméstico e rural foi terreno fértil para a fantasia, a curiosidade, e o humor que me acompanharia para o resto da vida.

 

SuperPauta - Que papel tiveram sua mãe Olímpia, seu avô Visconde de Tremembé e o começo da alfabetização doméstica na formação do seu gosto pela leitura e escrita?

Lobato - Mamãe Olímpia foi minha primeira mestra — dessas que ensinam com rigor, mas nunca deixam faltar afeto. Ela me alfabetizou com capricho, entre o tamborilar da chuva no telhado e o cheiro do pão de queijo. Meu avô Visconde era bicho raro: misturava latim, plantação, crônica rural, conversa de gente sábia do campo e da cidade. O menino que aprende a ler na biblioteca velha vira adulto fã de livro novo: fui criado entre tomos empoeirados, clássicos portugueses e tratados franceses, tudo desfiado na chácara de Taubaté. Daí nunca mais larguei o vício da tinta impressa. Era bilhete, carta, jornal, conto, rabisco. Ler, pra mim, virou ato de respirar.

 

SuperPauta – O senhor se formou em Direito, mas preferiu dedicar-se à literatura. O que motivou essa transição — houve algum momento decisivo?

Lobato - Advogado serve pra ver o mundo pelado — sem fantasia. Foi escolha para dar estabilidade, pra não morrer de fome, mas logo vi que o papel carimbado me cansava. Os processos eram tão sem graça que, entre audiências, eu anotava ideias para contos críticos. Acabei trombando com a literatura porque nela, sim, podia falar a verdade com cara limpa e tinta forte. Brasil precisava de leitor — de gente capaz de pensar. Fui abduzido pelo chamamento da escrita; o resto foi somente consequência da insatisfação com os limites do foro e a vontade de chacoalhar o país.

 

SuperPauta - A experiência na promotoria e no contato com pequenas cidades moldou sua ideia do Brasil? O que mudou ali em seu olhar prático e crítico?

Lobato - A promotoria é escola de realidade. Você vê o Brasil no osso, sem verniz. Pequenas cidades são vitrines do país — têm muito compadrio, uma pitada generosa de ignorância geral, e uma resistência quase heroica em aprender, uma teimosia boa de valorizar. Descobri que educação, saúde, justiça são palavras de dicionário para quem está distante do centro. Ali notei que nada muda sem puxar conversa — a crítica quando bem feita, cutuca, assanha e faz pensar. Foi nesse chão que percebi as engrenagens lentas do Brasil e modelei o olhar vigilante sobre o atraso da terra natal.

 

SuperPauta - Urupês (1918) revolucionou sua carreira. Quem é o “caipira” nessa obra — símbolo, crítica ou caricatura?

Lobato – O tal Jeca Tatu, que botei em ‘Urupês’, não é só eito torto — é protesto de quem cansou de ver gente torcer o nariz pro povo simples. O caipira é símbolo mesmo: da miséria ensinada a gerações, não por alma ruim do brasileiro, mas por descaso dos doutores e dos donos do poder. É bronca, não caricatura. Jeca era denúncia contra o cabresto do atraso: maltrapilho, lento, saudável só quando lhe dão trato. O caipira é o Brasil real — muito distante daquelas idealizações urbanas que só servem para vender folhetim. Ele espanta quem nunca cruzou a porteira, mas acolhe quem tem tempo e olho atento.

 

SuperPauta - Em sua obra para adultos, qual era o papel do humor, sátira e ironia? Que importância dava à crítica social?

Lobato - Humor para mim nunca foi só adorno — é ferramenta de enxada, limpa o terreno para a verdade brotar. Uso sátira para acordar gente enfeitiçada por discurso bonito, governo meia-boca, intelectual que nunca viu a fome de perto. Ironia, essa só serve mesmo pra desenhar o que o politicamente correto prefere esconder debaixo do tapete. A crítica social, quando regada a humor e coragem, entra fácil: faz rir, mas também faz pensar. O escritor não pode ser só conselheiro — tem que ser provocador de mundo.

 

SuperPauta
- Como se relaciona o Lobato escritor infantil com o Lobato escritor adulto? O que une ou distancia essas duas vozes?

Lobato - O Lobato dos adultos é ácido, às vezes bravo e direto; o das crianças, encantador, edificante, até mágico. Parece outro, mas é o mesmo: mudo só o tom da prosa, visto outras roupas. O escritor infantil é mágico de circo, cheio de truque, alegria e personagem falastrão; o adulto é juiz do interior, desconfiado e sempre com uma bronca. Só que ambos querem ver o Brasil melhor, mais esperto, menos preguiçoso e mais solidário.

 

SuperPauta - Qual foi a missão educativa por trás do Sítio do Picapau Amarelo, Reinações de Narizinho e toda a turma do sítio?

Lobato - O Sítio foi obra de doutrinador disfarçado — ensino pelo riso, pela brincadeira bem tramada. Criança aprende brincando, aprendendo a se questionar, a responder sem medo. O Sítio é mistura fina: folclore, ciência, um tanto de humor, outra pitada de rebeldia da Emília, minha boneca boca-suja que nunca pediu licença pra ser protagonista. A missão era simples: formar leitor curioso e cidadão que não aceite resposta pronta.

 

SuperPauta - Misturava folclore, ciência e imaginação nas histórias. Para você, aprender brincando é essencial à infância?

Lobato - Sem dúvida, brincar e aprender acabam sendo a mesma mistura. O segredo é dar liberdade pra criança questionar, se divertir, construir fantasia. Ensino que não faz rir, não ensina. O Sítio sempre foi palco de experiências, debates e invenções malucas — folclore aqui não é só brincadeira, é método para aprender sobre o mundo e sobre si mesmo.

 

SuperPauta – Fui leitor de suas obras quando criança e também acompanhava religiosamente o seriado O Sítio do Picapau Amarelo. Mais tarde, como pai, incentivei meus filhos a ler essas mesmas obras. Seus livros foram fundamentais para minha formação cultural, sobretudo em adquirir o hábito da leitura. Você imaginava que sua literatura infantil teria esse poder de atravessar gerações e formar leitores fiéis, a ponto de pais e filhos lerem juntos as mesmas histórias?

Lobato - Rapaz, quem escreve pra criança planta lavoura em terra boa — nunca sabe até onde vão brotar as sementes. Confesso que sonhei sim, mas não com tantos frutos! O Sítio era minha república das letras, e ver gente grande lendo com os pequenos é o maior prêmio que se pode querer. Leitura é negócio sério: transforma o caipira em doutor, o doutor em curioso, e faz o país pensar. Ler é puxar conversa com o mundo. Se o Sítio fez alguém abrir o livro, já valeu a labuta — e se mais gente lê porque Emília tagarelou, melhor ainda. Que venha neto, bisneto, vizinho: livro bom é aquele que não tem idade nem prazo de validade!

 

SuperPauta - As crianças de hoje têm infância diferente — muito digital, conectada. O que mudaria no Sítio se o escrevesse hoje?

Lobato – Pois então, se o Sítio fosse plantado em solo de 2025, ia ser outra horta — dessas com fibra ótica no lugar da cerca de bambu. Emília teria um perfil nas redes sociais, seria influenciadora digital de primeira, capaz de viralizar uma boa confusão com hashtag e tudo. Visconde viraria pesquisador de algoritmos, enquanto Pedrinho jogaria videogame e talvez só largasse o tablet pra buscar Saci no mato virtual. Dona Benta daria aula online, e Tia Nastácia compartilharia receitas no YouTube, com direito a seguidores e comentários. O mundo mudou, mas o desafio continua: educar com encanto, não só com chips.

 

SuperPauta - E o que as crianças ganharam ou perderam nesse novo tempo?

Lobato - A infância conectada tem suas vantagens, claro: ganhou o mundo na palma da mão, faz amizade sem precisar atravessar rio nem enfrentar tempestade. Aprende mais rápido, descobre novidade todo dia, ganha um palco sem barreira territorial. Mas perdeu o cheiro do mato, o tempo de espera, o silêncio pra ouvir história, o gosto de correr descalço atrás de uma borboleta. Ganhou botão, perdeu chão. Criança hoje sabe deslizar o dedo na tela, mas às vezes desaprende a olhar céu direito. O Sítio novo seria mais barulhento e luminoso, mas talvez faltasse aquele sossego bom das tardes no terreiro — e é desse sossego que se faz leitor com alma. Por mais que mude a forma, a essência do aprendizado tem que preservar sempre o encanto da curiosidade e da descoberta. Que a infância nunca perca o direito de se perder na fantasia, seja na nuvem ou num pomar atrás da casa!

 

SuperPauta - Como editor e empresário pioneiro, encarava o livro como produto cultural e mercadoria nacional. Como vê sua luta pelo desenvolvimento do mercado editorial brasileiro?

Lobato - Livro é sobremesa disputada no Brasil — tentei fazer o brasileiro ler do mesmo jeito que faz fila na padaria: com fome e vontade. Editor é quem inventa o apetite — sem papel, sem país. Sem mercado editorial robusto, o autor fica igual peixe fora d’água. Lá se vai mais de século, e ainda sonho com prateleira cheia de autor nacional, menos de importado que só sabe brilhar na vitrine.

 

SuperPauta - Que critérios definiria para um “bom livro brasileiro”? Qual papel tem o editor?

Lobato - Bom livro brasileiro é o que conversa com a gente, fala de “nós”, sem medo de ser diferente. Não precisa ficar falando difícil, nem imitar importado feito burocrata de cidade. Editor bom é aquele que aposta em autor novo, sem medo de errar, que sabe filtrar os garimpos de talento e não foge da bronca de divulgar o que é bom de verdade.

 

SuperPauta
- Em tempos de ferro, petróleo e estradas, apostava nesse tripé como caminho do progresso brasileiro. Ainda faz sentido hoje?

Lobato - Ferro, petróleo e estrada — meu tripé sagrado do progresso. Seguraram o país, mas falta tratamento de raiz: que adianta ter petróleo se não tem escola pra ensinar pros filhos do povo, ferro sem ideia e estrada sem destino certo? Progresso não é só coisa de pedra e aço: demanda cabeça, sistema e vontade coletiva.

 

SuperPauta - Você foi muito atuante na luta pelo petróleo nacional. O que vê como avanço ou falha do país nesse campo desde sua época?

Lobato - A luta pelo petróleo foi briga de cachorro grande. Avançamos, mas ainda vendemos riqueza crua, exportando matéria-prima na esperança de importar produto acabado. Continuamos importando ideia junto com o motor. Brasil só será realmente grande e independente quando valorizar o chão que pisa e o cérebro do brasileiro — não só no subsolo, mas na cabeça e no coração.

 

SuperPauta - O papel das tecnologias do século XX e XXI (automóvel, rodovia, petróleo, startups, economia criativa) ainda dialoga com suas ideias de modernização? Qual inovação mais valorizaria hoje?

Lobato – Tecnologia é espinha dorsal do século — antes o orgulho era ter ferrovia, depois carro; hoje, chips, nuvem, inteligência artificial. Orgulharia-me de ver aqui gente criando coisa nova em vez de importar bugiganga, numa revolução que valorize inventividade nacional. Progresso, porém, é mão na massa, não papel assinado, é laboratório e oficina ao alcance do povo, não só escritório de executivo.

 

SuperPauta - Viveu embates históricos com Vargas e o Estado Novo. Sentia-se mais crítico ou revolucionário? Por quê?

Lobato - Nunca fui revolucionário de barricada, mas detesto miséria de espírito. Sempre critiquei, nunca engoli quieto... Estado Novo e modernistas europeus que me perdoem: brasileiro precisa aprender a andar com as próprias pernas, não copiar moda do estrangeiro. Crítica é brasa viva quando quer incendiar consciência — e sempre estive com fósforo.

 

SuperPauta - Sua crítica ao modernismo europeu tinha base no que chamou de “colonialismo intelectual”. Mantém essa posição para os novos movimentos de arte globalizada?

Lobato - Chamaram-me de conservador por implicar com Anita Malfatti, e continuo implicando com o que acho chantagem artística. Não gosto de mistificação: arte tem de ser negra de carvão, fedorenta, cheirando a chão da casa, não perfume francês de vitrines. O Brasil só crescerá quando encontrar sua voz, sem andar no estribilho alheio.

 

SuperPauta - Como enfrentaria os debates em torno do “politicamente correto”, atualização de linguagem e julgamentos sobre sua obra?

Lobato – ‘Politicamente correto’ não era coisa do meu tempo — e se o Brasil for julgar obra velha com regra de hoje, arrisca fazer terra arrasada de humor, de autenticidade e da coragem de dizer o que pensa. Prefiro polêmica a consenso morno: discussão é caldo de cultura, e mais vale debate acirrado do que silêncio conforme.

 

SuperPauta - Qual personagem seu expressa melhor sua personalidade — Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde…? E por quê?

Lobato – Tem muita gente que pensa que sou o Visconde, mas a verdade é que sou metade Pedrinho, metade Emília. Um caipira curioso, cheio de vontade de explorar o mundo, e outro rebelde de língua solta que não se cala. Misturo as duas coisas até hoje, equilibro a razão fria do Visconde e a imaginação solta da Emília.

 

SuperPauta – Qual foi o livro mais difícil de escrever, seja por resistência editorial ou autocobrança?

Lobato - O livro mais difícil foi sempre o próximo. Escrever dói, é jogo duro. Editor exige prazo, leitor exige prosa boa, crítico só reclama mas nunca ajuda a carregar a carroça. Cada livro é filho que quer nascer perfeito, mas parto nunca é fácil.

 

SuperPauta - Alguma carta, ensaio ou livro seu você considera subestimado? Que texto gostaria de ver revalorizado?

Lobato - Vejo que o povo gosta mesmo é dos folguedos da Emília, das traquinagens do Pedrinho — e faz bem em gostar, pois foi pra isso que plantei o Sítio. Porém, há livros meus que passaram feito sombra de árvore numa tarde quente, pouca gente quer folhear. Digo sempre: ‘O Presidente Negro’ — romance futurista sobre raça e poder — ficou para poucos. ‘Negrinha’ e ‘Cidades Mortas’ denunciam miséria social que o Brasil encobre. Entre ensaios e cartas, há bronca, conselho e cutucada republicana que mereciam mais o bisturi do leitor curioso. Queria que lessem minha prosa adulta, de cabo a rabo. Lá está tanto da alma nacional quanto numa roda de conversa na varanda do Sítio. O Brasil precisa ler o que desconforta, não só o que consola.

 

SuperPauta - Houve críticas severas a algumas obras infantis — especialmente sobre racismo e eugenia. Como responde hoje a essas discussões?

Lobato - Já fui chamado de gênio e de infame, coisa que levo como elogio das duas formas. Essas críticas sobre racismo e eugenia não nego, o tempo muda, o mundo muda, e o escritor, que é bicho do agora, tropeça nos próprios limites da época em que viveu. Reler, criticar, perguntar é tudo parte do jogo, da história que não se acanha. Quem se incomoda com debate sério devia plantar abóbora, não livro. Minha obra leva o que tinha para dizer, mas isso não quer dizer que cada palavra valha para sempre sem questionamento.

 

SuperPauta - Qual foi a reação mais forte do público ou da crítica às suas obras? Como se sentiu e como reagiu emocionalmente?

Lobato - O público é bicho mutante: tem dia que te ama, noutro que te odeia. Reação forte é melhor que apatia. Já levei varada, já dei umas porradas verbais, mas tudo isso só endurece a couraça e dá vontade de escrever ainda mais longe do feitiço do gosto fácil. Não sou menino de correr de crítica, mas confesso que dor no coração todo escritor sente.

 

SuperPauta - Qual foi seu maior erro enquanto escritor ou editor — o que faria diferente?

Lobato - Erros, cometi aos montes. Queria ter ouvido menos o bolso e mais a intuição, essa voz que sopra quando ninguém vê. Mas o escritor que nunca erra é inventado, é máquina sem alma. Acabei aprendendo que o segredo é resistir e continuar botando a cara a tapa.

 

SuperPauta – O senhor herdou fazenda, foi fazendeiro e depois migrou para a cidade. Como esses dois mundos dialogam em sua obra?

Lobato - Fui menino da roça, adulto da cidade. Vivi entre fogo de chão e trilho de bonde. Esses dois mundos são como dois rios que se juntam no mesmo oceano — o Brasil. O escritor brasileiro tem que beber das duas fontes para entender a alma do povo: o rural, que carrega a raiz, e o urbano, que traz a promessa de futuro. Não adianta sonhar só na metrópole e esquecer do cerrado e da caatinga.

 

SuperPauta - Que valores o senhor viu no Brasil de 1920 que resistem até hoje e que outros desapareceram?

Lobato - Valores, menino, mudaram muito ao longo desses cem anos — e mudar é parte do jogo da vida. O Brasil que conheci em 1920 era um país cheio de esperança, dono de uma vontade braba de crescer, de trabalhar duro, de vencer as dificuldades que a gente sabe que são muitas. Era um tempo de sonho e suor, de gente que acreditava no amanhã mesmo que o presente apertasse. Hoje, o Brasil já viu muita coisa — tropeço, queda, renascimento. Quem não aprende a levantar é que fica pra trás; e eu digo que “quem quer, serve, quem chora, fica”. Tem certos valores que persistem, a teimosia boa do brasileiro, aquela criatividade que dá um jeitinho em tudo, seja coisa boa ou ruim. Isso é um caráter forte, um tempero que não se perde fácil. Por outro lado, vejo sumir as paciências antigas, a conversa mansa que desarmava o ódio, o respeito pelo tempo das coisas — a calma para esperar pela boa colheita, para ouvir até o fim o argumento do vizinho, para admirar o processo lento do aprendizado. O mundo virou carnaval elétrico, tocado por pressa e inflação de distração. Mas insisto que a alma brasileira, essa mistura de esperança e desafio, continua valente e brava. Essa alma é que me alimenta até hoje — é a mesma que quero que descubram nas minhas palavras.

 

SuperPauta - Qual seria sua visão da identidade nacional no Brasil de hoje, século XXI, globalizado e híbrido?

Lobato - Identidade nacional, menino, é mistura boa de Emília tagarela, um tantão de Jeca Tatu na tristeza e uma fome de progresso que nunca se sacia. A gente veste roupa nova, fala idioma da internet, mas o espírito é o mesmo, arredio e sonhador. Identidade é raiz que aceita enxerto sem perder a seiva.

 

SuperPauta - Qual o papel da literatura infantil e dos personagens do Sítio nos tempos de polarização política e cancelamento digital?

Lobato - O Sítio foi trincheira, quero crer, literatura para povo dividido, para criança entender que questionar é crescer — mesmo que em tempos doidos dê trabalho ouvir. Na era do cancelamento, a Emília seria bloqueada em cinco minutos, sumiria da tela, mas continuaria tagarelando no coração das crianças. Personagem que não provoca, que não pergunta, morre no mesmo dia que nasce.

 

SuperPauta - Se estivesse vivo hoje, entraria nas redes sociais? Que conteúdo faria — educativo, provocativo, divertido?

Lobato - Entraria, não fosse o cheiro de tipografia faltar no ar das redes. Publicaria polêmica, história, sátira, e não teria dó nem piedade. Um bocado de verdade comedida, umas broncas de vez em sempre, e piada de ponta a ponta — que no Brasil, rir de si mesmo é quase ato de coragem.

 

SuperPauta - Se escrevesse uma “Carta ao Brasil de 2050”, que mensagem deixaria para o país e para os novos leitores?

Lobato - Se tivesse só cinco minutos para escrever ao Brasil de 2050, diria: ‘Não seja besta. Preserve o mato, leia, fale alto, crie. Um povo que esquece o passado vira personagem do livro alheio — e assim vai perdendo a caneta para contar sua própria história.’ A vida é leitura e ação, não só leitura e espera. Escrevam com as mãos, com a cabeça e com o coração. Assim, o Brasil nunca perde sua voz.




quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Encontros Impossíveis – Chico Xavier

 Encontros Impossíveis

O sopro da luz


Entre o mistério e a ternura, a criatividade e a inteligência artificial, ele retorna com a mesma voz mansa que consolou milhões e mantém esta ‘conversa’ imaginária com o SuperPauta sobre vida, morte e o amor que atravessa fronteiras


“A vida não termina com a morte. Ela apenas muda de estação.” — Chico Xavier

 

Quando o amor se recusa a morrer, ele encontra caminhos para atravessar fronteiras que a razão não compreende. Aqui, no jornalismo do impossível, a conversa segue — mesmo para além da vida. A névoa não assusta. É macia, luminosa, quase viva. Há cheiro de papel e incenso, de prece e madrugada. À minha frente, uma mesa simples de madeira rústica. Um caderno aberto. Um lápis apontado com cuidado. Chico Xavier não surge — ele se insinua, com a delicadeza dos que sabem chegar sem ruído. Olhos baixos, sorriso tímido, o gesto sereno de quem aprendeu que a fé é mais forte que o medo. Ele me oferece uma cadeira como quem oferece refúgio. Assim começa a conversa — não entre um vivo e um morto, mas entre duas saudades tentando se entender.

 

No novo capítulo dos Encontros Impossíveis, Chico Xavier fala sobre infância, mediunidade, humor, fé, desigualdade, redes sociais, meio ambiente e o que realmente importa quando a vida muda de estação. Em tom simples e cheio de ternura, o médium mineiro revela sua visão sobre o Brasil, a juventude e o futuro do planeta — e deixa uma última imagem de humildade e esperança. (Roberto Homem)

 


 

SuperPauta: Chico, dá pra contar como era sua infância lá em Pedro Leopoldo?

Chico Xavier: (pensativo) Meu irmão… a infância foi um tear de lutas com fio de bênçãos, graças a Deus. Pedro Leopoldo era chão de terra batida, cheirinho de pão no forno e de café coado na hora. A gente tinha pouco no bolso, mas havia fartura de afeto — vizinho era parente de porta, e o quintal, sala de aula. Estudei pouco, trabalhei cedo; criança ainda, eu já ajudava em tudo que aparecia. A vida ensinou na prática: a fome alfabetizou o coração, e o trabalho ensinou a somar coragem. Houve dureza, sim. A disciplina de casa era firme — firme até demais (sorri, lembrando). Mas veja: a dor foi professora exigente, me botou de castigo pra eu aprender compaixão. Mais tarde entendi — quem apanha da vida aprende a não bater nos outros. Tínhamos Evangelho simples, prece curta, lamparina acesa. “Tudo passa”, eu repetia baixinho… e passava mesmo. E quando não passava, a gente passava por dentro — com paciência e fé.

 

SuperPauta: Quando o senhor fala de Pedro Leopoldo, parece que volta lá em pensamento… Que outras lembranças o senhor guarda daquela terra e daquela infância simples que tanto contribuíram na sua formação?

Chico Xavier: (olhos semicerrados, voz saudosa) Eu me lembro do barulho do vento nos beirais… do sino chamando pra reza… do cheiro da chuva chegando. Pedro Leopoldo foi minha primeira escola: ali descobri que pobreza não é defeito, é lição; que alegria não depende de carteira cheia, mas de coração agradecido; e que Deus mora é no cotidiano — na caneca dividida, na palavra de consolo, no pão repartido ao meio. Se hoje eu sei ouvir dor de gente, devo àquele começo: a vida me adestrou o coração pra servir, meu irmão.

 

SuperPauta: Quando foi a primeira vez que o senhor “viu” algo do outro lado?

Chico Xavier: (sorri de leve) Ah, meu filho… eu era pequenino, uns quatro, cinco anos no máximo. A casa silenciosa, fim de tarde, lamparina fazendo aquele círculo de luz mansa. A saudade da minha mãezinha apertava como se a alma fosse menor que o peito. Foi então que senti um perfume distinto, doce — não de flor da horta, mas um cheiro que abraçava. Olhei e vi: minha mãe. De presença tão serena que o medo nem teve tempo de chegar. Não era assombro — era ternura. Ela me falou com voz de colo: “Meu filho, não chore. A vida continua. Mamãe não te deixou, apenas mudou de lugar.” E eu, menino, entendi sem entender — o coração compreendeu primeiro que a cabeça.

 

SuperPauta: E como foi, Chico, perceber que aquele primeiro encontro com sua mãe não era só uma lembrança, mas o início de uma missão? Como o senhor entendeu que a mediunidade seria essa ponte entre dois mundos?

Chico Xavier: Não houve espetáculo, não houve barulho — houve paz. E paz é assinatura do céu. Depois daquele dia, outras presenças vieram, como quem bate à porta com respeito. Às vezes, uma palavra dentro do pensamento. Às vezes, uma luzinha por trás dos olhos. Às vezes, um impulso de fazer o bem sem perguntar por quê. Fui crescendo e vendo que o mundo de Deus é maior que a parede dos nossos sentidos. Mais tarde, com estudo e disciplina — disciplina, disciplina e disciplina — percebi que mediunidade é ponte. E ponte não se constrói pra ser admirada, mas pra ser atravessada. A primeira visita da minha mãe me ensinou isso: o amor não termina no cemitério; ele só troca de endereço. Desde então, quando a saudade doía, eu lembrava da voz dela: “Meu filho, a vida continua.” E continua mesmo, graças a Deus.

 

SuperPauta: E como o espiritismo entrou na sua vida?

Chico Xavier: (olha pro repórter com os olhos úmidos, fala baixinho) Ah… meu irmão… O espiritismo chegou até mim do mesmo jeito que as grandes lições da vida costumam chegar: pela dor. Foi lá pros idos de 1927. Uma das minhas irmãs adoeceu de repente, muito aflita, atormentada por forças que ninguém sabia explicar. Era dia e noite de sofrimento. A gente orava, chamava médico, mas o alívio não vinha. E eu, moço ainda, sentia uma angústia grande… aquele aperto no peito de quem quer ajudar e não sabe como. (pausa longa) Aí, um amigo, o senhor José Hermínio Perácio, homem de fé boa, me disse: “Chico, leva sua irmã pra casa da gente. Vamos cuidar dela com o amparo do Evangelho.” E assim foi. Fomos pra Fazenda Maquiné, lá perto de Curvelo. Lá, ele e dona Carmem, sua esposa — mulher de oração firme e mãos serenas — começaram o tratamento espiritual. As preces se multiplicaram, a ambiência se encheu de perfume de flor, e o que parecia impossível começou a mudar. Durante uma reunião, minha mãezinha — que já havia partido há anos — se manifestou.

 

SuperPauta: E foi nesse momento, Chico, ouvindo novamente a voz da sua mãe, que o senhor percebeu que aquele encontro não era apenas consolo, mas um chamado? Que havia ali o início de uma missão maior?

Chico Xavier: A voz dela… (emocionado) era como o abraço que a gente sente mesmo sem tocar. Ela nos falou com tanta ternura, tanta paz, que até o medo se ajoelhou dentro da gente. Naquele instante, eu entendi. Entendi que Deus tinha me levado ali não pra ver um milagre, mas pra aprender um caminho. Minha irmã se restabeleceu, graças a Deus, e eu saí de lá com o coração em reforma. Passei a estudar, estudar muito, junto de alguns amigos. Fundamos um pequeno grupo pra ler o Evangelho, conversar, aprender — e foi nessas reuniões, humildes mas cheias de amor, que a mediunidade começou a se abrir em mim. A primeira vez que psicografei, parecia que o tempo tinha parado. A mão escrevia, e o coração chorava de alegria. A partir dali, nunca mais duvidei. (olha pro alto, com sorriso singelo) A dor, meu irmão, foi a professora que me matriculou no espiritismo… e eu fiquei até hoje estudando. (risos suaves)

 

SuperPauta: A mediunidade foi fácil de aceitar?

Chico Xavier: De jeito nenhum, meu filho! (risos) Fácil não foi, não. No começo, eu só queria ser um menino comum, brincar de bola de gude, soltar pipa, estudar direitinho, trabalhar, casar... essas coisas que todo mundo sonha. Mas Deus tinha outros planos. Quando começaram as visões, as vozes, as presenças, confesso que fiquei apavorado. Era muito novo, e aquilo me parecia mais um castigo do que uma bênção. Tinha noite que eu cobria a cabeça com o lençol, achando que o escuro ia esconder os espíritos — como se espírito precisasse de luz pra enxergar (risos). Muitas vezes chorei escondido, pedindo pra ser “normal”. Mas, com o tempo, fui entendendo que normal mesmo é servir. Cada um tem a sua tarefa na vinha de Deus: uns plantam, outros colhem, outros consolam. E mediunidade, meu irmão... é serviço. Nunca privilégio! Não é medalha pra exibir, é ferramenta pra trabalhar. O médium é como o fio que conduz a corrente elétrica: se estiver enferrujado pelo orgulho ou pela vaidade, a luz não passa. Precisa limpar o coração todo dia pra continuar sendo canal do bem.

 

SuperPauta: Como foi o encontro com Emmanuel?

Chico Xavier: (olhar sereno, tom de respeito) Ah, Emmanuel… Foi meu grande orientador, um amigo de outras vidas, um professor paciente e exigente. Ele apareceu certa noite, quando eu ainda duvidava da minha própria tarefa. Não chegou com clarins nem luzes, chegou com silêncio. E me disse com voz firme: “Meu filho, aceita o compromisso, mas lembra-te: disciplina, disciplina e disciplina.” (pausa breve) Não era um mentor de afagos, não… era de vigilância. Quando eu me queixava das dificuldades, ele respondia: “Se você não pode sofrer por amor, sofra por obrigação — que o aprendizado vem do mesmo jeito.” (ri discretamente)

E não é que vem mesmo? Com o tempo, entendi: o dom sem disciplina vira brinquedo perigoso. A mediunidade é empréstimo divino — Deus confia à gente um pouquinho da tarefa d’Ele, pra ver se a gente aprende a amar servindo. E Emmanuel me ensinou isso com paciência de mestre. Hoje eu digo: não fui eu que escolhi o caminho. Foi o caminho que me escolheu — e eu aceitei, graças a Deus.

 

SuperPauta: E como é a sensação de psicografar?

Chico Xavier: (olha pro papel imaginário, como se visse o lápis se mover)

Ah, meu irmão… é difícil colocar em palavras o que é maior que a palavra. A psicografia, pra mim, sempre foi como um convite de Deus pra rezar com a mão. A gente se prepara, faz uma prece, se aquieta por dentro, e de repente parece que o pensamento vai ficando limpinho, como um rio quando a lama assenta. A mente silencia, o coração se acende — e a alma entra num estado de oração que não precisa de fala. É um momento de grande doçura. Às vezes, vinha um perfume suave, cheiro de flores que não estavam ali — flor que o espírito trazia, eu acho. Outras vezes, era uma paz tão profunda que o tempo parecia se derreter, desaparecer. Eu já não sentia o peso da mão, nem o som do ambiente. Era como se o lápis escrevesse sozinho, mas com carinho, sem pressa.

 

SuperPauta: E quando a mensagem termina, Chico… o que fica dentro do senhor? É cansaço, alívio, emoção? O que passa no coração de quem acaba de servir de ponte entre dois mundos?

Chico Xavier: (voz baixa, emocionada) Fica uma ternura mansa… Uma vontade de chorar sem tristeza. Parece que a alma tomou banho de luz. Em certos momentos, dava vontade de agradecer aos espíritos pela confiança. Eu sabia: não era o autor, era apenas o carteiro. E carteiro bom não lê a carta — só entrega, com respeito. Mas é preciso cuidado, meu filho. Se o orgulho entra, bagunça tudo. O segredo é humildade e estudo. O médium precisa vigiar o pensamento como quem cuida de uma chama. A vaidade é vento que apaga a luz. Quando a gente compreende isso, a psicografia deixa de ser fenômeno e vira oração viva — oração que se move no papel, graças a Deus.

 

SuperPauta: E os livros? Como surgiam tantos?

Chico Xavier: (risos leves) Meu filho, eu nunca escrevi nada sozinho. Era instrumento, apenas isso. Os livros vinham como chuva de mensagem boa. Romances, cartas, poemas, consolos de mãe pra filho, de filho pra mãe… Tudo com o mesmo propósito: consolar. Consolar é mais bonito que convencer. O papel do médium é ser ponte, não autor. Quem escreve é o espírito. Quem lê é o homem. E quem se alivia é a alma.

 

SuperPauta: E o senhor nunca ficou com o dinheiro?

Chico Xavier: De jeito nenhum! (sorri) O que vem de Deus volta pra Deus. Desde o primeiro livro, tudo foi destinado à caridade. Eu dizia: “Quem escreve é o espírito, quem lê é o homem, e quem recebe é o necessitado.” Dinheiro não compra paz, meu irmão. A única moeda que vale no além é o bem repartido.

 

SuperPauta: O senhor sempre trabalhou, mesmo psicografando tanto?

Chico Xavier: (ri baixinho) Trabalhei, sim, meu filho — a vida toda, graças a Deus. Mais de quarenta anos no Ministério da Agricultura. Batendo ponto, pegando ônibus, enfrentando sol e enchente. E, claro, levando marmita embrulhada num pano (risos). De dia, carimbo e relatório. À noite, oração e papel. O trabalho é oração de pé. Quando a gente cumpre o dever com boa vontade, o expediente vira prece.

 

SuperPauta: Nunca pensou em parar um pouco, em descansar? De onde vinha tanta força pra servir sem esmorecer?

Chico Xavier: (pausa longa) Tinha dia que o corpo reclamava — e com razão. Mas a alegria de servir aliviava o peso. Porque quando a gente serve com amor, o cansaço muda de nome: vira gratidão. Eu sempre dizia: “A gente descansa servindo.” E é verdade. Servir é o repouso do espírito. Ajudar o outro é o jeito mais bonito de cuidar da própria alma. O Ministério me ensinou disciplina. A mediunidade, paciência. Um completava o outro, como o pão e o café da manhã. E quando eu fechava o escritório e abria o centro, era como trocar de tarefa, não de missão. No fim das contas, a ordem era a mesma:  trabalhar com amor e deixar Deus assinar o relatório. (sorri)

 

SuperPauta: E quando batia o cansaço?

Chico Xavier: Ah, meu filho, tinha noite que o corpo pedia cama e a alma pedia paciência. Aí eu rezava e pensava: “Tudo passa.” E passa mesmo. Até a dor é visita: chega, ensina e vai embora.

 

SuperPauta: Chico, no programa Pinga-Fogo, exibido pela antiga TV Tupi em 1971, o senhor contou uma história do avião que fez todo mundo rir. O senhor pode relembrar como foi essa experiência?

Chico Xavier: (risos)

Ah, essa história… foi em 1959. Eu já morava em Uberaba e estava indo pra Belo Horizonte de avião. Tudo tranquilo até a escala em Araxá. Mas depois da decolagem… o aparelho começou a dançar! Pra um lado, pro outro — parecia mais sanfoneiro que avião. As senhoras agarraram o rosário, os homens fecharam os olhos, e eu… (risos) eu orava baixinho, tentando mostrar calma, mas tremia mais que o motor. De repente, ouvi o comandante dizendo: “Não se preocupem, é só vento de cauda.” Mas, meu filho, quem tá entre o céu e a terra não quer saber de vento — quer saber é de anjo! Foi então que Emmanuel, meu guia, falou dentro de mim: “Você não acha melhor calar-se e dar testemunho da fé?” E eu, desesperado: “Mas, Emmanuel, é a morte! Estamos apavorados!” E ele: “Se vai morrer, morra com educação — sem gritar, pra não assustar os outros.” (ri com gosto) E eu me calei. O avião se estabilizou. O padre terminou o terço, e eu agradeci em silêncio. Naquele dia aprendi duas coisas: que a fé também tem humor, e que morrer com educação é lição de espírito evoluído! (risos)

 

SuperPauta: Que conselho o senhor dá pra quem perdeu alguém querido?

Chico Xavier: (olhar manso, voz baixa) Meu irmão… ninguém morre. O corpo é só a roupa que a alma deixa no varal.  O amor continua, firme, invisível — mas continua. A saudade é o amor que ficou pra nos ensinar paciência. Ela dói, sim. Às vezes parece que a ausência é maior que o mundo. Mas quando a gente se recolhe em oração e chama aquele nome com ternura, a vibração chega lá. Já recebi tantas cartas de mães, pais, filhos, cada um com a mesma dor, com a mesma pergunta: “Chico, ele ainda me ouve?” E eu respondia: ouve, sim. O pensamento é o telefone do espírito. Quando é discado com amor, a ligação nunca cai. Por isso eu digo: ore, converse em pensamento, faça o bem em nome de quem partiu.

Cada gesto de caridade é uma flor que se acende no caminho deles. O amor, meu filho, não tem cemitério — tem continuidade.

 

SuperPauta: E como atravessar essa saudade?

Chico Xavier: (sorri com doçura) Com oração e serviço, meu filho. A caridade é o melhor remédio pra alma doente. Quando a gente ajuda alguém, o coração que chorava começa a sorrir devagar. A dor não vai embora de um dia pro outro, mas se transforma — vira força, vira saudade mansa, saudade boa de lembrar. Quem ama de verdade não se separa nunca. Apenas muda de endereço. E Deus, na sua sabedoria, não apaga laços — ele só os alonga. O reencontro vem na hora certa, e quando acontece, a gente entende que nenhuma lágrima foi em vão.

 

SuperPauta: O Brasil será mesmo o coração do mundo?

Chico Xavier: (olhos vivos, sorriso leve) Acredito, sim, meu irmão. Mas o coração, pra pulsar direito, precisa estar saudável. E o nosso Brasil ainda está em tratamento. É um país abençoado — mistura de raças, de credos, de culturas. Aqui é a oficina onde a fraternidade está sendo testada. Cada conflito é uma lição, cada crise é uma cirurgia moral. Deus está operando o coração do Brasil. E quem ama o país precisa ajudar nesse tratamento:

com paciência, honestidade e trabalho. O Brasil é chamado a ser o exemplo do amor que acolhe, não da força que divide. O Evangelho renascerá por aqui, mas precisa da nossa boa vontade. Somos aprendizes do amor universal — e a sala de aula é essa terra imensa e bonita.

 

SuperPauta: Que recado daria à juventude de hoje?

Chico Xavier: (voz firme, doce) Meu filho, a juventude é a primavera da alma. Não deixem que o medo ou a pressa roubem esse tempo. O mundo vai tentar convencer o jovem a desistir, a acreditar que nada vale a pena, que tudo é interesse. Mas isso é engano. A alma jovem tem uma força que o tempo não apaga — a capacidade de recomeçar. Estudem, sim, mas estudem também o coração. Não se deixem levar pela vaidade do saber sem servir. Procurem fazer o bem sem alarde, com alegria. A verdadeira revolução é a da bondade. E o Brasil precisa de jovens que, antes de mudar o mundo, queiram melhorar o próprio interior. O amor, quando jovem, é semente. Quando amadurece, vira árvore de sombra larga.

 

SuperPauta: E se o senhor vivesse hoje, com internet e redes sociais?

Chico Xavier: (risos)

Ah, meu irmão, eu usaria tudo isso… mas com cuidado. A palavra, seja falada ou digitada, continua sendo semente. A gente precisa pensar antes de postar, porque a palavra é como o perfume: pode perfumar o ambiente ou envenená-lo. Se eu estivesse na internet, usaria pra espalhar consolo, alegria, esperança. Pra mandar um recado de amor pra quem anda esquecido. Mas lembraria sempre que, às vezes, o silêncio é a postagem mais bonita. O silêncio também é mensagem — é quando o coração fala e a língua descansa.

 

SuperPauta: O senhor falava muito da palavra como oração... isso muda no digital?

Chico Xavier: Não muda nada. A vibração é a mesma. A frase maldosa na tela é como pedra no coração. A prece digitada também sobe, se for sincera. Cada clique é escolha espiritual.

 

SuperPauta: Como manter a espiritualidade no mundo corrido?

Chico Xavier: Espiritualidade é gentileza no trânsito, é paciência no lar, é sorriso no cansaço. Orar é bom, mas agir é melhor. O evangelho começa no gesto, não na boca.

 

SuperPauta: E o planeta, Chico? Está doente?

Chico Xavier: (fica sério, tom de compaixão) O planeta está cansado, meu irmão. A Terra é mãe — e mãe sofre quando vê os filhos brigando. Temos explorado demais, ferido o solo, poluído o ar, esquecendo que a natureza é o corpo de Deus vestido de verde. Cada árvore cortada à toa é uma oração interrompida. Cada rio sujo é uma lágrima do planeta, mas ainda há tempo. Se cada pessoa cuidar do pequeno pedaço que pisa, o mundo inteiro se cura. O primeiro passo da ecologia é o respeito. O segundo é a gratidão. Quando a gente aprende a agradecer a água, o alimento, a sombra, já começou o tratamento espiritual do planeta. A Terra não pede nada impossível — só que a gente pare de ferir quem nos alimenta.

 

SuperPauta: A ciência um dia vai provar tudo?

Chico Xavier: (sorri com doçura e ironia) Ah, meu filho… a ciência é filha de Deus também. Mas há verdades que o microscópio não alcança. A fé não pede diploma, e a ciência, quando é humilde, reconhece o que ainda não sabe. Elas não são inimigas — são irmãs que ainda brigam por brinquedo. Um dia, ciência e fé vão caminhar de mãos dadas, porque o amor é o ponto onde todas as leis se encontram. Mas até lá, precisamos de paciência — e menos orgulho nos laboratórios e nos altares.

 

SuperPauta: O que é a morte, afinal?

Chico Xavier: (voz serena, quase um sussurro) A morte é a volta pra casa, meu irmão. O corpo fica, mas o espírito continua. É como tirar a roupa depois de um dia cansativo: a alma respira, se reconhece, entende o que aprendeu. O espírito acorda e diz: “Ah, então era isso…” Morrer não é castigo — é promoção. E quem amou de verdade não perde ninguém, só muda o horário do encontro. A morte não é fim — é intervalo. A vida é uma só, só muda de cenário. E Deus… é o mesmo diretor amoroso de sempre.

 

SuperPauta: Como se preparar pra ela?

Chico Xavier: Vivendo bem, meu filho. Vivendo com simplicidade, perdoando logo, ajudando sempre. A gente não leva bens, leva o bem. No além, ninguém pergunta o saldo — pergunta se você amou, se perdoou, se serviu. O desencarne é só mudança de estação. O trem segue. E, se fizermos a viagem com leveza, o reencontro será alegre, como quem volta pra casa depois de uma longa jornada.

 

SuperPauta: Chico, se pudesse deixar uma última imagem pro leitor...

Chico Xavier: (olha fixo, com voz mansa e sorriso terno)

Gostaria que me lembrassem como um vizinho disposto a ouvir. Um homem que passou pra deixar consolo, um sorriso, um café repartido. Tudo passa — menos o amor. E no fim, o que vale é ter vivido de modo que só se leve na bagagem a alegria de ter amado. (olha pro alto, pausa longa) A vida continua, meu filho… sempre continua.