quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Clarice Lispector

 Encontros Impossíveis

O mistério atrás da porta

Na penumbra de um Rio de Janeiro atemporal, Clarice fala sobre a guerra na Ucrânia, as cicatrizes do fogo, a recusa ao feminismo de rótulo e a fome de Macabéa.


Sou tão misteriosa que não me entendo” — Clarice Lispector

  

O Rio de Janeiro lá fora insiste em ser solar, barulhento, vivo. Mas aqui, neste apartamento no Leme que parece flutuar entre o passado e o agora, o tempo é uma substância espessa. O ar cheira a cigarro e a um perfume antigo, algo como madeira e flores secas. Há uma tensão silenciosa, como se o ambiente estivesse prestes a quebrar.

Venho de um encontro leve com Fernando Sabino, amigo íntimo desta mulher que agora me encara. Se Sabino era o abraço do Rio, Clarice é o abismo. Ela está sentada na poltrona, protegendo a mão direita — marcada por um incêndio trágico — com um xale sutil. Seus olhos amendoados, levemente felinos, não me convidam; eles me interrogam. Há uma máquina de escrever Olympia sobre a mesa e, ao lado, um maço de cigarros pela metade.

Ela não sorri, mas também não é hostil. É apenas... intensa. Como se estivesse tentando decidir se sou uma visita ou um personagem que ela precisa decifrar. “Eu sou tão misteriosa que não me entendo.” — a frase ecoa antes mesmo de começarmos. Respiro fundo. Entrar no mundo de Clarice Lispector exige coragem.

 



SuperPauta: Clarice, em que instante exato Chaya Pinkhasovna Lispector deixou de existir para que Clarice começasse a respirar?

Clarice: (Traga o cigarro e solta a fumaça lentamente, criando uma névoa entre nós) Não sei se foi um instante ou um processo de esquecimento. Chaya... Chaya é um nome que carrega o peso da fuga. Nasci na Ucrânia, em Chechelnyk, durante uma pausa na viagem de emigração dos meus pais, fugindo dos pogroms, da perseguição aos judeus. Chaya ficou lá, ou talvez tenha morrido no navio. Clarice nasceu aqui, tentando desesperadamente pertencer a este chão tropical. Mas sinto que as duas respiram até hoje, meio desalinhadas, como duas mulheres tentando caber num corpo só. Sou feita dessa falha de encaixe.

 

SuperPauta: Hoje, quase meio século após sua partida, a terra onde a senhora nasceu, a Ucrânia, está em guerra, assim como a região de seus ancestrais em Israel e Gaza. Como a menina que fugiu da violência olharia para o mundo atual?

Clarice: (Seus olhos ficam úmidos e ela desvia o olhar para a janela, onde o mar bate surdo) Com o mesmo espanto antigo. A guerra não muda, meu filho. A guerra é a falência da palavra. Meus pais vieram fugidos, com a fome no estômago e o medo nas costas. Eu vim bebê, mas a memória da fuga ficou no leite que tomei. Ver o mundo se dividindo novamente, ver gente morrendo por terra, por deus ou por nada... é sentir que a raiz humana está podre. A tecnologia avançou, fomos à Lua, temos essa "rede" que conecta tudo, mas a fome de matar o "outro" continua intacta. Isso me dá um cansaço de séculos.

 

SuperPauta: Ainda sobre essas marcas iniciais: consta que a senhora começou a escrever muito cedo, não por vaidade, mas por necessidade. Qual é a primeira memória desse impulso que ainda lhe causa vertigem?

Clarice: O quarto de minha mãe. Ou talvez não o quarto… o silêncio do quarto. Ela estava doente, morrendo aos poucos, e eu... eu falava para curá-la. Eu inventava histórias, acreditava nelas mais do que na realidade. Achava que se eu contasse a história certa, ela não morreria. E quando percebi que a palavra não podia salvar ninguém — aí veio a vertigem. É estranho: a dor desse momento me formou. Mas também me empurrou para algo maior do que eu podia suportar. É uma vertigem antiga. Ainda me roda.

 

SuperPauta: Então o luto pela sua mãe moldou seu silêncio ou seu grito?

Clarice: Moldou meu grito, mas um grito mudo. Escrevi para não morrer do silêncio dela. Talvez toda a minha obra seja uma tentativa — falha — de dar voz ao que eu perdi ali, naquele quarto.

 

SuperPauta: Se pudesse falar com seu eu de cinco anos, o que diria?

Clarice: “Não tenha pressa de entender.” Entender é o fim. Talvez eu dissesse também: “Brinca mais, menina. Se suja.” O futuro é apenas passado com mais peso. E a angústia… essa a gente aprende a usar como tinta.

 

SuperPauta: A senhora cresceu no Nordeste, entre Maceió e Recife. O que aquela infância lhe revelou sobre a brutalidade e a beleza?

Clarice: Que são a mesma coisa... mas isso eu só entendi depois. A galinha viva no quintal era bonita. A morte dela para o almoço de domingo, brutal. E eu comia. Eu existia no meio das duas coisas. O Nordeste não é suave, o Recife não era macio. Era uma luz dura, uma verdade crua. A pobreza que vi nas ruas, os mocambos... aquilo me vacinou contra o excesso de doçura. Aprendi cedo que viver é esse fio tenso entre a náusea e o êxtase.

 

SuperPauta: Essa sensação de não pertencer totalmente a lugar nenhum... Ser estrangeira na própria vida é destino ou escolha?

Clarice: Destino, talvez. Mas tem uma parte que é escolha, sim… não escolha consciente, dessas de levantar a mão. É uma escolha do corpo, do jeito como se sente o mundo. Sempre me senti um pouco traduzida. E traduções nunca são fiéis. Mas… ao mesmo tempo, ser estrangeira também me deu liberdade. A gente que não pertence pode circular entre as coisas. Eu circulo.

 

SuperPauta: Antes de partir para o exterior, em 1944, a senhora passou um período em Natal, esperando transporte, num hotel que chamou de “horrívelzinho”. O que aquele trecho interrompido da vida lhe revelou? Clarice: Ah, Natal… sim, aquele hotel. Não tenho boas lembranças, não. Foi uma espera longa — uma espécie de suspensão. Eu estava de passagem, mas a passagem demorou mais do que eu queria. A cidade… talvez eu não tenha sabido recebê-la, e ela também não soube me segurar. Às vezes um lugar não coincide com o nosso tempo interno, e aí tudo fica torto. Em Natal eu senti um cansaço existencial, uma espécie de desalinho entre mim e o mundo. Um intervalo que me revelou que, mesmo no Brasil, eu podia ser estrangeira de novo. E isso doeu. Mas ensinou.

 

SuperPauta: Pouca gente sabe que a senhora se formou em Direito e chegou a trabalhar em prisões, além de ter sido voluntária como assistente de enfermagem na FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra. O que viu ali, entre feridos e presidiários, que a literatura não contava?

Clarice: Vi que o corpo não mente. No hospital da FEB, cuidando dos nossos soldados que voltavam, não havia metáfora. Havia pus, febre, delírio e gente jovem mutilada. Eu queria ajudar, passava batom para animá-los, escrevia cartas para eles, mas me sentia inútil diante da dor física real. Ali eu entendi que a literatura tem um limite. Diante da carne aberta, a palavra é um luxo. Isso me deu humildade. E me deu, também, uma certa raiva de quem faz literatura enfeitada. A vida é sangue e matéria.

 

SuperPauta: Depois disso, a senhora viveu anos no exterior — Suíça, Estados Unidos — acompanhando seu marido diplomata. Mas suas cartas a amigos como Fernando Sabino e Rubem Braga revelam uma angústia profunda. Por que era tão difícil ser apenas "a esposa do diplomata"?

Clarice: Porque a etiqueta diplomática é uma máscara de gesso. E eu sufocava. (Ela alisa o tecido da saia, impaciente). Eu tentava, juro que tentava. Organizava jantares, sorria, usava as luvas certas, aprendia a não falar o que pensava. Mas, por dentro, eu estava vendo a "coisa" pulsando. Eu olhava para uma embaixatriz e via a solidão dela, via o esqueleto. Como conversar sobre o clima quando você vê a alma da pessoa gritando? Eu me sentia uma espiã infiltrada num mundo de aparências. Escrevia para o Fernando pedindo o Brasil, pedindo uma máquina de escrever suja de tinta, pedindo a desordem. O luxo de Berna e Washington nunca preencheu meu vazio. Era uma prisão de veludo.

 

SuperPauta: Nessas cartas, a senhora pedia afeto de forma quase infantil. A ‘Clarice Monstro Sagrado’ era, antes de tudo, uma pessoa solitária?

Clarice: (Suspira fundo, a fumaça sai densa) O "monstro sagrado" foi uma invenção dos críticos e dos leitores para não terem que lidar comigo como gente. É mais fácil idolatrar uma estátua do que conviver com uma mulher cheia de falhas. Sim, eu era solitária. Terrivelmente. Eu pedia afeto como quem pede pão. As cartas eram meu cordão umbilical com o Brasil e com a sanidade. Eu me sentia estrangeira em tudo, e os amigos — Fernando, Cabral, Rubem, Érico — eram minha pátria. Mas, no fundo, a gente nasce e morre só. A escrita é a única ponte que às vezes, só às vezes, atravessa esse abismo.

 

SuperPauta: Nosso penúltimo entrevistado, seu grande amigo Fernando Sabino, dizia que “no fim dá tudo certo”. A senhora, que olhou tão fundo nos abismos da alma humana, concorda com esse otimismo dele?

Clarice: (Esboça um meio sorriso, quase maternal) Fernando... O Fernando era um menino que se recusava a envelhecer. Ele tinha a graça da leveza. Eu o invejava, às vezes. O Deus dele era gentil. O meu... o meu é urgente. Para mim, não é que "dá certo". É que "é". As coisas são. A barata é, a dor é, o amor é. Aceitar que não há final feliz, mas apenas a continuidade brutal e bela da vida... talvez seja a minha forma de otimismo. Mas é um otimismo doído.

 

SuperPauta: A senhora sempre foi considerada uma mulher belíssima, comparada a atrizes de cinema. Mas, em 1966, um incêndio no seu quarto — provocado por um cigarro e um sonífero — deixou marcas profundas em seu corpo e em sua mão direita. Como foi fazer as pazes com o espelho depois disso?

Clarice: (Ela olha para a mão cicatrizada sobre o colo, acariciando-a levemente com a outra mão) Nunca fiz as pazes. Fiz uma trégua armada. Eu era vaidosa, sim. Gostava de ser admirada, gostava das roupas, da imagem. O fogo... o fogo veio para tirar o supérfluo. Foi o meu inferno pessoal. Quase morri, fiquei dias entre a vida e a morte, e uma parte da minha vaidade morreu ali naquelas chamas. A dor das queimaduras... não há adjetivo para isso. Depois, precisei aprender a viver com as marcas, a esconder as pernas, a proteger a mão. Deixei de ser a "estátua" e me tornei apenas humana. Dolorosamente humana. A beleza virou algo interno, porque o externo foi violado.

 

SuperPauta: Mesmo com essa densidade, a senhora escreveu livros infantis. Era uma fuga?

Clarice: Era um descanso! Um intervalo de luz. Escrever para crianças — e para bichos, porque me entendo melhor com eles do que com gente — era me permitir brincar. No mundo infantil não há culpa, não há esse intelecto torturado que analisa tudo. Há curiosidade pura. Eu precisava dessa trégua. A Vida Íntima de Laura (a galinha) sou eu rindo de mim mesma.

 

SuperPauta: Clarice, a senhora sempre rejeitou o rótulo de "escritora feminista", embora suas personagens mulheres sejam as mais complexas da nossa literatura. Hoje, isso gera debate. Por que essa recusa?

Clarice: (Ri, um riso curto e seco) Que debatam. Eu não escrevia para agradar movimentos. Veja, eu não sou uma "escritora mulher". Eu sou uma pessoa que escreve. Dividir a literatura em gavetas de gênero me parecia diminuir a universalidade da alma. A dor não tem sexo. A angústia de existir não é masculina nem feminina. Claro que sofri as amarras de ser mulher — o casamento, as cobranças, a "doce burrice" que esperavam de nós. Mas eu queria atingir o humano, o "isso". O rótulo me limitava. Eu queria a liberdade total, e o feminismo da época, às vezes, me parecia outra forma de prisão ideológica ou sectária. Eu lutei sendo, não militando.

 

SuperPauta: Vamos falar da sua escrita, que muitos consideram difícil. Suas histórias muitas vezes não têm começo, meio e fim tradicionais. Em A Paixão Segundo G.H., uma mulher passa o livro todo dentro de um quarto olhando uma barata esmagada. O leitor médio se assusta. Por que romper com a narrativa?

Clarice: Porque a vida não tem enredo! A vida não é um romance linear. A vida é um fluxo, um susto, um tropeço. Eu não queria contar uma historinha para entreter. Eu queria capturar o instante. G.H. não é sobre uma barata. É sobre o momento em que a civilização falha. A barata é a vida pré-histórica, imunda e viva, que nos olha de volta. Quando G.H. come a massa branca da barata, ela está comungando com o real, sem máscaras. Quem busca lógica em mim, perde o melhor: perde a sensação.

 

SuperPauta: O medo da loucura transparece em muitas linhas. Escrever a protegia ou a empurrava para o abismo?

Clarice: As duas coisas. Escrever é caminhar na beira do abismo. Havia dias em que eu sentia que, se escrevesse mais uma palavra verdadeira, eu quebraria. Eu me desintegraria. Mas se eu não escrevesse... eu sufocava. A literatura foi minha corda bamba. O medo da loucura sempre esteve lá, rondando. Talvez por isso eu tentasse me agarrar ao trivial, ao fazer feira, ao cuidar dos filhos, ao ter horário para o jornal. O cotidiano era minha âncora para não voar para longe demais.

 

SuperPauta: Em A Hora da Estrela, sua última obra publicada em vida, a senhora cria Macabéa, uma nordestina faminta, feia, virgem e que comia cachorro-quente. Muitos viram ali uma denúncia social. Quem era Macabéa para você?

Clarice: Macabéa era eu. Sem o verniz, sem a cultura, sem a proteção do dinheiro. Macabéa era a minha pureza perdida e a culpa do Brasil. Eu a amei desesperadamente enquanto a matava no papel. Ela não sabia que era infeliz, e isso é de uma crueldade e de uma beleza insuportáveis. O Brasil está cheio de Macabéas. Gente que vive sem saber que vive, que pede desculpas por ocupar espaço. Eu queria gritar por ela. Rodrigo S.M., o narrador do livro, sou eu tentando suportar a culpa de fazer arte num país de famintos.

 

SuperPauta: O que as mulheres do seu tempo não entenderam sobre Macabéa?

Clarice: Elas tiveram pena. E a pena é uma forma de cegueira. Macabéa não se pensava infeliz, e isso confundiu muitas mulheres da época. Elas queriam vê-la como vítima — e ela era —, mas era também algo mais difícil de aceitar: pura. Uma pureza que não vem da inocência consciente, mas da ignorância luminosa. Macabéa não sabia que era trágica, e isso a tornava… livre, de um jeito doloroso. Eu a amei com amor e com inveja. Porque ela vivia sem a tortura da autoconsciência. E poucas pessoas suportam admitir que a ignorância pode ser uma espécie de graça. Eu mesma nunca tive essa graça.

 

SuperPauta: A senhora trabalhou muito tempo na imprensa, escrevendo crônicas e até colunas femininas sob pseudônimo para ganhar dinheiro. O jornalismo atrapalhou ou ajudou a literatura?

Clarice: Ajudou a pagar as contas (sorri de canto). E me ensinou a comunicação direta. Na coluna feminina, eu dava conselhos sobre cremes e maridos fingindo ser quem não era... era divertido e humilhante ao mesmo tempo. Mas na crônica de sábado, no Jornal do Brasil, ali eu podia conversar. Descobri que falar simples é o mais difícil. O jornal me manteve conectada às pessoas comuns, aos taxistas, às donas de casa. Isso foi vital para não me perder no hermetismo.

 

SuperPauta: O que é o "Instante" que a senhora tanto perseguiu?

Clarice: O Instante é o "já". É o momento em que o ovo quebra. É quando você olha para uma coisa e a vê pela primeira vez, despida de nome. É um relance de divindade ou de horror. É tão rápido que a memória falha em segurar. Eu escrevia para tentar prender o Instante na página, como quem tenta prender um pássaro com as mãos nuas. Quase sempre ele escapava, e ficava só a pena.

 

SuperPauta: A página em branco lhe dava pavor ou prazer?

Clarice: Pavor. Um medo físico. O branco é o nada — e eu tenho medo do nada. Quando a palavra vem, aí sim, um lampejo de êxtase. Mas antes disso… é como ficar diante de um abismo que me chama. Eu não sei se quero cair ou recuar. A escrita é esse vacilo.

 

SuperPauta: A senhora dominava a linguagem ou era devorada por ela?

Clarice: No começo eu quis dominar. Fazer bonito. Depois percebi que a linguagem é bicho – e eu era a presa. Naquele tempo, a escrita me devorava inteira, e eu a deixava. Com o passar dos anos fui entendendo que eu era apenas o corpo por onde a frase passava. Quando releio o que escrevi – e releio como quem toca algo estrangeiro – sinto que não fui eu. Era uma parte minha que eu nunca alcancei. Talvez a melhor parte.

 

SuperPauta: O silêncio fala mais que a palavra?

Clarice: O silêncio… ah, o silêncio. Ele é a língua que eu mais entendo, embora finja que domino outras. A palavra é uma tentativa de aproximação, um contorno torto. O silêncio é o centro. A palavra é só a borda. Quando escrevia — e até quando não escrevia — eu percebia que tudo o que realmente importa está justamente no que não consegui dizer. O que está escrito é sombra; o silêncio é o corpo. O silêncio não explica, não seduz, não argumenta. Ele é. Ele se impõe. E ele, muitas vezes, dói. Porque no silêncio a gente escuta o que não queria ouvir: o medo, a memória, o desejo, a verdade sem maquiagem. O silêncio é a matéria-prima do indizível. E talvez seja por isso que eu o perseguia tanto: para ver se, cercando-o com palavras, eu conseguia tocá-lo sem machucar — ou sem me machucar. Mas ele sempre escapou. E, escapando, ensinou.

 

SuperPauta: Já odiou escrever?

Clarice: Sim. Muitas vezes. E não tenho orgulho disso — mas também não tenho vergonha. O ódio vinha porque escrever me rasgava. Porque exigia de mim coisas que eu não queria dar. Porque me obrigava a olhar para dentro quando eu só queria um copo d’água e um descanso do mundo. Eu odiava escrever quando queria simplesmente viver. Ser comum. Ser tola. Ser feliz de um jeito simples. Mas o papel me chamava, como se houvesse uma dívida. E, ao mesmo tempo, enquanto eu odiava, eu precisava. O ódio e a necessidade conviviam, se mordiam, se abraçavam. Eu era escrava da frase que ainda não existia. E, no fim, mesmo odiando, eu sentava e escrevia. Como quem volta para uma casa que fere, mas também salva.

 

SuperPauta: Escrevia para ser lida ou para se salvar?

Clarice: Eu escrevia para respirar. Para não morrer afogada em mim mesma. Escrever era um ato de sobrevivência — como abrir uma janela em uma sala onde falta ar. A leitura veio depois. O leitor sempre foi um milagre, mas nunca a origem. Se eu estivesse condenada ao silêncio absoluto, teria escrito mesmo assim, talvez em guardanapos, talvez nas paredes, talvez apenas dentro de mim. Não escrevi para ser compreendida. Escrevi porque, sem escrever, eu implodiria. E quando alguém me lia… bom, aí acontecia outra espécie de milagre. Dois solitários se reconhecendo. Mas o impulso inicial sempre foi a urgência de existir.

 

SuperPauta: Qual objeto do cotidiano melhor traduz seu processo criativo?

Clarice: A máquina de escrever — aquela velha, pesada, barulhenta. A que não perdoava um erro, a que fazia a casa inteira ouvir quando a frase nascia. Porque escrever não é sopro, não é leveza: é trabalho de ferreiro. É golpear o invisível até virar forma. A máquina me lembrava que a literatura não vem do ar, mas do esforço. Das madrugadas. Do cansaço. Do medo. Do corpo curvado. A tecla batendo é uma espécie de martelo: martela-se a alma para que o texto apareça. E eu confiava nesse barulho. Era quase uma companhia. Talvez por isso eu nunca tenha conseguido escrever direito em silêncio absoluto: eu precisava ouvir a luta.

 

SuperPauta: Onde começa a sua verdade? No pensamento, no corpo ou no vazio?

Clarice: No corpo. Sempre no corpo. O pensamento mente, argumenta, constrói explicações elegantes demais para serem verdadeiras. O corpo não tem diplomacia: ele treme, arrepia, adoece, recusa, deseja. O corpo diz a verdade antes que a mente consiga disfarçar. E o vazio? Ah… o vazio é o lugar onde a verdade mora, mas onde quase ninguém tem coragem de entrar. O vazio é o território do essencial, mas também do perigoso. Eu me aproximei dele muitas vezes — mais do que seria sensato. E talvez por isso eu tenha escrito o que escrevi: para tentar dar bordas ao vazio sem cair nele inteira.

 

SuperPauta: Hoje, vivemos na era da exposição total. Todos têm uma câmera na mão, todos publicam suas vidas. O mistério acabou?

Clarice: O mistério se escondeu envergonhado. Há muito barulho, muita "eu-foria". As pessoas mostram o prato de comida, mas escondem a fome da alma. Escrevem para serem vistas, não para verem. Tudo é vitrine. Mas o mistério... ah, ele é paciente. Ele espera no silêncio. Quando a tela apaga, quando a bateria acaba, o ser humano continua sozinho no escuro do quarto com sua angústia ancestral. E aí, não há like que salve. O mistério não morreu, só ficou mais solitário.

 

SuperPauta: Qual é o Deus de Clarice Lispector?

Clarice: Não é o Deus das barbas brancas e dos julgamentos. É o Isso. A energia neutra e viva que move as estrelas e as baratas. Um Deus que cria e destrói com a mesma indiferença sagrada. Eu o busquei a vida inteira, às vezes com raiva, às vezes com gratidão. Ele está no silêncio entre duas notas de música.

 

SuperPauta: Se pudesse enviar um telegrama urgente para os jovens brasileiros de hoje, o que estaria escrito?

Clarice: "Parem. Desliguem. Olhem. Sintam. Não se tornem robôs. Socorro. Clarice."

 

SuperPauta: Para encerrar, Clarice. A senhora passou a vida tentando decifrar a morte. Daqui de onde a senhora nos fala, ela ainda lhe assusta?

Clarice: (Ela olha fixamente para a máquina de escrever, depois sorri com uma leveza que não tinha antes) A morte... eu tinha medo de morrer, sim. Medo de deixar de ser. Mas descobri que a gente não deixa de ser. A gente se expande. A morte foi só o momento em que parei de atrapalhar a vida, e me integrei a ela. Não é um muro, meu filho. É uma porta que fica entreaberta. O silêncio que encontrei do outro lado não é vazio; é cheio de tudo. Eu não preciso mais soletrar a palavra. Agora, eu sou o próprio mistério.

 

SuperPauta: Obrigado, Clarice.

Clarice: (Ela se levanta, e sua figura parece ficar ligeiramente translúcida contra a luz da varanda) Agora vá. O silêncio me chama de volta. E ele não gosta de esperar.





segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Encontros impossíveis: Luís da Câmara Cascudo

 Encontros Impossíveis

 O guardião das histórias do Brasil 

Luís da Câmara Cascudo retorna para guiar o SuperPauta em uma viagem pelo arquivo da alma brasileira.

Nem mesmo Deus tem o poder para modificar o Passado” — Luís da Câmara Cascudo

  

A casa da Avenida Câmara Cascudo, o solar que hoje abriga o Instituto Ludovicus, flutua em um éter sereno. Não é o cheiro de um museu, mas de poeira antiga e cajuína fresca, misturado ao sal marinho que teima em entrar pelas janelas. Mestre Cascudo nos recebe em uma poltrona de couro, cercado por milhares de livros que parecem não apenas guardá-lo, mas escutá-lo. Sua figura é calma, as mãos repousam sobre uma cópia já amarelada do "Dicionário do Folclore Brasileiro", e seus olhos têm a placidez de quem já viu todos os mitos nascerem e morrerem. O tempo, ali, parece ter a textura da areia, escorrendo lento.

Este encontro é uma imersão na identidade brasileira. Percorremos a trilha de sua infância no Rio Grande do Norte, a teimosia de ser intelectual no Nordeste e a épica solidão de sua pesquisa, feita por cartas e viagens hercúleas. Mestre Cascudo reflete sobre o preço invisível de catalogar a alma de uma nação, o destino do Folclore na era do meme e da Inteligência Artificial, e o eterno fascínio por figuras como Lampião. Ele nos oferece, por fim, o conselho do guardião das histórias ao homem moderno, que esqueceu de olhar para o próprio chão.


 

SuperPauta: Mestre Cascudo, antes de mais nada, preciso registrar que não é por acaso que faço esta visita ao senhor vestindo a camisa do América de Natal. Meu avô paterno, Oscar Homem de Siqueira, foi um dos fundadores do clube. O primeiro endereço oficial do América, inclusive, foi o da casa do meu bisavô Joaquim Homem de Siqueira. E, para completar a linhagem, meu avô materno, Antônio Trigueiro, também esteve entre os fundadores. Com essa herança toda, não dava para vir com outra camisa. Mas agora confesso a curiosidade: e o senhor? Torcia para quem na velha rivalidade potiguar?
Câmara Cascudo: (Sorri como quem reconhece um laço antigo, desses que atravessam gerações) Ah, meu filho… então você traz o América no sangue e nos registros cartoriais! A família Homem de Siqueira faz parte da certidão de nascimento do clube. Isso é mais forte que qualquer bandeira sacudida no estádio. É história viva. Quando a genealogia empurra, a camisa não é roupa; é herança. Mas já que você abriu o jogo, eu abro o meu: eu sempre tive simpatia pelo ABC. Não por gols nem tabelas — disso eu nunca fui devoto — mas porque minha família se alinhava ao grupo que deu corpo e voz ao ABC nos seus primeiros anos. A política do tempo fazia o arranjo dos afetos. De minha parte, o apreço veio sobretudo pela cultura em torno do clube. Não é por acaso que escrevi aquela frase que vocês repetem até hoje: “Numa cidade de nome Natal, existe um povo chamado ABC.” Agora, veja como é bonita essa geografia sentimental: você, neto e bisneto de fundadores do América. Eu, simpático ao ABC por linhas familiares. E aqui estamos nós dois, conversando civilizadamente, porque o Folclore — ao contrário do futebol — não tem lado do campo. E eu lhe digo mais: América e ABC são irmãos de 1915, nascidos quase no mesmo sopro, cada um carregando um humor e uma ambição de Natal. Juntos, contam mais sobre o povo potiguar do que qualquer registro sociológico. Então, fique com sua camisa. Ela é uma biblioteca afetiva. E eu fico com minha simpatia antiga. No fim, o que importa é que somos todos personagens de um mesmo conto — e o conto é Natal.
 
SuperPauta
: Mestre, já que falamos de heranças, clubes e raízes, queria aproveitar esse espírito de pertencimento para dar um passo atrás no tempo. Antes do ABC e do América existirem, existia a sua cidade enquanto menino. A Natal que lhe formou. Que lembranças lhe chegam primeiro quando o senhor volta à infância?
Câmara Cascudo: (Respira fundo, como quem abre a porta de um quarto antigo e cheio de luz) Quando você fala em herança, meu filho, a memória se ajeita na cadeira. Antes de clubes, antes de bandeiras, havia a minha cidade-menino: Natal ainda com cheiro de começo. A vida era lenta, como se o tempo tivesse preguiça de passar. As ruas tinham mais areia do que calçamento, e a gente caminhava com a sensação de que o chão tinha alma própria. Era um lugar onde tudo parecia inaugural. A brisa do Potengi vinha limpa, como verso recém-escrito. A infância, para mim, foi essa mistura mansa de silêncio e descoberta. É importante lembrar: a cidade do começo do século era pequena, mas tinha uma força que não cabia no mapa. Cada canto era um universo: o mercado, o porto, a rua da Conceição. E eu, menino enfermiço, aprendia olhando. A minha grande herança foi essa: observar antes de falar. Por isso, quando você menciona sua genealogia no América, eu penso na minha genealogia com Natal. O futebol é um capítulo recente. A cidade, essa sim, é o livro inteiro.

 

SuperPauta: Que tessitura onírica tinha a Natal da sua infância? Que cheiro de mangue, que cor de areia e que tom de mar moldaram aquele menino, transformando-o no primeiro cartógrafo da alma brasileira?

Câmara Cascudo: (Sereno, olhar distante) Ah, meu filho, a Natal de menino tinha a textura da areia grossa e o ritmo do vento Sul. Não era uma cidade, era um corpo. Cheirava a pescado e flor de mangue pela manhã, a café forte e a maresia ao meio-dia. A cor... a cor era a do ocre do barro e o azul ingênuo da água que víamos do Potengi. O som era a fala lenta, o ruído dos tamancos na calçada e as histórias murmuradas nas noites de lua. Aquele menino não foi moldado pela História dos livros, mas pela paciência da água que insiste em bater na praia. Fui feito de terra e de lenda.

 

SuperPauta: Sua casa era um viveiro de histórias, um arquivo vivo. Que marcas, que conselhos silenciosos seus pais, o Coronel Cascudo e a Dona Ana, deixaram gravados em sua curiosidade insaciável?

Câmara Cascudo: Meu pai, o Coronel (risos, referindo-se ao título honorário da Guarda Nacional), me ensinou o rigor da catalogação e o apreço pelo dever. Minha mãe, Dona Ana, me deu a chave do Arquivo da Emoção. Ela lia de tudo, da Bíblia aos romances de capa e espada, e me mostrou que a verdade da vida pode estar em qualquer lugar, não apenas nas gavetas do cartório. O conselho silencioso era a observação. Eles me fizeram entender que o mundo é vasto, mas a alma humana cabe inteira em um pedaço de chão.

 

SuperPauta: Qual foi a primeira lenda, o primeiro sussurro de feitiçaria ou medo, que o fez parar e pensar: "Existe um mundo subterrâneo aqui"?

Câmara Cascudo: (Pausa, como se estivesse revivendo o medo) Foi o medo da Mão de Deus. Não o Deus dos altares, mas a lenda de algo vasto, invisível e punitivo que nos vigiava. Eram as histórias do boi-tatá e do lobisomem contadas por minha babá, que me mostravam que a Noite não é só escuridão; é uma outra Realidade, povoada. Percebi que o povo não temia a lei, mas temia a lenda. Naquele momento, entendi que a ficção é o motor moral da História.

 

SuperPauta: O senhor se formou em Direito, mas o destino, o fado, o empurrou para o Folclore. Houve um instante de "conversão", um raio que o fez abandonar a lei dos homens pela lei do povo?

Câmara Cascudo: (Sorri levemente) Não foi um raio, foi uma paciência de formiga. O Direito ensina a ver o mundo pelo papel; o Folclore me obrigou a vê-lo pelo chão. Minha conversão se deu ao notar que, por mais justas que fossem as leis de Rui Barbosa, elas não davam conta de explicar por que um homem acendia uma vela para a Mãe D'Água ou por que tinha medo do Saci. A lei é o que deve ser; o Folclore é o que é, no profundo e irracional. O Direito me deu ofício e salário; o Folclore, vocação. A pena continuou assinando petições e pareceres, mas o coração passou a tomar notas de rezas, medos e promessas. Digamos que eu não abandonei a lei: apenas descobri que o regulamento verdadeiro do Brasil estava no que o povo fazia fora do Código.

 

SuperPauta: Ser intelectual no Nordeste do começo do século XX era um ato de heroísmo eremita ou de teimosia amorosa?

Câmara Cascudo: Era, acima de tudo, um ato de localismo obstinado. Éramos teimosos por amor ao nosso chão. O eixo cultural girava no Sul; publicar e ser lido aqui era remar contra a maré. Havia um isolamento físico, claro, mas este eremitério nos forçou a olhar para dentro, para o quintal. Fomos obrigados a criar uma Universidade da Janela, onde a aula era dada pelo pescador, pela rendeira, e o texto sagrado era a vida na feira. Sem essa teimosia, teríamos copiado a cultura de fora, e eu não teria tido a chance de catalogar a nossa.

 

SuperPauta: Mestre, o sobrenome "Cascudo" — que se tornou sua marca e evoca a casca, a dureza, a persistência — tem origem na sua família. Qual é a lenda ou a história familiar por trás deste nome tão singular? Ele não seria, em si mesmo, um batismo folclórico, que predestinou o homem à sua obra?

Câmara Cascudo: (Acaricia a capa do Dicionário, com um sorriso de sabedoria) Meu filho, o nome é uma teimosia que vem de longe, e não é do peixe ou do escaravelho; é da política. Meu avô paterno era um dos chefes do partido Saquarema — o partido Conservador — e ganhou o apelido de Cascudo por ser inflexível, duro nas posições. O Saquarema, aqui no Rio Grande do Norte, era conhecido como o "Partido Cascudo". Aquele homem se tornou "O Velho Cascudo". Como eu era filho único, e meu pai era o único a usar o nome, havia o risco de que esse título de obstinação desaparecesse. Eu o adotei para que essa persistência não se perdesse. E, veja bem, o nome casou perfeitamente com a minha natureza. Fui uma criança enfermiça, com pulmões suspeitos, forçado a uma vida reclusa. Eu não corri na rua, nunca subi em árvores, minhas recordações de infância são de dentro. A vida sedentária me deu a casca da observação; o nome me deu a casca da obstinação. A teimosia do político se transformou na persistência do folclorista, que tinha de ficar quieto e escutar.

 

SuperPauta: Quem era o grande contador de histórias da sua infância — a cozinheira, o pescador, o viajante — cujo eco ainda ressona na sua escuta?

Câmara Cascudo: (Fecha os olhos) Era o povo anônimo. Mas se devo citar uma voz, cito as "tias" que viviam ao redor, senhoras da sociedade que guardavam, sem saber, o repertório de contos europeus e africanos passados pela escravidão. Eram as intermediárias culturais. Elas me ensinaram que a História do Brasil não está só nos livros da Torre do Tombo, mas no sussurro entre o fogão e a rede.

 

SuperPauta: O senhor uniu o “saber de dentro” (o popular, o vivido) ao “saber de fora” (o erudito, o catalogado). Onde, nesse campo de forças, eles se abraçam na sua obra?

Câmara Cascudo: Eles se abraçam na bibliografia. O saber de dentro é a minha fonte primária; o saber de fora é a minha ferramenta de respeito. Quando eu catalogava um conto popular, eu o tratava com a mesma seriedade que um texto de Aristóteles. Eu dava ao povo o status acadêmico que a academia negava. Minha obra é um casamento onde a noiva é a sabedoria simples e o noivo é o rigor científico. Não podem viver separados.

 

SuperPauta: O senhor provou que se pode ser universal sem abandonar Natal como porto de origem, tornando o Rio Grande do Norte uma espécie de bússola do mundo. Essa imobilidade física foi, na verdade, uma viagem astral?

Câmara Cascudo: (Risos) Uma excelente imagem! Sim, a imobilidade foi a chave. Onde o erudito via limitação, eu vi profundidade. Ao invés de cobrir mil léguas, eu cavei um palmo quadrado. Quanto mais fundo eu ia em Natal, mais eu encontrava o mundo: a África na culinária, Portugal nas festas, Roma no Direito. O universal não está na distância, mas na concentração do olhar. O Folclore me fez viajar por todos os séculos e continentes, mesmo voltando sempre para a mesma casa, na mesma rua.

 

SuperPauta: Se hoje temos a Internet, no seu tempo havia a solidão das cartas e as poeiras do sertão. O que o senhor teria alcançado com a velocidade do mundo moderno? Ou a lentidão da pesquisa era, ironicamente, essencial para capturar a alma do tempo?

Câmara Cascudo: O tempo é o ingrediente secreto, meu amigo. Eu teria alcançado mais material, sem dúvida. Mas a lentidão era um filtro essencial. A carta não era só um meio; era um ritual. Exigia paciência, reflexão, e dava tempo para a resposta vir madura, não urgente. O sertão se revela no passo lento, na conversa demorada, no café coado em silêncio. A Internet traz a informação, mas talvez mate a intimidade, o ingrediente principal da pesquisa folclórica.

 

SuperPauta: O Dicionário do Folclore Brasileiro não é um livro, mas uma segunda Constituição. Qual foi o preço invisível, a renúncia pessoal, dessa empreitada monumental?

Câmara Cascudo: O preço foi a vida fácil. Eu renunciei à vaidade da vida social vazia e à tentação de me deter em temas fáceis. O Dicionário exigiu uma solidão militante. Foi preciso abdicar da distração para ouvir os mortos, que eram a minha principal fonte. Mas a maior renúncia foi talvez a certeza: o Dicionário é, por natureza, inacabável. É o livro que sempre falta um verbete. A alma de um povo nunca pode ser completamente catalogada.

 

SuperPauta: No limiar entre o real e o fabuloso, onde reside a essência do Folclore? É o lugar onde a mentira se torna verdade e a história é escrita pelo desejo do povo?

Câmara Cascudo: É exatamente onde a Razão se curva. O Folclore é o desejo do povo de corrigir a história, de dar esperança onde há miséria, ou de dar medo onde a lei falhou. A mentira, no Folclore, é uma verdade simbólica. Não importa se o Saci existe; importa que o medo dele ordena o mundo e ensina as crianças a respeitarem a natureza. A essência está na função do mito, não na sua prova.

 

SuperPauta: Qual obra menos conhecida o senhor considera mais íntima, aquela que é quase um diário de sua própria alma?

Câmara Cascudo: (Leva a mão a um livro discreto na mesa) Talvez "Civilização e Cultura", ou as pequenas crônicas reunidas em "Contos Tradicionais do Brasil". Nelas, o professor cede lugar ao contador. Ali, eu me permiti a ternura, o que o rigor científico muitas vezes proíbe. A alma não pode ser só fichada; ela precisa ser contada.

 

SuperPauta: Em "História da Alimentação", os ingredientes contam um Brasil profundo. O que a farinha, o milho e a carne de sol revelam que os livros oficiais de História, com sua pompa, escondem?

Câmara Cascudo: A mesa é o verdadeiro mapa da colonização. Os livros oficiais falam de tratados e reis; a comida fala de fome, adaptação e sincretismo. A farinha revela a herança indígena; o dendê, a África; o trigo, o colonizador. A carne de sol revela a engenhoca nordestina de enfrentar a seca com a arte da preservação. A comida é a História do povo em mastigação, a mais íntima, porque entra em nosso corpo.

 

SuperPauta: Como funcionava o seu processo criativo? O senhor era mais o pesquisador que vai a campo, o leitor voraz ou o observador silencioso, esperando a história se manifestar?

Câmara Cascudo: Eu era um mosaico. Primeiro, o leitor voraz, para entender o que já havia sido dito. Depois, o pesquisador de botas e de cartas, para ouvir o que não estava nos livros. Mas a chave era o observador silencioso. O folclorista precisa ter paciência de pescador. Eu me sentava na praça, ouvia a conversa na feira, esperava o mito se manifestar sem pressa. A história do povo é tímida; se você a apressa, ela se esconde.

 

SuperPauta: Por que o senhor dedicou tanto carinho aos Contos Tradicionais do Brasil? A simples narrativa é o nosso maior motor de sobrevivência cultural?

Câmara Cascudo: A narrativa é o nosso cordão umbilical. O conto tradicional ensina moral, ensina a rir da tragédia e ensina que o pequeno pode vencer o gigante. Quando o povo perde a sua capacidade de contar histórias, ele perde a sua memória de resistência. Sim, a simples narrativa é o motor da sobrevivência. É o que nos lembra quem somos, antes que o mercado nos diga o que devemos comprar.

 

SuperPauta: Em sua visão, a cultura popular deve ser guardada em um museu de vidro, intacta, ou vivida e transformada na rua, no risco da mudança?

Câmara Cascudo: (Decisivo) O museu é para os ossos; o Folclore é para o sangue. Ele precisa ser vivido na rua, transformado, usado. O Folclore que não muda está morto. Minha função foi registrar o que era para que os novos soubessem o chão que pisavam, mas eles têm o direito de criar o Folclore do amanhã. A cultura popular é um rio: precisa correr, mesmo que mude o leito.

 

SuperPauta: Como separar o valor antropológico do "pitoresco", esse verniz fácil que o turista e o explorador aplicam sobre o Nordeste para vender ilusões?

Câmara Cascudo: O pitoresco é a imagem que agrada ao estrangeiro; o antropológico é a dor e a verdade que não se vendem. O truque é buscar a função. Se uma dança é feita para pagar promessa ou aliviar a fome, é antropológica. Se é feita para o turista bater foto e pagar ingresso, é pitoresca. Eu sempre busquei a raiz da função, o que o povo faz para se entender e sobreviver, não o que ele faz para ser admirado.

 

SuperPauta: Qual objeto comum — um brinquedo de barro, um utensílio de cozinha — o senhor considera um tesouro antropológico?

Câmara Cascudo: (Pensa) O Pão-de-Ló. É um bolo simples, quase etéreo, mas revela o desejo português de trazer a doçura da vida de corte para a vida áspera do Nordeste. É um ato de resistência gastronômica. E o peão de madeira, que mostra a engenhosidade infantil em transformar um pedaço de resto em um centro de mundo. A grandeza está na simplicidade.

 

SuperPauta: Qual era sua relação intelectual, para além da correspondência, com Mário de Andrade? Havia um diálogo de cumplicidade sobre a busca do Brasil?

Câmara Cascudo: Mário era um amigo de paixão idêntica, mas de método diferente. Ele buscava o Brasil com a urgência do Modernismo; eu, com a paciência do Historiador. Nossas cartas eram um laboratório de troca de material. Ele me ensinou a ver a arte onde eu só via registro; eu, talvez, o ensinei a ter mais paciência com o tempo do povo. Éramos dois arautos tentando dar voz a um gigante mudo.


SuperPauta: Se precisasse escolher uma única lenda para resumir a alma, o medo e a esperança brasileira, qual seria e por quê?

Câmara Cascudo: Escolheria o Saci-Pererê. Ele é a própria contradição nacional. É a fúria e o riso; o malandro e o guardião da mata; a velocidade do redemoinho e a solidão da floresta. Ele não é bom nem mau, é necessário. O Saci resume nossa capacidade de ser caóticos e, ao mesmo tempo, de encontrar uma ordem mágica no meio da bagunça.

 

SuperPauta: Que prato o senhor preparava, com suas próprias mãos, para receber amigos ilustres?

Câmara Cascudo: (Abre um sorriso afetuoso) Meu filho, eu não era cozinheiro, era um espectador faminto da cozinha! A mesa do Solar era regida sob o comando de Dona Dáhlia. O que servíamos era a simplicidade autêntica do nosso Nordeste. Como cronista da História da Alimentação no Brasil, eu lhe digo que o prato era menos importante do que o ingrediente principal: a conversa, pois a mesa era um lugar onde a história oral podia, por fim, se sentar.

 

SuperPauta: Conte-nos uma anedota, um equívoco curioso ou cômico que o senhor viveu em pesquisa de campo. Onde a ficção da lenda encontrou a realidade da poeira?

Câmara Cascudo: Uma vez, no interior, eu buscava uma variante do conto da "Princesa Encantada". Após longas horas de conversa, o camponês me disse: "Sim, Doutor, mas a Princesa só aparece em noite de lua cheia, e o senhor não está na época certa." Eu, com toda minha erudição, havia me esquecido da Regra do Mito. Eu tinha que respeitar o calendário da lenda. Voltei para Natal de mãos vazias, mas com a lição de que o tempo do pesquisador é irrelevante para a soberania do Folclore.

 

SuperPauta: O estudioso de mitos e agouros, que mapeou o medo, acreditava em alguma superstição pessoal?

Câmara Cascudo: Acreditar é uma palavra pesada. Digamos que eu respeitava as regras do invisível. Eu jamais passaria por baixo de uma escada. Não por medo da escada, mas por respeito à crença. O Folclore me ensinou que o mundo não é só o que eu vejo, mas o que milhões de pessoas acreditam que ele seja. Isso é mais poderoso do que qualquer prova científica.

 

SuperPauta: Qual foi a maior dificuldade física, o desafio hercúleo, que o senhor enfrentou para registrar uma tradição que estava prestes a se calar?

Câmara Cascudo: A maior dificuldade era a distância e o transporte. Não havia estradas. Era a poeira, o calor, os dias em lombo de burro ou as esperas de semanas por uma canoa. Mas o hercúleo mesmo era ganhar a confiança. O povo desconfia do papel, da caneta. O desafio era provar que eu não era um espião ou um ladrão de histórias, mas um guardador de memórias.

 

SuperPauta: Qual foi sua alegria mais simples, o instante de vida mais guardado, que não teve nada a ver com livros ou prêmios?

Câmara Cascudo: (O olhar se ilumina) Ver minha esposa, Dona Dáhlia, sorrindo na janela, sabendo que eu estava em casa. A base familiar é o meu Folclore mais precioso.

 

SuperPauta: Como o senhor via o uso político do Folclore para idealizar um Brasil “sem problemas”, ignorando a fome e a desigualdade?

Câmara Cascudo: Eu sempre desconfiei do folclore transformado em vitrine. A festa junina pode ser alegria legítima, mas não deve servir de cortina para a seca. Meu ofício foi mostrar o Brasil inteiro: tanto o balão aceso quanto a panela vazia. A análise podia ser conservadora em política, mas não podia ser cega na descrição.

 

SuperPauta: Lampião: é mito, herói trágico, ou uma invenção social, uma força da natureza que o sertão precisava parir?

Câmara Cascudo: Lampião é o mito que o sertão pariu por desespero. Ele começou como homem, terminou como entidade. Não é herói nem bandido, mas a correção violenta que o povo encontrou para a falência do Estado. Sua história é recontada porque ele provou que, mesmo no mais árido, o povo pode criar um Rei, com seu próprio código de honra e crueldade. Ele é a nossa resposta trágica ao Rei Arthur.

 

SuperPauta: O senhor, com seu perfil discreto, como lidava com críticas, invejas e disputas acadêmicas?

Câmara Cascudo: Eu me retirava para os meus livros. O Folclore é atemporal; a disputa acadêmica é moda. Eu não escrevia para o aplauso da semana, mas para a memória do século. A melhor resposta à crítica é a permanência da obra. E no mais, eu deixava que o vento Sul levasse a poeira.

 

SuperPauta: Como o senhor se esforçou para registrar a contribuição africana e indígena, evitando o viés do colonizador, que costuma apagar o nome do povo?

Câmara Cascudo: O método era a escuta sem julgamento. Eu buscava a fonte viva, não a interpretação do padre ou do senhor de engenho. Eu entendia que o sincretismo não era uma mistura, mas uma resistência inteligente. A Capoeira não é uma dança; é uma luta que se fantasia. Eu tentei dar ao Catimbó, ao Jongo, e às lendas indígenas o protagonismo que a academia lhes negava.

 

SuperPauta: Por que a vida floresce de forma tão rica — em cultura e sabedoria — justamente onde o chão é mais árido e a vida, mais difícil?

Câmara Cascudo: Porque a necessidade é a mãe da invenção. A dificuldade obriga o povo a ser criativo, a rir para não chorar, a criar a lenda da fortuna escondida para suportar a miséria do presente. O Nordeste não tem recursos fáceis, então ele usa o recurso mais abundante: a imaginação. O Folclore é o nosso oásis mental.

 

SuperPauta: Qual tradição, qual costume secular, o senhor viu desaparecer e o deixou profundamente melancólico?

Câmara Cascudo: A arte da quietude e da conversa lenta. O costume de sentar na calçada, sem pressa, sem o ruído do rádio, apenas esperando a lua e contando a mesma história pela centésima vez. Essa quietude morreu para a pressa. A tradição que se perde é a da paciência com o tempo.

 

SuperPauta: A internet é o novo povo, onde as histórias se multiplicam, ou o túmulo da tradição oral, onde a história morre rápido?

Câmara Cascudo: A Internet é um Oceano de Informação onde a Memória é rasa. As histórias se multiplicam na velocidade do meme, mas a profundidade da raiz é sacrificada. O Folclore exige tempo para criar raízes, para ser acreditado. O novo povo está criando novos mitos, sim (as "fake news", como as chamam, são prova disso), mas falta o peso do tempo para que se tornem lenda.

 

SuperPauta: Como o senhor interpretaria as "fake news", essas novas lendas de velocidade instantânea, à luz da sua "Geografia dos Mitos"?

Câmara Cascudo: As "fake news" são os mitos de nosso tempo, nascidos da desconfiança e do desejo de acreditar no irracional. Elas têm a mesma estrutura do boato e da lenda: uma história com começo, meio e moral, que explica o inexplicável. A diferença é que a lenda antiga era oral e demorava; a lenda moderna corre no fio elétrico e morre no mesmo dia. Mas a função é a mesma: dar sentido ao caos.

 

SuperPauta: Qual é a grande lenda urbana da nossa época? O mito da sustentabilidade? O herói da tecnologia?

Câmara Cascudo: A grande lenda urbana é a perfeição inatingível. Hoje inventaram um tipo perigoso: o homem que precisa ser feliz e produtivo o tempo todo. É um mito cruel, porque é impossível de se cumprir. O herói da tecnologia (o CEO genial) é o nosso novo São Jorge, mas ele não mata o dragão, ele vende a ilusão de que o dragão pode ser controlado por um aplicativo.

 

SuperPauta: O Brasil ainda ensina o Folclore como deveria? Ou ele é tratado apenas como uma matéria pitoresca de calendário?

Câmara Cascudo: Ainda é tratado como matéria de calendário, infelizmente. O Folclore não deveria ser ensinado apenas na Semana da Pátria, mas como a gramática da identidade. Deveria ser a lente pela qual se lê a História, a Literatura e a Geografia. Falta ao ensino a paixão pela raiz.

 

SuperPauta: O maior risco para a cultura popular hoje é a globalização ou o desinteresse do próprio brasileiro por sua história?

Câmara Cascudo: O maior risco é o desinteresse interno. A globalização é uma força da natureza; podemos nos defender dela se soubermos quem somos. Mas o brasileiro que tem vergonha da sua avó, do seu sotaque e da sua comida é o maior agente de destruição cultural.

 

SuperPauta: A Inteligência Artificial (IA), essa máquina de catalogar e criar, poderia, um dia, inventar um Folclore crível?

Câmara Cascudo: A IA pode catalogar, pode imitar, pode até criar contos. Mas ela não pode acreditar. O Folclore exige o ingrediente humano essencial: o medo irracional, a esperança desesperada, o erro que gera a lenda. A IA pode gerar a forma do mito, mas nunca a função da alma.

 

SuperPauta: O futebol é a nova mitologia brasileira, com seus deuses, rituais e sacrifícios?

Câmara Cascudo: É a religião cívica do brasileiro. Tem seus santos (os jogadores), seus milagres (os gols no último minuto), seus rituais (a camisa, o hino) e seu sacrifício (a derrota que lava a alma). O futebol é a lenda viva onde o povo projeta sua fé mais sincera.

 

SuperPauta: O que a velhice e o recolhimento ensinaram que o jovem Luís da Câmara não sabia sobre a essência do tempo?

Câmara Cascudo: O jovem Luís era apressado, queria catalogar o mundo antes que ele acabasse. A velhice me ensinou que o tempo do Folclore não é cronológico. A essência do tempo é que tudo que foi, continua sendo, de outra forma. As lendas não morrem, elas apenas mudam de endereço.

 

SuperPauta: Para encerrar este encontro, qual o último conselho do guardião das histórias ao homem contemporâneo que esqueceu de olhar para o próprio chão e de ouvir a voz de sua avó?

Câmara Cascudo: (Pousa a mão sobre o livro e olha fixamente) Meu filho, o conselho é simples e difícil: "Duvide do que lhe dizem, mas jamais duvide do que lhe contam." Olhe para o seu chão. Antes de ir buscar o céu ou o estrangeiro, procure a lenda que dorme debaixo da sua casa. É ali que reside o seu maior tesouro, a sua única bússola. Se você não sabe de onde veio, qualquer vento te leva.