sábado, 1 de fevereiro de 2014

Entrevista: Carlos Gurgel

“MAIS QUE POETA”

Foto: Roberto Fontes
Foi no final de uma tarde de dezembro que eu e o meu xará Roberto Fontes ocupamos uma mesa de canto no “Between Coffee & Deli House” para conversar com o poeta Carlos Gurgel, que recentemente lançou o livro “Mais que amor”. Durante aproximadamente uma hora e meia, Gurgel esboçou um resumo da sua vida. Em nenhum momento o poeta se esquivou das perguntas. A não ser quando lhe foi indagado a respeito de sua escolha como “o homem mais bonito de Natal”, ainda nos tempos em que ele foi aluno do Marista. Sobre os demais assuntos, Gurgel falou, sem censuras. Recordou os primeiros “alumbramentos” com a poesia, ocorridos na época em que ele era conduzido pelas mãos do pai, Deífilo, por alguns pontos da cidade. Falou da rebeldia juvenil, das viagens com as drogas (que tiveram começo, meio e fim), das experiências em outros estados, dos projetos em Natal (como o Festival de Artes do Forte e o Bendita Poesia), de sua produção literária, dos seus sonhos e inconformismos... A entrevista revela um Gurgel muito além do que apenas um poeta potiguar. (robertohomem@gmail.com)


SUPERPAUTA – Você nasceu aqui mesmo, em Natal?
GURGEL - Meu nome é Carlos Roberto de Oliveira Gurgel. Oliveira por parte da minha mãe, Zoraide, e Gurgel por parte do meu pai, Deífilo. Nasci em Natal, na Maternidade Januário Cicco, no dia 5 de maio. A família morava na Ezequias Pegado, uma rua antes da Escola Doméstica. Lá era muito tranquilo. Natal era uma vila, há cinquenta e poucos anos atrás. Na esquina da nossa rua tinha uma vacaria. Todo dia de manhã, papai nos levava para tomar leite. Dessa época vem os primeiros alumbramentos com a poesia. Ele também ia conosco para a Lagoa Manoel Felipe. Ainda não era a Cidade da Criança. Ficávamos passeando ao redor da lagoa. Depois de voltar para casa, papai nos balançava na rede enquanto declamava Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto...
SUPERPAUTA – E a sua mãe?
GURGEL – Mamãe sofreu muito com a minha rebeldia. Papai tentava contemporizar um pouco, mas ela ficava preocupada, porque sempre fui muito arredio. Lembro que - quando tinha de 15 para 16 anos - peguei a mochila, botei nas costas e saí “on the road”. Não disse nada a eles. Esse tipo de atitude deixava mamãe muito inquieta. Lembro um tempo em que ela não sabia como dialogar comigo. Papai é quem estabelecia uma conversa a respeito dessa minha diáspora, desse “outsider” todo. Apesar dessas dificuldades, fazendo hoje uma releitura avalio que foi muito precioso esse processo todo. Foi a partir daí que criei uma forma muito singular de observar as coisas. Toda a minha trajetória foi como uma sementezinha que depois começou a florescer e hoje está sedimentada em um turbilhão de jardins nos quais me vejo dentro. São jardins de uma série de inquietações e observações do que percebo e de tudo. Sou um observador das coisas. Essa minha característica começou a se manifestar mais forte a partir da pré-adolescência.
SUPERPAUTA – A timidez era outra característica sua?
GURGEL – Eu era muito tímido! Lembro que quando meus pais faziam confraternizações, eu permanecia na sala, só observando. Eles ficavam na varanda da casa, ao lado de convidados como Newton Navarro, Dorian Gray, Celso da Silveira, Berilo Wanderley... Conversavam, declamavam poemas, brincavam. Vendo aquilo, eu entrava em um processo de alucinação total, porque era uma coisa mágica. Até que um dia papai me chamou: “Carlos, traga para o pessoal ver aqueles poemazinhos que você escreve”. Fiquei mudo e pensei: “poxa, vou falar para esse pessoal as besteirazinhas que eu escrevo?”. Mas, terminei indo. Eu tinha entre dez e onze anos de idade. Foi nesse período que comecei a conhecer as drogas. Usei drogas dos onze anos aos trinta.
SUPERPAUTA – Antes de entrarmos nesse capítulo das drogas, fale um pouco mais sobre a sua mãe.
GURGEL – Seu nome completo é Zoraide de Oliveira Gurgel. Ela também é daqui de Natal. Casou com papai e foi mãe de nove filhos. Era para ser dez, mas um faleceu. Mamãe foi um fiel escudeiro do meu pai, se dedicou à vida de dona-de-casa. É uma pessoa extremamente tenaz até hoje. Além do trabalho doméstico, ela era um amparo para o meu pai. Conviveram durante 61 anos. Nos preocupamos muito quando meu pai partiu. Não sabíamos se ela superaria a ausência dele. Depois de alguns momentos complicados, finalmente ela conseguiu se reorganizar. Mamãe é uma pessoa de uma docilidade e de uma paciência enorme com relação às coisas. É extremamente compreensiva. Sendo companheira do meu pai, sendo esposa de Deífilo, não poderia ser de outra forma. Hoje ela salvaguarda o nome do meu pai e tenta fazer com que essa tarefa seja um exercício diário para todas as pessoas que vivem no seio da nossa casa.
SUPERPAUTA – Qual a visão que você tem do seu pai?
GURGEL – Uma pessoa do povo, extremamente humana. Fico emocionado quando falo sobre ele. Meu pai se doou pra tudo. Fazia mais pelos outros do que para si próprio. Na Fundação José Augusto, deixava de tratar de assuntos importantes para ele mesmo em seu trabalho, e ia se dedicar aos outros.  Meu pai era assim: completamente desprendido. Era o oposto deste mundo onde vivemos, que é muito espinhoso, cheio de truculência e pernosticismo.  Sua simplicidade e honestidade eram absurdas. Guardo isso para todo o sempre.
SUPERPAUTA – Em algum momento você pensou em seguir o caminho dele na área do folclore e da pesquisa?
GURGEL – Não. Apesar de eu ter curiosidade com relação ao trabalho dele, minha história foi em outra esfera, mais em um plano que transcendia um pouco essa coisa do chão e do povo. Eu estava mais voltado para a inquietação dessa contemporaneidade que a gente vive. Essa é a minha manufatura de poesia: eu exponho a ferida, não tenho nenhuma contemplação. Simplesmente escrevo. Isso que a gente vive é uma desumanidade, transcende qualquer compreensão mesmo. O desrespeito, o despreparo em todos os segmentos... Eu sou fruto disso, eu sou isso. Também tenho as minhas falhas e podridões...
SUPERPAUTA – Vamos voltar à questão das drogas. O que o levou, tão novo, a esse mundo?
GURGEL - Minha cabeça sempre foi aberta a essas coisas. Juntou a minha curiosidade em querer descobrir, com o fato de que ao meu redor essas coisas estavam pulsando. Estava ao meu entorno e eu queria provar, experimentar. Eu tinha onze anos de idade. Foi um vendaval, era um processo de uma rapidez enorme. Mergulhei nisso tudo enquanto produzia uns textos meio Kerouac, meio sem ponto, como se fosse um vômito verbal. Só que as drogas o deixam refém.
SUPERPAUTA – Por que você resolveu abandonar as drogas?
GURGEL – Não sei até hoje como saí daquilo. Quer dizer, saí por mim mesmo.  Deu em mim como se fosse uma clarividência, uma revelação.
SUPERPAUTA – Foi uma “bad trip”?
GURGEL - O contrário: foi uma “good trip”. Fiquei um mês dentro do quarto. Lá em casa todos sabiam que eu era poeta e sonhador. Quando terminou o mês, fui dar um mergulho na praia. Depois disso, nunca mais quis saber de nada. O problema é que sempre fui muito compulsivo. O que viesse na minha frente, eu provava. Eu estava já na beira do despenhadeiro. Até que, por vontade própria e com extrema determinação e persistência, deixei. Foi como uma linha ferroviária: você pode mudar o trilho e conduzir o trem para outro percurso completamente diferente do anterior. Fiz isso com a minha vida. Não foi fácil.
SUPERPAUTA – Com qual idade você começou a documentar, via escrita, suas observações a respeito da vida?
GURGEL – Eduardo Alexandre Dunga diz que foi quando eu tinha uns oito anos de idade, mesma época em que a gente se conheceu no Marista. O certo é que alguns anos depois eu passei a sentir necessidade de transcrever minhas impressões para o papel, como um testemunho da vida. De repente aquilo passou a fazer parte do meu dia-a-dia. Sinto necessidade de escrever sempre. Durante a madrugada é o meu período preferido. Durmo tarde, é nessa hora em que eu mergulho mais, penetro mais em mim mesmo.
SUPERPAUTA – Você foi um bom aluno? O que lhe interessava no colégio?
GURGEL – Até que sim, mas muito indisciplinado. Fui aluno do Marista durante nove anos, aí fui expulso. Eu não me enquadrava. Mesmo assim, eu gostava dos finais de semana em que armávamos uma barraca para acampar perto do campo de futebol, lá no Marista. Fui goleiro da seleção do Marista e apesar de tudo, passava por média. Me interessava mais por Português. Também fiz algumas amizades que até hoje permanecem e foram importantes para mim.
SUPERPAUTA – A leitura interessava?
GURGEL – Eu lia muito: Guimarães Rosa, Machado de Assis, Murilo Mendes, Ferreira Gullar e a literatura “beat”... Gostava muito de Glauber Rocha e do poeta Joaquim Cardoso. Tive um diálogo grande com Miguel Cirillo, figura que tinha conhecimento profundo sobre literatura.  Tinha uma loja esotérica no centro da cidade, “O Templário”. Eu ia muito lá. Li também coisas orientais, como Krishnamurti. Gostava muito de Allen Ginsberg, Alan Watts... Daí começou também o meu interesse por cinema. Filmes antológicos me sinalizaram que o cinema é uma arte extremamente bela, inquietante e desbravadora. Filmes como “Fahrenheit 451”, “Apocalypse Now”, “Dow by low” e “Zabriskie Point” realmente transcendem.
SUPERPAUTA – Em qual circunstância você resolveu lançar seu primeiro livro?
GURGEL – Meu primeiro trabalho foi coletivo. Enoch Domingos, da TV-U, me chamou. Não lembro exatamente como aconteceu. Acho que foi em um dos encontros do Cineclube Tirol. Devo ter levado alguns textos para o pessoal ler e Enoch leu também. A partir daí saiu o convite. O nome do livro é “Akó”, termo que em tupi-guarani significa braguilha. Não lembro exatamente, mas sei que tem textos meus, de Enoch e de mais duas pessoas. A repercussão foi quase nenhuma, porque Natal, no final dos anos 1960, era uma aldeiazinha. Até hoje é. Talvez seja ainda pior hoje, pois a cidade se traveste de uma coisa meio contemporânea e modernosa, mas traz na raiz algo extremamente provinciano. A Natal daquela época eu adorava. Como sempre dormi tarde, costumava sair pelas ruas da cidade caminhando. Descia para a Praia dos Artistas... Quase de manhã eu voltava para casa. O fato de eu ser notívago reforçou mais quando passaram a me convidar para ser discotecário de boate. Fui discotecário da “La Prision”, da “Vela” e de outra boate que tinha em Ponta Negra. Aí foi que troquei mesmo o dia pela noite. Eu levava a minha própria coleção de discos.
SUPERPAUTA – O que você costumava tocar?
GURGEL – Nina Hagen, Led Zeppelin, Lennon, Stones, Creedence... Não era o termo da
época, mas era como um bate-estaca. Eu fazia de propósito. O pessoal bebia, e eu fazia questão de botar um som para amplificar aquela loucura. No outro dia, quando algum deles encontrava comigo, comentava: “mas Gurgel, que doideira!”. Eu respondia: “da próxima vez vai ser mais ainda!”.
SUPERPAUTA – Você escuta esse povo até hoje? Quem são seus artistas de cabeceira?
GURGEL – Claro! Eu escuto também muita gente. Do Brasil, por exemplo, eu gosto muito de Stella Campos, Apanhador Só, José Miguel Wisnik, Walter Franco, Jards Macalé. Para mim, é um artista raro. Gosto muito do seu sarcasmo e de sua “mise en scène” proposital. Ele tem aquela postura, aquela voz, aquele jeito...  A lista se estende: tem um grupo de Brasília, o Satanique Samba Trio. Também tem Vitor Ramil, Letuce... Sou fã incondicional de Ava Rocha, Ivan Santos, Graveola, Jussara Silveira, Cidadão Instigado, O Jardim das Horas, Siba e Isaar. Não posso deixar de citar o Leonard Cohen e o Tom Waits. Escuto o pessoal dos anos 1970, como Lou Reed e Cat Stevens. Recordo um lançamento que marcou: Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Uma loucura, aquilo ali. Fui à gravadora Rozenblit e peguei duas cópias, mas não sei onde foi parar. Esse disco é uma viagem, eu ficava maravilhado. Paêbirú  foi um som que marcou demais. E também tem o som dos poetas contemporâneos. Celso Borges, meu amigo poeta do Maranhão, belo o trabalho dele. Tenho também escutado Artur Soares, Liz Rosa, Cabrito, Raul e Alcatéia Maldita, Romildo Soares, Saturnino e o Disco Avoadô.
SUPERPAUTA – Naquela época o disco era valorizado, até porque não era fácil adquiri-lo, seja pelo custo em si ou pela dificuldade de os lançamentos chegarem a Natal. Hoje em dia as gravações estão disponíveis antes mesmo de o disco começar a ser vendido. Talvez por isso não se dê tanto valor.
GURGEL – O fluxo hoje é hipnoticamente intenso. A internet possibilitou esse vendaval, essa enxurrada de coisas que surgem. A tecnologia passou a permitir que você produza gravações e vídeos de boa qualidade em casa. O meu trabalho “Dramática Gramática” - que reúne livro, camiseta, pôster, CD e DVD - foi feito de forma caseira.
SUPERPAUTA – Antes de começarmos a tratar da sua produção literária, fale um pouco sobre suas parcerias musicais.
GURGEL – Tudo começou com o pessoal do “The Functos”, lá do Marista. O grupo era
Foto: Roberto Fontes
Ivanildo, Napoleão, Adroaldo, Luis Neto, Glaucus, João Batista e, depois de certo tempo, Piru. Participamos de vários festivais de música. Em um deles, estava inscrita uma canção com a letra minha: “Missa biológica/Transe comunhão/Sacrossanto”. A ideia do texto, que persiste até hoje, é que as pessoas não estão mais mirando na cruz de Cristo para imaginar que ali é o caminho para a salvação. O que estamos vendo é o nome d’Ele sendo pregado em vão. Tem nome de Cristo em camisinha, papel higiênico, avenidas,  em tudo que é lugar... Em todo canto se lê a frase “Deus salva”. Quando comecei a questionar que igreja é essa, saiu a letra de “Missa biológica/Transe comunhão/Sacrossanto”. Eu costumava ficar na plateia vendo os festivais. Mas nesse ano resolvi participar de outra forma. No dia da apresentação, fui me confessar na igreja de Petrópolis. Quando o padre ficou de costas, peguei uma batina e o turíbulo, que estavam no confessionário, e me mandei. (risos). À noite, durante a nossa apresentação, entrei vestido com aquela roupa. Só que no lugar do incenso, botei maconha dentro do turíbulo. Comecei a fazer uma evolução com aquele turíbulo cheio de maconha e o pessoal ficou doido. Eu balançava ele perto do nariz dos integrantes da comissão julgadora, que contava com gente como Anchieta Fernandes. Ficaram doidos. Ao final da apresentação os jurados davam as notas levantando tabuletas de zero a dez. Todo mundo levantou o dez. (risos).
SUPERPAUTA – Os autores das músicas concorrentes não solicitaram exame antidoping? (risos).
GURGEL – O problema é que estava todo mundo dopado. Esses festivais foram legais e serviram como espaço para a gente mostrar o que estava fazendo e também se divertir.
SUPERPAUTA – Isso foi antes do Festival do Forte?
GURGEL – Foi. Depois dessa experiência dei uma parada nas parcerias com compositores. Logo em seguida surgiu a “Galeria do Povo”, de Eduardo Alexandre Dunga, na Praia dos Artistas. Foi ponto de referência para as pessoas que trabalhavam com poesia, com pintura... As reuniões ocorriam aos domingos. Além dos diálogos a respeito da produção de cada um, vez por outra era montado um palco para o pessoal tocar. Lembro que Bráulio Tavares se apresentou por lá. Posterior a isso vieram os festivais do Forte, que foram uma delícia.
SUPERPAUTA – Como surgiu a ideia de promover festivais culturais no Forte dos Reis Magos?
GURGEL – Eu estava morando em Salvador. Fui curtir o carnaval da Bahia e resolvi não voltar. Fiquei dois anos por lá, foi o maior carnaval da minha vida! Primeiro fiquei na casa da Guida, uma baiana. Depois fui morar com uma gaúcha, Karla. Aconteceu o seguinte: eu estava no carnaval e me roubaram tudo. Na hora que cheguei e fui atrás do trio elétrico, quando fui procurar meu dinheiro, tinham roubado tudo, inclusive os documentos. Resolvi não ir embora. Guida disse que eu podia ficar em seu apartamento. Depois do carnaval fui à Secretaria de Segurança - para ver a questão da identidade - e comecei a procurar emprego. Consegui um como vendedor de uma loja de discos no Corredor da Vitória, ali perto do Solar do Unhão. Fiquei quase um ano. Depois, Luciano, o dono, me transferiu para trabalhar como gerente na loja do Porto da Barra. Lá nessa lojinha criou-se uma reunião dos músicos, poetas e pintores. Eles gostavam de frequentar o lugar. Foi daí que conheci Zelito Miranda, um músico da Bahia. Certo dia, ele me convidou para fazer parte do seu grupo de teatro. Eles estavam montando um espetáculo. Topei. Eu trabalhava de manhã e de tarde na loja e à noite ia para o Teatro Castro Alves. Apresentamos esse trabalho coletivo no Teatro Castro Alves. Depois de umas três semanas em cartaz, Lola me ligou. “Gurgel, eu sei que você está em Salvador e tudo, mas queria que você viesse para Natal”. Perguntei o que eu iria fazer em Natal. “Estamos com a ideia de realizar um grande festival no Forte, reunir artistas do Sul, Sudeste e Norte do país. Vai ser uma coisa muito legal”. A ideia foi de Lola! Topei. Vim e trouxe Karla comigo, a gaúcha. O festival foi maravilhoso. Teve em 1978 e em 1980. Infelizmente, até onde sei,  não existe registro em vídeo, mas tem fotos. Acho que existem vídeos quando ele se transferiu para a Cidade da Criança e o Bosque dos Namorados, o Parque das Dunas.
SUPERPAUTA – Você apresentou alguma coisa no Festival do Forte ou ficou apenas na organização?
GURGEL – Geralmente eu ficava na organização, mas teve um ano em que fiz uma... Eu não gosto desse nome “performance”, acho que ele está muito diluído. Mas eu fiz uma apresentação envolvendo aquela senhora, dona Raimunda, que ficava pelo centro da cidade e todo final de semana se acomodava em um banquinho na frente do Teatro Alberto Maranhão. Ela usava um chapéu, joias e roupas brilhosas. Para levá-la até o Forte, foi um drama. Dona Raimunda tinha problema nas articulações das pernas, demorou umas duas horas para chegar do início da passarela até o Forte. A apresentação foi uma conversa sobre um outro lado da história da vida dela. Foi um papo meio que lisérgico e alucinatório. Tenho as fotos dessa apresentação.
SUPERPAUTA – Você conheceu muita gente interessante nesses festivais?
GURGEL - Tive a oportunidade de conhecer Chacal, José Roberto Aguilar, Pedro Osmar, Paulo Rô, Marcélia Cartaxo e muitos outros. A impressão que tive de Aguilar é que ele é um guia, uma pessoa extremamente audaz e ao mesmo tempo dócil. Compactua com essas duas coisas: a audácia e a docilidade. Ele gravou um elepê antológico: “Aguilar e a Banda Performática”. Quando estive em São Paulo há alguns anos, fiquei uma noite todinha no atelier de Aguilar. Pessoas amigas dele estavam lá, inclusive integrantes da Banda Performática. Fiquei umas oito horas por lá, conversando. Ele é genial.
SUPERPAUTA – Qual a importância desses festivais do Forte para a cidade?
GURGEL – Teve uma importância tremenda: rompeu aquela visão de que os eventos locais tinham que ser algo exclusivamente da cidade. Passamos a abrigar pessoas de outras esferas, com outras cabeças, atitudes e trabalhos muito interessantes de serem vistos. No festival, ficou muito explícita a validade da proposta de reunir pessoas de várias regiões, com cabeças diferenciadas, para se estabelecer um novo referencial da poesia, música, vídeos, artes plásticas, dança etc. Foi muito legal para a cidade. Durava a noite toda, na época da lua cheia. O Festival do Forte dos Reis Magos foi e sempre será uma lembrança que marcou toda uma geração de artistas natalenses intercambiando com os artistas das outras regiões brasileiras.
SUPERPAUTA – Quando você chegou de Salvador o Forte já estava escolhido como local para abrigar o festival? Por que saiu do Forte e foi para a Cidade da Criança?
GURGEL – Já estava escolhido. Depois da realização de duas edições no Forte, houve uma determinação da própria Fundação José Augusto para a troca de local. Algumas pessoas estavam dilapidando a parte física do Forte. Por mais que tivéssemos cuidado, alguns “viajavam” demais e exageravam. Isso dificultou para que o Forte fosse novamente escolhido para sediar outros festivais. Nessa época eu não estava mais em Natal. Participei apenas dos festivais de 1978 e 1980, depois viajei para o Rio. Fiquei no apartamento do tio Tarcísio, na Lauro Müller, ao lado do Canecão. Fui tentar minha vida por lá. Trabalhei como revisor na “Editora Vozes”  pela mão do amigo que há pouco partiu, Moacy Cirne. Também fui revisor de uma revista de rock cuja redação ficava próximo a Rio Comprido. Não lembro o nome da revista. Fiquei uns cinco meses, mas a revista teve dificuldade de veiculação e sobrevivência.
SUPERPAUTA – Antes de se mudar para o Rio você atuou na imprensa de Natal?
GURGEL – Só como colaborador. Fiz matérias com vários artistas, como Leno, Jorge Melo, Lola... Eu mandava o material e os jornais publicavam. Mas lembrei de um projeto legal que bolei um pouco depois do Festival do Forte. Tentei agregar na cidade grupos de poesia, trabalhar com saraus, incitar esse tipo de coisa. Quando ia a shows eu costumava pedir um espaço para falar alguma poesia. Depois de um tempo fiquei imaginando que a poesia não solicitava só isso. Ela quer um espaço próprio, onde possa pulsar à sua maneira.  Foi então que comecei a pensar na possibilidade de organizar um projeto para os poetas. Assim surgiu o “Lança-Poesia”, que ocupou durante três noites o Teatro Alberto Maranhão. Consegui juntar muitos poetas bacanas: Dácio Galvão, João Gualberto, Eli Celso, João da Rua, Civone, Darci Girassol... Foram uns vinte poetas: sete se apresentando em cada uma das três noites. O evento contribuiu para despertar a curiosidade das pessoas, que passaram a entender que a poesia poderia ter o seu espaço próprio, ela poderia respirar por si própria. Nessa mesma época lancei um jornalzinho-mural chamado “Caras Letradas”. Depois, já na Fundação José Augusto, fiz o “Bendita Poesia”. O projeto tinha abrangência regional. Consegui, pela Fundação, passagens, hospedagem, divulgação e alimentação. Convidei Miró, Malungo, Lara e outros poetas do Recife; Carlos Emílio, de Fortaleza; e vários outros poetas. Cada poeta dispunha de 30 minutos. Ele podia fazer leitura ou qualquer outra coisa. A formatação era dele. Aconteceu lá no Teatro de Cultura Popular da Fundação José Augusto.
SUPERPAUTA – Qual o maior público que você conseguiu reunir no “Bendita Poesia”?
GURGEL – A capacidade do teatro é de 180, eu coloquei umas 100 pessoas lá. A cada noite eu juntava dois poetas de Natal e um convidado de fora. Mais recentemente, o pessoal do Buraco da Catita me convidou para uma reunião. Eles estavam transformando o local em um espaço cultural: queriam poesia, cinema, artes plásticas... Me chamaram para desenvolver um trabalho de poesia lá. Devem ter pensado que eu ia colocar um microfone aqui outro ali e escalar poetas para recitarem. Não fiz isso. Juntei Carito, Civone Medeiros, Renata Mar e Pedro Quilles (o único que não é de Natal), contratei uma pessoa para trabalhar com vocal e outra para a expressão corporal e ensaiamos dois meses. Foi assim que estreamos, no Buraco da Catita, “Toque de Colher Poemas”. Era uma mescla de poesias de cada um. O espetáculo era dividido em três partes e durava 50 minutos. Pena que não deu para continuar, pois Civone teve outros compromissos e só conseguimos fazer uma única apresentação. Mas a repercussão foi tremenda. 
SUPERPAUTA – Vamos retornar ao Rio de Janeiro. Depois trabalhar como revisor na “Editora Vozes” na revista de rock, o que você foi fazer da vida?
GURGEL – Fui trabalhar como atendente em um bar “dark”. Era frequentado pelas figuras mais “darks” possíveis. Um turbilhão de gente entrava no bar, e eu ficava atendendo... Passei apenas três meses, não deu para continuar. O dono estava querendo mudar o estilo do bar, não queria mais ficar com “dark”. Depois, passei a participar de recitais de poesia. Um deles, no Parque Lage, teve grande presença de público e muita repercussão. Saiu até matéria no jornal. Permaneci mais um tempo, fiz um vídeo com o pessoal de Santa Tereza, mas depois tive que retornar para Natal. De todas as viagens que eu fiz, acho que a mais significativa foi para São Paulo, quando morei no Copan, no centro da capital paulista.
SUPERPAUTA – Como foi?
GURGEL – Eu soube que Dailor e João Gualberto estavam morando lá. Mantive contato e eles disseram que eu podia ir. Lá tinha um quarto para mim. Eu acordava de manhã, atravessava o Largo do Arouche, e ia comer em um restaurante integral. Vizinho ficava uma casa noturna chamada “Stardust”, que era do pai do guitarrista Lanny Gordin. Numa das minhas idas e vindas do Copan para o centro e para outros bairros de São Paulo, entrei na Augusta e vi um cartaz no Teatro Oficina: “Estamos fazendo testes para elenco da montagem de ‘Hair’”. Resolvi me inscrever e fui selecionado para participar dessa primeira apresentação de “Hair” no Brasil.  Era aquilo o que eu queria: permanecer em São Paulo, talvez até ficar o resto da vida por lá. Para comemorar, convidei Dailor e João Gualberto para ir ao “Redondo”, um bar que tem perto do Copan. Tomei uma cana grande! Era para eu estar no teatro, no outro dia, às oito da manhã. Cheguei vinte minutos atrasado e já tinham me substituído. Por essa minha irresponsabilidade, perdi a oportunidade. Eles não esperaram, até porque tinha uma fila com mais de dez pessoas aguardando alguma desistência.
SUPERPAUTA – Atualmente você é servidor da Fundação José Augusto?
GURGEL – Sim. Quando presidiu a Fundação, François Silvestre conseguiu a minha redistribuição da Secretaria de Educação para lá. Na Secretaria da Educação trabalhei no departamento de artes desenvolvendo atividades culturais ligadas às bibliotecas. Uma delas era leitura para os alunos. Mas estava muito sacal, eu não aguentava mais.
SUPERPAUTA – Vamos falar sobre os seus livros. Dê uma resumida na sua produção.
GURGEL – Depois do “Akó”, com Enock, teve “O Arquétipo da Cloaca – 3X4”, em parceria com Sávio Ximenes, Carlos Paz e Flávio Américo. Era tipo um portfólio. O lançamento foi na Academia de Trovas, em frente à Academia de Letras. Em seguida veio o primeiro individual: “Avisos & Apelos”, depois  “Batman e Robin - Um poema concreto da abstração vivencial”, meu e de Eduardo Alexandre. Depois desse teve “Deusa do Além”, com capa de Buca, um artista plástico cearense, e com ilustrações de Aguilar. É um livrozinho pequeno, organizado por Venâncio Pinheiro, que tinha uma gráfica. Rodamos em mimeógrafo. Em 2004, saiu “Apaixonada poesia louca”. Os dois últimos foram “Dramática Gramática” (livro, CD, DVD, camiseta e pôster) e, agora, “Mais que amor”.
SUPERPAUTA – Fale um pouco sobre “Dramática Gramática”.
GURGEL – O livro surgiu quando eu tinha uma página no Orkut. Ficavam insistindo para eu publicar, e eu sempre respondendo que não queria. Foi tanta insistência que resolvi não fazer apenas o livro, mas também a camiseta, o pôster, o CD e o DVD. Fiquei um ano doido, para dar conta desse negócio. Mirei no projeto e só descansei quando concluí. É muito louco lançar, numa mesma ocasião, cinco itens. Não é fácil. O trabalho é todo conceitual. As logomarcas que aparecem neste CD, por exemplo, foram de apoios prometidos que não se concretizaram. Não recebi nenhum tostão de nenhum deles. Tive que fazer um empréstimo que até hoje pago. Não houve lucro nenhum porque tive que bancar tudo. O custo foi de aproximadamente 20 mil reais. Mas valeu a pena, o CD e o DVD são muito experimentais. Essa é uma linha que eu gosto. Nas gravações, a minha voz normal navega por outras texturas vocais. Mas sem nenhum truque ou efeito digital. É a minha voz mesmo, sem manipulação.
SUPERPAUTA – Por último teve o “Mais que amor”.
GURGEL – Esse também surgiu a partir de uma rede social, a minha página no Facebook. Dialogando com a proprietária da editora “Ibis Libris”, Thereza Christina Roque da Mota - que além de editora é poeta e tradutora carioca - ela disse que ia publicar meu livro. Levei na brincadeira, mas, uma semana depois, Thereza pediu que eu escolhesse alguns poemas e enviasse para ela dar uma olhada. Mandei todos eles, bem uns 150. Dez dias depois ela devolveu tudo diagramado. Foi então que percebi que Thereza estava falando sério. Paralelamente, a gente começou um relacionamento. Fiquei um tempo com ela no Rio. Lá o Jorge Benjor me apadrinhou e incluiu o lançamento do livro na programação do “Corujão da Poesia – Universo da Leitura”, que ele organiza junto com João do Corujão. Depois lancei no quiosque da “Pelada Poética do Leme”, na praia do Leme. Fui para São Paulo e fiz um lançamento na “Livraria do Espaço Itaú”, na Rua Augusta. Marcos Silva, amigo da época dos festivais de música aqui em Natal e que a um bom tempo é professor em São Paulo, foi quem conseguiu. Em outubro, a convite do poeta maranhense Celso Borges, lancei também na feira do livro de São Luís. Em Natal fiz lançamentos no “Piazzalle” (no Midway) e também no “Between”. Ainda tenho convites para lançar em Fortaleza, Recife e João Pessoa e Campina Grande.
SUPERPAUTA – Qual a temática do livro?
GURGEL – O meu texto está muito nu, despido de qualquer complacência. Ele fala sobre como o mundo está atualmente, repleto de indelicadezas e murmúrios. De um mar apadrinhado por asseclas que reinam por dentro dos seus castelos, como se quisessem declarar o seu amor pelo supérfluo e transitório. Numa outra época tinha gente legal, era a geração dos Beatles, do teatro revolucionário, do cinema de Glauber. Quando me deparo com a realidade atual, emudeço. Por isso o livro é um vômito mesmo, é uma verborragia. Se bem que meus escritos estão passando por uma depuração. Antes era uma coisa mais de “insights”. Hoje já me detenho mais: se eu quiser lapidar, lapido. Aprendi isso com Thereza. Ela falava muito para eu ter cuidado com o que escrevia. Thereza é uma das maiores tradutoras do Brasil. Traduziu 154 sonetos de Shakespeare, entre outros.
SUPERPAUTA – Você continua escrevendo todos os dias.
GURGEL – Praticamente. Hoje mesmo escrevi. Coloco no Facebook. Vou fazer outro livro chamado “Vocabulário da Raça”. Vai ficar pronto agora em 2014. Não sei ainda qual a editora. Vai ser a sequência desse último. Meu trabalho está muito isso. Tem coisa amorosa, claro, inquestionavelmente tem sim, mas também tem esse caleidoscópio liquidificado onde vivemos. 
SUPERPAUTA – Você tem filhos?
GURGEL - Tenho dois. Lucas está com 20 anos. Ele tatua. É uma figura lindíssima. Escreve,  é músico. Toca violão, guitarra, baixo, bateria... Está trabalhando com pintura, com vídeos... Meu filho é muito incrível. Tenho outro que mora em João Pessoa, com a mãe, que é o Ian. A mãe dele, Ana Cristina, é violinista na orquestra sinfônica. Ian nasceu em João Pessoa, perto da família da mãe.
SUPERPAUTA – E os “bottons” que você está comercializando dentro da proposta de as pessoas colocarem a poesia no peito?
GURGEL – Esse trabalho surgiu a partir da Raquel Jácome, aqui do Between. Resolvi fazer esses “bottons” para que as pessoas possam colocar literalmente a poesia no peito. É um desdobramento do meu trabalho.
SUPERPAUTA – Onde alguém que não mora em Natal ou não está próximo a você pode ter acesso a todo esse material que você produz?
GURGEL – Mantendo contato pelo meu Facebook.
SUPERPAUTA – Em determinada ocasião você foi eleito o homem mais bonito de Natal...
GURGEL – Não, Roberto, por favor. Isso aí não contempla não.
SUPERPAUTA – O que você considera boa poesia, hoje, no Brasil e em Natal?
GURGEL – Aqui em Natal tem Adriano de Souza, o Eli Celso, que está morando em Brasília. Gosto muito de Marize Castro, Anchella Monte, Iracema Macedo. Tem Drika Duarte, Jota Mombaça, e - guardem esse nome - Juliana Ribeiro Dantas, filha de Anchella. É muito bonita a poesia dela. Entre os poetas de fora, gosto muito do Alberto Lins Caldas e José Inácio, amigos e poetas porretas do Facebook, além de Canaã Ferraz e Michel Melamed... Eu poderia depois ampliar essa relação, já que tem muita coisa legal.
SUPERPAUTA – Como você encerraria essa entrevista?
GURGEL – A melhor forma seria declamando um poema. Chama-se: “Contumaz”. Diz assim: “Minha saudade é uma relíquia /Confesso aos meus erros a felicidade / De uma chácara repleta de ilhas / E de um vasto ocaso: o espelho daquela tarde / Foi o ontem que me deixou mais pensativo / Repousado de brios, ferrugens e do bem do mar / É como o destino que me caçoa, soa fugitivo / De uma torre, de uma serpente, do seu olhar / Me sigo como vila velha de milhas / Trespasso a ampulheta que aluga noites e dias / Aguo a vida que me dá filhos e filhas / E repouso como um míssil, sombreado de dentes sombrios / No vasto do rastro que escorrego e me acho / Vago feito um senil, simulacro de fogo e enfeite / Sou de noite a flor do facho, passo à passo / Como uma bússola que encobre todo o seu azeite / E que da ilha que do início me fez senhor / Eu peço a luz que induz e conduz a sua paz / Só quero a cruz, as minhas costas e aquela dor /E do inúmero vento daquela lembrança que me leva e que me trás /Que me leva e que me trás”.
Foto: Roberto Fontes


Um comentário:

  1. Show! A entrevista e as fotos, principalmente as cedidas, deram um toque especial ao texto. Parabéns, Bob Man!

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