Encontros Impossíveis
O guardião das histórias do Brasil
“Nem mesmo Deus tem o poder para modificar o Passado” — Luís da Câmara Cascudo
A
casa da Avenida Câmara Cascudo, o solar que hoje abriga o Instituto Ludovicus,
flutua em um éter sereno. Não é o cheiro de um museu, mas de poeira antiga e
cajuína fresca, misturado ao sal marinho que teima em entrar pelas janelas.
Mestre Cascudo nos recebe em uma poltrona de couro, cercado por milhares de
livros que parecem não apenas guardá-lo, mas escutá-lo. Sua figura é calma, as
mãos repousam sobre uma cópia já amarelada do "Dicionário do Folclore
Brasileiro", e seus olhos têm a placidez de quem já viu todos os mitos
nascerem e morrerem. O tempo, ali, parece ter a textura da areia, escorrendo
lento.
Este encontro é uma imersão na identidade brasileira. Percorremos a trilha de sua infância no Rio Grande do Norte, a teimosia de ser intelectual no Nordeste e a épica solidão de sua pesquisa, feita por cartas e viagens hercúleas. Mestre Cascudo reflete sobre o preço invisível de catalogar a alma de uma nação, o destino do Folclore na era do meme e da Inteligência Artificial, e o eterno fascínio por figuras como Lampião. Ele nos oferece, por fim, o conselho do guardião das histórias ao homem moderno, que esqueceu de olhar para o próprio chão.
SuperPauta: Mestre, já que falamos de heranças, clubes e raízes, queria aproveitar esse espírito de pertencimento para dar um passo atrás no tempo. Antes do ABC e do América existirem, existia a sua cidade enquanto menino. A Natal que lhe formou. Que lembranças lhe chegam primeiro quando o senhor volta à infância?
SuperPauta: Que tessitura
onírica tinha a Natal da sua infância? Que cheiro de mangue, que cor de areia e
que tom de mar moldaram aquele menino, transformando-o no primeiro cartógrafo
da alma brasileira?
Câmara Cascudo: (Sereno, olhar
distante) Ah, meu filho, a Natal de menino tinha a textura da areia grossa e o
ritmo do vento Sul. Não era uma cidade, era um corpo. Cheirava a pescado e flor
de mangue pela manhã, a café forte e a maresia ao meio-dia. A cor... a cor era
a do ocre do barro e o azul ingênuo da água que víamos do Potengi. O som era a
fala lenta, o ruído dos tamancos na calçada e as histórias murmuradas nas
noites de lua. Aquele menino não foi moldado pela História dos livros, mas pela
paciência da água que insiste em bater na praia. Fui feito de terra e de lenda.
SuperPauta: Sua casa era
um viveiro de histórias, um arquivo vivo. Que marcas, que conselhos silenciosos
seus pais, o Coronel Cascudo e a Dona Ana, deixaram gravados em sua curiosidade
insaciável?
Câmara Cascudo: Meu pai, o Coronel (risos, referindo-se ao título honorário da Guarda Nacional), me ensinou o rigor da catalogação e o apreço pelo dever. Minha mãe, Dona Ana, me deu a chave do Arquivo da Emoção. Ela lia de tudo, da Bíblia aos romances de capa e espada, e me mostrou que a verdade da vida pode estar em qualquer lugar, não apenas nas gavetas do cartório. O conselho silencioso era a observação. Eles me fizeram entender que o mundo é vasto, mas a alma humana cabe inteira em um pedaço de chão.
SuperPauta: Qual foi a primeira lenda, o primeiro sussurro de feitiçaria ou medo, que o fez parar e pensar: "Existe um mundo subterrâneo aqui"?
Câmara Cascudo: (Pausa, como
se estivesse revivendo o medo) Foi o medo da Mão de Deus. Não o Deus dos
altares, mas a lenda de algo vasto, invisível e punitivo que nos vigiava. Eram
as histórias do boi-tatá e do lobisomem contadas por minha babá, que me
mostravam que a Noite não é só escuridão; é uma outra Realidade, povoada.
Percebi que o povo não temia a lei, mas temia a lenda. Naquele momento, entendi
que a ficção é o motor moral da História.
SuperPauta: O senhor se
formou em Direito, mas o destino, o fado, o empurrou para o Folclore. Houve um
instante de "conversão", um raio que o fez abandonar a lei dos homens
pela lei do povo?
Câmara Cascudo: (Sorri
levemente) Não foi um raio, foi uma paciência de formiga. O Direito ensina a
ver o mundo pelo papel; o Folclore me obrigou a vê-lo pelo chão. Minha
conversão se deu ao notar que, por mais justas que fossem as leis de Rui
Barbosa, elas não davam conta de explicar por que um homem acendia uma vela
para a Mãe D'Água ou por que tinha medo do Saci. A lei é o que deve ser; o
Folclore é o que é, no profundo e irracional. O Direito me deu ofício e
salário; o Folclore, vocação. A pena continuou assinando petições e pareceres,
mas o coração passou a tomar notas de rezas, medos e promessas. Digamos que eu
não abandonei a lei: apenas descobri que o regulamento verdadeiro do Brasil
estava no que o povo fazia fora do Código.
SuperPauta: Ser
intelectual no Nordeste do começo do século XX era um ato de heroísmo eremita
ou de teimosia amorosa?
Câmara Cascudo: Era, acima de
tudo, um ato de localismo obstinado. Éramos teimosos por amor ao nosso chão. O
eixo cultural girava no Sul; publicar e ser lido aqui era remar contra a maré.
Havia um isolamento físico, claro, mas este eremitério nos forçou a olhar para
dentro, para o quintal. Fomos obrigados a criar uma Universidade da Janela,
onde a aula era dada pelo pescador, pela rendeira, e o texto sagrado era a vida
na feira. Sem essa teimosia, teríamos copiado a cultura de fora, e eu não teria
tido a chance de catalogar a nossa.
SuperPauta: Mestre, o
sobrenome "Cascudo" — que se tornou sua marca e evoca a casca, a
dureza, a persistência — tem origem na sua família. Qual é a lenda ou a
história familiar por trás deste nome tão singular? Ele não seria, em si mesmo,
um batismo folclórico, que predestinou o homem à sua obra?
Câmara Cascudo: (Acaricia a
capa do Dicionário, com um sorriso de sabedoria) Meu filho, o nome é uma
teimosia que vem de longe, e não é do peixe ou do escaravelho; é da política.
Meu avô paterno era um dos chefes do partido Saquarema — o partido Conservador
— e ganhou o apelido de Cascudo por ser inflexível, duro nas posições. O
Saquarema, aqui no Rio Grande do Norte, era conhecido como o "Partido
Cascudo". Aquele homem se tornou "O Velho Cascudo". Como eu era
filho único, e meu pai era o único a usar o nome, havia o risco de que esse
título de obstinação desaparecesse. Eu o adotei para que essa persistência não
se perdesse. E, veja bem, o nome casou perfeitamente com a minha natureza. Fui
uma criança enfermiça, com pulmões suspeitos, forçado a uma vida reclusa. Eu
não corri na rua, nunca subi em árvores, minhas recordações de infância são de
dentro. A vida sedentária me deu a casca da observação; o nome me deu a casca
da obstinação. A teimosia do político se transformou na persistência do
folclorista, que tinha de ficar quieto e escutar.
SuperPauta: Quem era o grande contador de histórias da sua infância — a cozinheira, o pescador, o viajante — cujo eco ainda ressona na sua escuta?
Câmara Cascudo: (Fecha os
olhos) Era o povo anônimo. Mas se devo citar uma voz, cito as "tias"
que viviam ao redor, senhoras da sociedade que guardavam, sem saber, o
repertório de contos europeus e africanos passados pela escravidão. Eram as
intermediárias culturais. Elas me ensinaram que a História do Brasil não está
só nos livros da Torre do Tombo, mas no sussurro entre o fogão e a rede.
SuperPauta: O senhor uniu
o “saber de dentro” (o popular, o vivido) ao “saber de fora” (o erudito, o
catalogado). Onde, nesse campo de forças, eles se abraçam na sua obra?
Câmara Cascudo: Eles se
abraçam na bibliografia. O saber de dentro é a minha fonte primária; o saber de
fora é a minha ferramenta de respeito. Quando eu catalogava um conto popular,
eu o tratava com a mesma seriedade que um texto de Aristóteles. Eu dava ao povo
o status acadêmico que a academia negava. Minha obra é um casamento onde a
noiva é a sabedoria simples e o noivo é o rigor científico. Não podem viver
separados.
SuperPauta: O senhor
provou que se pode ser universal sem abandonar Natal como porto de origem,
tornando o Rio Grande do Norte uma espécie de bússola do mundo. Essa
imobilidade física foi, na verdade, uma viagem astral?
Câmara Cascudo: (Risos) Uma
excelente imagem! Sim, a imobilidade foi a chave. Onde o erudito via limitação,
eu vi profundidade. Ao invés de cobrir mil léguas, eu cavei um palmo quadrado.
Quanto mais fundo eu ia em Natal, mais eu encontrava o mundo: a África na
culinária, Portugal nas festas, Roma no Direito. O universal não está na
distância, mas na concentração do olhar. O Folclore me fez viajar por todos os
séculos e continentes, mesmo voltando sempre para a mesma casa, na mesma rua.
SuperPauta: Se hoje temos
a Internet, no seu tempo havia a solidão das cartas e as poeiras do sertão. O
que o senhor teria alcançado com a velocidade do mundo moderno? Ou a lentidão
da pesquisa era, ironicamente, essencial para capturar a alma do tempo?
Câmara Cascudo: O tempo é o
ingrediente secreto, meu amigo. Eu teria alcançado mais material, sem dúvida.
Mas a lentidão era um filtro essencial. A carta não era só um meio; era um
ritual. Exigia paciência, reflexão, e dava tempo para a resposta vir madura,
não urgente. O sertão se revela no passo lento, na conversa demorada, no café
coado em silêncio. A Internet traz a informação, mas talvez mate a intimidade,
o ingrediente principal da pesquisa folclórica.
SuperPauta: O Dicionário
do Folclore Brasileiro não é um livro, mas uma segunda Constituição. Qual foi o
preço invisível, a renúncia pessoal, dessa empreitada monumental?
Câmara Cascudo: O preço foi a
vida fácil. Eu renunciei à vaidade da vida social vazia e à tentação de me
deter em temas fáceis. O Dicionário exigiu uma solidão militante. Foi preciso
abdicar da distração para ouvir os mortos, que eram a minha principal fonte.
Mas a maior renúncia foi talvez a certeza: o Dicionário é, por natureza,
inacabável. É o livro que sempre falta um verbete. A alma de um povo nunca pode
ser completamente catalogada.
SuperPauta: No limiar entre o real e o fabuloso, onde reside a essência do Folclore? É o lugar onde a mentira se torna verdade e a história é escrita pelo desejo do povo?
Câmara Cascudo: É exatamente
onde a Razão se curva. O Folclore é o desejo do povo de corrigir a história, de
dar esperança onde há miséria, ou de dar medo onde a lei falhou. A mentira, no
Folclore, é uma verdade simbólica. Não importa se o Saci existe; importa que o
medo dele ordena o mundo e ensina as crianças a respeitarem a natureza. A
essência está na função do mito, não na sua prova.
SuperPauta: Qual obra
menos conhecida o senhor considera mais íntima, aquela que é quase um diário de
sua própria alma?
Câmara Cascudo: (Leva a mão a
um livro discreto na mesa) Talvez "Civilização e Cultura", ou as
pequenas crônicas reunidas em "Contos Tradicionais do Brasil". Nelas,
o professor cede lugar ao contador. Ali, eu me permiti a ternura, o que o rigor
científico muitas vezes proíbe. A alma não pode ser só fichada; ela precisa ser
contada.
SuperPauta: Em
"História da Alimentação", os ingredientes contam um Brasil profundo.
O que a farinha, o milho e a carne de sol revelam que os livros oficiais de
História, com sua pompa, escondem?
Câmara Cascudo: A mesa é o
verdadeiro mapa da colonização. Os livros oficiais falam de tratados e reis; a
comida fala de fome, adaptação e sincretismo. A farinha revela a herança
indígena; o dendê, a África; o trigo, o colonizador. A carne de sol revela a
engenhoca nordestina de enfrentar a seca com a arte da preservação. A comida é
a História do povo em mastigação, a mais íntima, porque entra em nosso corpo.
SuperPauta: Como
funcionava o seu processo criativo? O senhor era mais o pesquisador que vai a
campo, o leitor voraz ou o observador silencioso, esperando a história se
manifestar?
Câmara Cascudo: Eu era um
mosaico. Primeiro, o leitor voraz, para entender o que já havia sido dito.
Depois, o pesquisador de botas e de cartas, para ouvir o que não estava nos
livros. Mas a chave era o observador silencioso. O folclorista precisa ter
paciência de pescador. Eu me sentava na praça, ouvia a conversa na feira,
esperava o mito se manifestar sem pressa. A história do povo é tímida; se você a
apressa, ela se esconde.
SuperPauta: Por que o senhor dedicou tanto carinho aos Contos Tradicionais do Brasil? A simples narrativa é o nosso maior motor de sobrevivência cultural?
Câmara Cascudo: A narrativa é
o nosso cordão umbilical. O conto tradicional ensina moral, ensina a rir da
tragédia e ensina que o pequeno pode vencer o gigante. Quando o povo perde a
sua capacidade de contar histórias, ele perde a sua memória de resistência.
Sim, a simples narrativa é o motor da sobrevivência. É o que nos lembra quem
somos, antes que o mercado nos diga o que devemos comprar.
SuperPauta: Em sua visão,
a cultura popular deve ser guardada em um museu de vidro, intacta, ou vivida e
transformada na rua, no risco da mudança?
Câmara Cascudo: (Decisivo) O
museu é para os ossos; o Folclore é para o sangue. Ele precisa ser vivido na
rua, transformado, usado. O Folclore que não muda está morto. Minha função foi
registrar o que era para que os novos soubessem o chão que pisavam, mas eles
têm o direito de criar o Folclore do amanhã. A cultura popular é um rio:
precisa correr, mesmo que mude o leito.
SuperPauta: Como separar o
valor antropológico do "pitoresco", esse verniz fácil que o turista e
o explorador aplicam sobre o Nordeste para vender ilusões?
Câmara Cascudo: O pitoresco é
a imagem que agrada ao estrangeiro; o antropológico é a dor e a verdade que não
se vendem. O truque é buscar a função. Se uma dança é feita para pagar promessa
ou aliviar a fome, é antropológica. Se é feita para o turista bater foto e
pagar ingresso, é pitoresca. Eu sempre busquei a raiz da função, o que o povo
faz para se entender e sobreviver, não o que ele faz para ser admirado.
SuperPauta: Qual objeto
comum — um brinquedo de barro, um utensílio de cozinha — o senhor considera um
tesouro antropológico?
Câmara Cascudo: (Pensa) O
Pão-de-Ló. É um bolo simples, quase etéreo, mas revela o desejo português de
trazer a doçura da vida de corte para a vida áspera do Nordeste. É um ato de
resistência gastronômica. E o peão de madeira, que mostra a engenhosidade
infantil em transformar um pedaço de resto em um centro de mundo. A grandeza
está na simplicidade.
SuperPauta: Qual era sua
relação intelectual, para além da correspondência, com Mário de Andrade? Havia
um diálogo de cumplicidade sobre a busca do Brasil?
Câmara Cascudo: Mário era um
amigo de paixão idêntica, mas de método diferente. Ele buscava o Brasil com a
urgência do Modernismo; eu, com a paciência do Historiador. Nossas cartas eram
um laboratório de troca de material. Ele me ensinou a ver a arte onde eu só via
registro; eu, talvez, o ensinei a ter mais paciência com o tempo do povo.
Éramos dois arautos tentando dar voz a um gigante mudo.
SuperPauta: Se precisasse escolher uma única lenda para resumir a alma, o medo e a esperança brasileira, qual seria e por quê?
Câmara Cascudo: Escolheria o
Saci-Pererê. Ele é a própria contradição nacional. É a fúria e o riso; o
malandro e o guardião da mata; a velocidade do redemoinho e a solidão da
floresta. Ele não é bom nem mau, é necessário. O Saci resume nossa capacidade
de ser caóticos e, ao mesmo tempo, de encontrar uma ordem mágica no meio da
bagunça.
SuperPauta: Que prato o
senhor preparava, com suas próprias mãos, para receber amigos ilustres?
Câmara Cascudo: (Abre um
sorriso afetuoso) Meu filho, eu não era cozinheiro, era um espectador faminto
da cozinha! A mesa do Solar era regida sob o comando de Dona Dáhlia. O que
servíamos era a simplicidade autêntica do nosso Nordeste. Como cronista da
História da Alimentação no Brasil, eu lhe digo que o prato era menos importante
do que o ingrediente principal: a conversa, pois a mesa era um lugar onde a
história oral podia, por fim, se sentar.
SuperPauta: Conte-nos uma
anedota, um equívoco curioso ou cômico que o senhor viveu em pesquisa de campo.
Onde a ficção da lenda encontrou a realidade da poeira?
Câmara Cascudo: Uma vez, no
interior, eu buscava uma variante do conto da "Princesa Encantada".
Após longas horas de conversa, o camponês me disse: "Sim, Doutor, mas a
Princesa só aparece em noite de lua cheia, e o senhor não está na época
certa." Eu, com toda minha erudição, havia me esquecido da Regra do Mito.
Eu tinha que respeitar o calendário da lenda. Voltei para Natal de mãos vazias,
mas com a lição de que o tempo do pesquisador é irrelevante para a soberania do
Folclore.
SuperPauta: O estudioso de
mitos e agouros, que mapeou o medo, acreditava em alguma superstição pessoal?
Câmara Cascudo: Acreditar é
uma palavra pesada. Digamos que eu respeitava as regras do invisível. Eu jamais
passaria por baixo de uma escada. Não por medo da escada, mas por respeito à
crença. O Folclore me ensinou que o mundo não é só o que eu vejo, mas o que
milhões de pessoas acreditam que ele seja. Isso é mais poderoso do que qualquer
prova científica.
SuperPauta: Qual foi a
maior dificuldade física, o desafio hercúleo, que o senhor enfrentou para
registrar uma tradição que estava prestes a se calar?
Câmara Cascudo: A maior
dificuldade era a distância e o transporte. Não havia estradas. Era a poeira, o
calor, os dias em lombo de burro ou as esperas de semanas por uma canoa. Mas o
hercúleo mesmo era ganhar a confiança. O povo desconfia do papel, da caneta. O
desafio era provar que eu não era um espião ou um ladrão de histórias, mas um
guardador de memórias.
SuperPauta: Qual foi sua
alegria mais simples, o instante de vida mais guardado, que não teve nada a ver
com livros ou prêmios?
Câmara Cascudo: (O olhar se
ilumina) Ver minha esposa, Dona Dáhlia, sorrindo na janela, sabendo que eu
estava em casa. A base familiar é o meu Folclore mais precioso.
SuperPauta: Como o senhor
via o uso político do Folclore para idealizar um Brasil “sem problemas”,
ignorando a fome e a desigualdade?
Câmara Cascudo: Eu sempre
desconfiei do folclore transformado em vitrine. A festa junina pode ser alegria
legítima, mas não deve servir de cortina para a seca. Meu ofício foi mostrar o
Brasil inteiro: tanto o balão aceso quanto a panela vazia. A análise podia ser
conservadora em política, mas não podia ser cega na descrição.
SuperPauta: Lampião: é
mito, herói trágico, ou uma invenção social, uma força da natureza que o sertão
precisava parir?
Câmara Cascudo: Lampião é o
mito que o sertão pariu por desespero. Ele começou como homem, terminou como
entidade. Não é herói nem bandido, mas a correção violenta que o povo encontrou
para a falência do Estado. Sua história é recontada porque ele provou que,
mesmo no mais árido, o povo pode criar um Rei, com seu próprio código de honra
e crueldade. Ele é a nossa resposta trágica ao Rei Arthur.
SuperPauta: O senhor, com
seu perfil discreto, como lidava com críticas, invejas e disputas acadêmicas?
Câmara Cascudo: Eu me retirava
para os meus livros. O Folclore é atemporal; a disputa acadêmica é moda. Eu não
escrevia para o aplauso da semana, mas para a memória do século. A melhor
resposta à crítica é a permanência da obra. E no mais, eu deixava que o vento
Sul levasse a poeira.
SuperPauta: Como o senhor se esforçou para registrar a contribuição africana e indígena, evitando o viés do colonizador, que costuma apagar o nome do povo?
Câmara Cascudo: O método era a
escuta sem julgamento. Eu buscava a fonte viva, não a interpretação do padre ou
do senhor de engenho. Eu entendia que o sincretismo não era uma mistura, mas
uma resistência inteligente. A Capoeira não é uma dança; é uma luta que se
fantasia. Eu tentei dar ao Catimbó, ao Jongo, e às lendas indígenas o
protagonismo que a academia lhes negava.
SuperPauta: Por que a vida
floresce de forma tão rica — em cultura e sabedoria — justamente onde o chão é
mais árido e a vida, mais difícil?
Câmara Cascudo: Porque a
necessidade é a mãe da invenção. A dificuldade obriga o povo a ser criativo, a
rir para não chorar, a criar a lenda da fortuna escondida para suportar a
miséria do presente. O Nordeste não tem recursos fáceis, então ele usa o
recurso mais abundante: a imaginação. O Folclore é o nosso oásis mental.
SuperPauta: Qual tradição,
qual costume secular, o senhor viu desaparecer e o deixou profundamente
melancólico?
Câmara Cascudo: A arte da
quietude e da conversa lenta. O costume de sentar na calçada, sem pressa, sem o
ruído do rádio, apenas esperando a lua e contando a mesma história pela
centésima vez. Essa quietude morreu para a pressa. A tradição que se perde é a
da paciência com o tempo.
SuperPauta: A internet é o
novo povo, onde as histórias se multiplicam, ou o túmulo da tradição oral, onde
a história morre rápido?
Câmara Cascudo: A Internet é
um Oceano de Informação onde a Memória é rasa. As histórias se multiplicam na
velocidade do meme, mas a profundidade da raiz é sacrificada. O Folclore exige
tempo para criar raízes, para ser acreditado. O novo povo está criando novos
mitos, sim (as "fake news", como as chamam, são prova disso), mas
falta o peso do tempo para que se tornem lenda.
SuperPauta: Como o senhor
interpretaria as "fake news", essas novas lendas de velocidade
instantânea, à luz da sua "Geografia dos Mitos"?
Câmara Cascudo: As "fake
news" são os mitos de nosso tempo, nascidos da desconfiança e do desejo de
acreditar no irracional. Elas têm a mesma estrutura do boato e da lenda: uma
história com começo, meio e moral, que explica o inexplicável. A diferença é
que a lenda antiga era oral e demorava; a lenda moderna corre no fio elétrico e
morre no mesmo dia. Mas a função é a mesma: dar sentido ao caos.
SuperPauta: Qual é a
grande lenda urbana da nossa época? O mito da sustentabilidade? O herói da
tecnologia?
Câmara Cascudo: A grande lenda
urbana é a perfeição inatingível. Hoje inventaram um tipo perigoso: o homem que
precisa ser feliz e produtivo o tempo todo. É um mito cruel, porque é
impossível de se cumprir. O herói da tecnologia (o CEO genial) é o nosso novo
São Jorge, mas ele não mata o dragão, ele vende a ilusão de que o dragão pode
ser controlado por um aplicativo.
SuperPauta: O Brasil ainda
ensina o Folclore como deveria? Ou ele é tratado apenas como uma matéria
pitoresca de calendário?
Câmara Cascudo: Ainda é
tratado como matéria de calendário, infelizmente. O Folclore não deveria ser
ensinado apenas na Semana da Pátria, mas como a gramática da identidade.
Deveria ser a lente pela qual se lê a História, a Literatura e a Geografia.
Falta ao ensino a paixão pela raiz.
SuperPauta: O maior risco
para a cultura popular hoje é a globalização ou o desinteresse do próprio
brasileiro por sua história?
Câmara Cascudo: O maior risco
é o desinteresse interno. A globalização é uma força da natureza; podemos nos
defender dela se soubermos quem somos. Mas o brasileiro que tem vergonha da sua
avó, do seu sotaque e da sua comida é o maior agente de destruição cultural.
SuperPauta: A Inteligência
Artificial (IA), essa máquina de catalogar e criar, poderia, um dia, inventar
um Folclore crível?
Câmara Cascudo: A IA pode
catalogar, pode imitar, pode até criar contos. Mas ela não pode acreditar. O
Folclore exige o ingrediente humano essencial: o medo irracional, a esperança
desesperada, o erro que gera a lenda. A IA pode gerar a forma do mito, mas
nunca a função da alma.
SuperPauta: O futebol é a
nova mitologia brasileira, com seus deuses, rituais e sacrifícios?
Câmara Cascudo: É a religião
cívica do brasileiro. Tem seus santos (os jogadores), seus milagres (os gols no
último minuto), seus rituais (a camisa, o hino) e seu sacrifício (a derrota que
lava a alma). O futebol é a lenda viva onde o povo projeta sua fé mais sincera.
SuperPauta: O que a
velhice e o recolhimento ensinaram que o jovem Luís da Câmara não sabia sobre a
essência do tempo?
Câmara Cascudo: O jovem Luís
era apressado, queria catalogar o mundo antes que ele acabasse. A velhice me
ensinou que o tempo do Folclore não é cronológico. A essência do tempo é que
tudo que foi, continua sendo, de outra forma. As lendas não morrem, elas apenas
mudam de endereço.
SuperPauta: Para encerrar
este encontro, qual o último conselho do guardião das histórias ao homem
contemporâneo que esqueceu de olhar para o próprio chão e de ouvir a voz de sua
avó?










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